A morte pede passagem

15/08/2015 às 09:41
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Crônica sobre os antigos e os novos esquadrões da morte osasquences.

Morávamos, então, numa casa apertadinha, pequenina mesmo, numa rua que fazia fundos com um imenso terreno baldio. Além deste, que podia ser acessado por uma ruela de terra rua abaixo, havia uma picada larga que margeava o córrego e levava à uma pinguela que dava no campo da Ponte Preta. Era lá que a criançada osasquence se esbaldava nos anos 1970, desde que os adultos não estivessem jogando.

Naquele tempo o córrego não era canalizado e margeado por duas avenidas pavimentadas. Ao fundo do campo, em direção à Av. Autonomista, havia um imenso matagal que era cortado por uma picada estreita. Através dela era possível chegar à pilha de lixo industrial da Osran. Era lá que a molecada conseguia pedaços de lampadas para fazer cortante. O vidro incolor e fino era fácil de moer e seu pó cristalino, misturado com caldo fervendo de cola de madeira, foi a única arma que conheci na infância. Os adultos tinham outras armas. As mesmas que ainda têm, suponho.

Certo dia, no finalzinho da tarde, estiquei linha em zigue-e-zague, na minúscula laje do quintal, para passar cortante. Então, ouvi, um zum-zum-zum do outro lado do córrego. Parei o que estava fazendo, encolhi ao lado do muro e fiquei espiando o que ocorria. Minha visão era privilegiada, pois estava dois metros acima do nível do chão e à uns 80 metros da picada de onde vinha o barulho. O dia findava, mas a escuridão ainda não era grande.

Acima do mato alto vi apenas o tronco de três adultos vestidos de maneira igual. Antes de chegarem ao lixão da Osran, eles entram no mato. Notei, então, que eles estavam arrastando alguém que implorava, choramingava e ia sendo chutado para ficar calado. Alguns metros dentro do mato a tropa fez alto. Escutei vários estampidos, os assassinos olharam em volta para se certificarem que ninguém os havia visto e se retiraram calmamente do local fechando o mato atrás de si até chegar na picada. Coração na boca, fiquei uma eternidade instantânea escondido atrás do muro. Será que fui visto, será que não fui…

No dia seguinte, já no campo da Ponte Preta, empinando pipa, comentei com meus amigos o que havia visto. Alguns disseram que tinham ouvido os tiros. Outros nem mesmo se interessaram pela novidade. Isto era comum em Osasco. Vamos ver o morto, não vamos ver morto. Não fomos. Deve ter policial de folga vigiando. Alguns dias depois, com dois amigos, fui inspecionar o local. O corpo já havia sido retirado de lá, mas eu queria me certificar de que não poderia ter sido visto vendo o incidente. Paranóia de moleque amedrontado, entendem?

Em Osasco, a morte continua pedindo passagem. Todavia, evoluímos muito tecnologicamente e involuímos um pouco humanitariamente. Agora os moleques osasquences (e das outras cidades brasileiras também) não precisam mais se esconder para ver os esquadrões da morte em ação. Eles estão na televisão e imitam a Tropa de Elite, filme que fez sucesso nos cinemas locais em 2007 e que pode ser comprado por 3 reais nos revendedores de CDs piratas nas periferias da cidade.

A ousadia dos pistoleiros continua a mesma, mas a performance deles mudou um pouco. Os policiais que vi em ação, na década de 1970, não usavam máscaras. Eles não tinham razões para temer testemunhas. Eu mesmo nunca testemunhei o que vi para um adulto. Durante a Ditadura, até mesmo a morte virava brincadeira infantil. A infantilidade do novo esquadrão da morte osasquence é evidente. As máscaras nos rostos dos pistoleiros não conseguiram esconder as condutas típicas de homens treinados registradas em vídeo. Eles suspeitavam que estavam sendo filmados ou a existência das câmeras era um requisito essencial ao espetáculo macabro que eles deram? Osasco tem milhares de bares, a maioria deles têm TVs. Equipamentos de gravação apenas alguns tem.

Impossível não suspeitar de alguma intenção política obscura. O incidente ocorreu alguns dias antes das passeatas marcadas para domingo contra o governo petista. Entre os que querem derrubar Dilma Rousseff estão os pistoleiros aposentados que agiam impunemente na década de 1970. O terrorismo político-policial voltou ao seu berço no dia 13 de agosto (número eleitoral do PT) para se espalhar pelo Brasil em 16 de agosto?

Se eu fosse cabalista somaria 13 a 16 para encontrar correlações relevantes. 29 é o número de semanas de gestação, tempo suficiente para a violência parir um novo regime (a extrema direita passou a acreditar que Karl Marx estava certo, que a violência é a parteira da história e que um novo regime precisa de 9 meses de gestação?). 29 de agosto de 1993, dia da chacina de Vigário Geral (os pistoleiros comemoraram uma chacina com outra?). 29 é o número do Partido Pátria Livre (o PPL, de esquerda, é mais odiado pela direita do que o PT?). 29, 290, 2.900, 29.000 ou 290.000, 2.900.000, 29.000.000, quantos brasileiros os pistoleiros estão dispostos a matar para derrubar Dilma Rousseff? E o governo federal ficará se fazendo de morto enquanto as autoridades paulistas deixam as serpentes crescer e fazer vítimas inocentes?

Quando eu era criança me encolhi de medo ao ver um esquadrão da morte agir. Os pistoleiros do dia 13 são infantis o bastante para querer amedrontar 200 milhões de brasileiros a fim de construir uma nova Ditadura? Ou será que eles é que estão com medo de uma Democracia que não conseguem mais controlar, arrastar para o mato e assassinar impunemente?

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

advogado em Osasco (SP)

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