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Débito conjugal: o corpo como dote

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02/09/2003 às 00:00
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O estudo tem por objeto o instituto do débito conjugal, entendido doutrinariamente como o direito-dever dos cônjuges cederem reciprocamente os seus corpos à mútua satisfação sexual. Este instituto teria sede no do art. 231, II, do CC-16, recepcionado pelo art. 1.566 do CC-02, que implica na "vida em comum, no domicílio conjugal".

O presente estudo tem por objeto o instituto do débito conjugal, entendido doutrinariamente como o direito-dever dos cônjuges cederem reciprocamente os seus corpos à mútua satisfação sexual. Este instituto teria sede no 2º inciso do art. 231 do CC-16, recepcionado pelo art. 1.566 do CC - 02, que implica na "vida em comum, no domicílio conjugal". O estudo percorre a origem e a evolução do instituto, seu tratamento em ordenamentos jurídicos extraforâneos e a sua evolução no direito pátrio. Em seguida, salienta algumas questões problemáticas sobre sua permanência nos dias atuais,. À guisa de conclusão, observa-se o melhor encaminhamento a ser dado à idéia do débito conjugal de acordo com as novas diretrizes do quadrante jusfamiliar do nosso ordenamento, tendo como macrocontexto para a discussão o que chamo de "dialética do íntimo e do político".

Palavras-Chaves: Débito Conjugal; Dever de Coabitação; Família; Direito de Família; História do Direito..

Sumário: 1. Introdução; 2. A Origem do Débito Conjugal; 3. O Débito Conjugal no Direito Comparado; 4. O Débito Conjugal no Direito Brasileiro; 5. Uma Releitura Crítica do Débito Conjugal; 6. Conclusão - Pela Privatização da Intimidade; 7. Bibliografia.


1. Introdução.

O Débito Conjugal trata-se, nas palavras do civilista Antônio Chaves, do "direito-dever do marido e de sua mulher de realizarem entre si o ato sexual" [1]. A base para tal obrigatoriedade, sendo esta uma prerrogativa pública e, portanto, irrenunciável por convenção inter-conjugal, encontra-se num dos chamados Deveres Matrimoniais Recíprocos, dispostos no artigo 231 do nosso antigo estatuto civil, recepcionado pelo art. 1566 do CC em vigor. Traz o seu inciso segundo a "vida em comum, no domicílio conjugal" como uma das obrigações a que os cônjuges se submetem para comporem, perante o Estado, a dita Família Casamentária [2]. A partir do que se habituou chamar de "dever de coabitação", grassaram os doutrinadores, não só pátrios como extraforâneos, como se verá, a extraírem um suposto mandamento estatal cujo conteúdo insólito era, em síntese, o determinismo público acerca das relações íntimas do casal. É o que se vê, p. ex., no dizer do civilista baiano Orlando Gomes: "A coabitação representa mais que a simples convivência sob o mesmo teto. (...) Não só convivência, mas união carnal.(...) Importa-se assim a coabitação a permanente satisfação desse débito." [3]

A tese que defendo diverge profundamente deste entendimento; e, ainda mais, revolta-se contra a inércia doutrinária frente a tão pungente anacronismo jurídico. Grande parte dos manuais jurídicos clássicos (saliente-se, em suas versões ditas "atualizadas") aludem ao débito conjugal como claro reflexo do dever de coabitação, dando a esta conclusão um caráter de intelecção plena de obviedade. Tratam-no como fato corriqueiro e natural, dispensando-lhe, no máximo, poucas linhas no correr de suas obras, quase que enfastiados por escrever sobre matéria tão consolidada. Data vênia, considero inadmissível que este posicionamento doutrinário, fiel a uma época já vencida da nossa história social, se perpetue até os dias atuais., a menos que isto se dê em completa antagonia à devida adequação do texto da lei à sua orla fática, haja vista esta ostentar hoje princípios como o da dignidade da pessoa humana, obstáculo certo a qualquer espécie de argumento legitimador do débito conjugal. Além disso, não há sequer espaço para a pretensiosa taxatividade com que este entendimento é colocado pelos doutrinadores, porquanto a letra da lei não mencione textualmente a obrigatoriedade do regime copular intra-matrimonial, o que fica patente ao se observar como antigas disposições legais referiam-se explicitamente a esta obrigatoriedade, como aqui se verá. Destaque-se que o presente dispositivo legal alude à necessidade dos cônjuges conviverem no mesmo domicílio. Poderia, ao extremo, ser dito até que o Estado obriga os cônjuges a partilharem da mesma casa, mas não da mesma cama.

Por sobre todas estas conjeturas, no entanto, algo não se pode perder de vista, sendo o centro deste artigo. É por demais óbvio que se espera que um casal alcance a plenitude da sua comunhão. No entanto, o que se discute aqui é a legitimidade do Estado em instituir as condicionantes desta plenitude e o conteúdo desta comunhão. A ingerência do Estado Paternal que, do alto da sua excelente direção, determina não apenas qual será o comportamento público dos seus auspiciados, mas também imprime-lhe determinações na sua esfera íntima não é crível a esta altura da nossa evolução político-normativa e, principalmente, do amadurecimento de uma sociedade pluralista e democrática. O que se discute aqui, utilizando-se do exame do débito conjugal por ser o exemplo mais flagrante desta intromissão injustificável, são as condicionantes de existência do que chamo de "dialética do íntimo e do político" (termo que visa, mimeticamente, exprimir uma subjetividade ausente na clássica "dialética do público e do privado") que, em algum ponto da nossa história, se reestruturou, sem contar, no entanto, com o devido reemulduramento por parte do nosso sistema jurídico.

Para viabilizar a compreensão deste desajuste, determinei algumas matrizes discussivas que procuram pôr à mostra as fragilidades da manutenção do débito conjugal na atualidade. O primeiro tópico remete a uma análise diacrônica do instituto, remetendo às suas origens medievais. O segundo traz uma observação sincrônica, comparando o tratamento mais atual dado a ele por diferentes ordenamentos jurídicos alienos. Num terceiro ponto aprofundo o exame do caso brasileiro, novamente na perspectiva da evolução histórica do nosso sistema normativo. Descrito o débito conjugal até os nossos dias, coloco-o sob a perspectiva das novas dimensões jusfamiliares deste início de século. Neste ponto, procuro auferir as bases legais deste instituto, tendo por hipótese a comprovar justamente a inexistência das mesmas. Além disso, para apontar o descompasso deste instituto com as novas concepções jurídicas, discuto a perquirição da culpa na separação judicial por recusa ao cumprimento do débito conjugal, com vistas a demonstrar a insubsistência deste. Expostas as inconsistências da manutenção do débito conjugal, concluo esta escrita com o macrocontexto que aloja, em última instância, o exame do mesmo: a dialética do íntimo e do político.


2. A Origem do Débito Conjugal

O débito conjugal é uma criação do Direito Canônico, típico do período medieval da História. Presentifica-se em toda sua extensão no Cânon 1013, §1º que estabelece, como fim primário do casamento, a procriação e a educação da prole ("procreatio et educatio prolis") e, como fins secundários, a ajuda mútua e o remédio da concupiscência ("mutuum adiutorium et remedium concupiscentiae") [4]. É neste sentido que Maria Helena Diniz coloca como um dos fins do casamento "a legalização das relações sexuais entre os cônjuges, pois dentro do casamento a satisfação do desejo sexual, que é normal e inerente à natureza humana, apazigua a concupiscência (...)" [5] Para explicar, no entanto, a ruptura que a institucionalização deste "remédio da concupiscência" representou para a sociedade, é necessário observarmos qual a natureza do casamento antes da ascensão do Direito Canônico.

Segundo Flávio Alves Martins, a base da família, de acordo com o Direito Romano, era o casamento. A base do casamento, por sua vez, era a chamada "affectio maritalis", a convivência do homem e da mulher com a intenção de ser esposo e esposa. [6] Note-se que não ganha relevo até esta altura o conluio genital como fator determinante do casamento romano (segundo a clássica fórmula "coitus non matrimonium facit"). Álvaro Villaça Azevedo, dono de obra basilar sobre o tema em análise, também identifica no casamento romano a exclusividade da affectio maritalis para a sua consubstanciação, haja ou não a coabitação. São suas as seguintes palavras acerca do casamento romano: "A se admitir somente o elemento subjetivo da afeição dos cônjuges, o seu consentimento seria suficiente à realização matrimonial, independentemente da vida íntima, em comum." [7] Este vínculo calcado no estreitamento psicológico dos cônjuges que constitui o matrimônio no Direito Romano decaiu com todo o Império do Lácio, que encontrou seu fim nas múltiplas causas que a História resguarda.

Na nova ordem mundial que emerge com o fim da Idade Antiga, a ascensão da Igreja como única instituição unívoca dentro de uma civilização fragmentada em feudos ensejou o crescimento do Direito Canônico e a construção de todo um cabedal de dogmas a demarcarem as condutas daqueles sob o seu auspício. Especial atenção ganhou o casamento que, no entanto, haveria de ser erguido em bases legais completamente diversas daquelas da Antigüidade. Uma das modificações que mais se fez sentir foi a alteração da substância do casamento. Nas palavras de Eduardo de O. Leite, no primeiro volume do seu Tratado de Direito de Família (1991: 65) fica patente a inversão de valores promovida pelo Direito Canônico no casamento:

"Contudo, se no direito romano, o elemento psicológico, o consensus, era da essência do casamento, calcado na affectio maritalis ou no animus uxoris, na qual nenhuma solenidade era exigida e a união dos sexos não precisava ser consumada para que o casamento tivesse existência legal, pois nuptiaa non concubitis, sed consensus facit (não é a coabitação que faz o casamento, mas o seu consentimento), o direito canônico medieval inverterá a situação e só reconhecerá a existência do casamento nos casos em que ocorrer a conjunção carnal." [8][grifos nossos]

Não obstante o naturalismo com que o Direito Canônico tratou o casamento, a exsurgência neste mesmo sistema jurídico da noção contratual do matrimônio inverte a posição da união carnal no processo de constituição da família medieval. Se no Cânon 1013 o conluio genital era necessário à perfectibilização do casamento, com as novas interpretações dadas ao Direito Canônico e a conseqüente consolidação da noção contratual de casamento, passa-se a dar mais destaque ao Cânon 1.012 ("Christus Dominus ad sacramenti dignitatem evexit ipsum contractum matrimonialem inter baptizatos."), entendendo-se a união carnal como uma das cláusulas deste contrato, contra a qual, em caso de inadimplemento, podia se opor a rescisão do mesmo, no caso, com o desenlace matrimonial. A permanência majoritária em nossa ordem jurídica desta noção contratual do casamento ensejou a transposição equivocada para o nosso tempo deste seu instituto subsidiário: o débito conjugal.


3. O Débito Conjugal no Direito Comparado.

Vejamos o tratamento dado na atualidade a este instituto pelos ordenamentos jurídicos alienos, antes de focalizarmos o nosso próprio sistema normativo. No direito italiano, os direitos e deveres dos cônjuges são os de coabitação, fidelidade e assistência. Segundo Fernando Santosuosso, existem no país duas correntes que se dividem na interpretação do que conteria o "dever de coabitação". Para autores como Ferrara, Jemolo e Gangi, as relações sexuais estão inclusas no dever de coabitação; numa segunda linha doutrinária, autores como Degni e Barassi constatam que "as relações sexuais encontram-se em um campo più intimo della coabitazione e più affine al dovere di fedeltà(...)." No direito francês, novamente tríplice é o plexo obrigacional que une os cônjuges. São direitos e deveres recíprocos a fidelidade, o socorro e a assistência. De imediato nota-se a ausência da coabitação entre tais deveres, demonstrando a sua falta de unanimidade entre as diversas formações jurídicas. No corpo jurídico francês, o próprio dever de coabitação, como se disse, inexistente na letra do seu Código Civil, foi suprido pela jurisprudência, segundo o qual "(...) o dever conjugal compreende-se no de coabitar." No direito alemão temos o art. 1353 do BGB, segundo o qual os esposos estão reciprocamente obrigados à comunidade de vida conjugal. As correntes doutrinárias alemãs dividem-se, tal qual as italianas. Assim, se por um lado Theodor Kipp e Martin Wolf argumentam que sendo a plena convivência entre os esposos o fim do matrimônio, "a ordem jurídica não só impõem a coabitação, como reconoce sin más que los cónyuges pertencen el uno al otro", por outro lado, Heinrich Lehmann "alude ao fato de ser a lei omissa, quanto à sua especificação minuciosa, não referindo o que devem fazer os cônjuges para o seu cumprimento, tendo em vista que tal exposição seria indelicada." [9]

Após a observância dos aspectos peculiares com que se trata o dever de coabitação e, especificamente, o débito conjugal nestes três ordenamentos, pode-se enfileirar algumas conclusões antes de estreitar o exame sobre o nosso ordenamento jurídico. Primeiramente, detecta-se que, tal qual aqui sustentaremos, o débito conjugal não pode ser deduzido da simples descrição legal do dever de coabitação, conforme a contundente opinião da corrente italiana que não reconhece a figura do débito conjugal, ainda que esteja inscrito no seu ordenamento o dever de coabitação. Um segundo aspecto interessante é que sequer a coabitação é um dever conjugal unânime nos diversos ordenamentos jurídicos do mundo, como demonstra a observação do Código Civil francês. Por fim, restou deste rápido panorama civilista ítalo-franco-germânico a certeza de que o regime sexual inter-conjugal remonta a uma esfera de extrema impermeabilidade à ordenança pública, seja pelo seu caráter personalíssimo, seja pelo desconforto que um dispositivo legal desta natureza traria aos cônjuges, conforme correntes do pensamento jurídico italiano e alemão, respectivamente.

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4. O Débito Conjugal no Direito Brasileiro

Para que possamos alcançar o estudo da disciplina pátria do débito conjugal, é necessário antes percorrer, como se fez sobre a origem do instituto, a história da sua evolução dentro do nosso ordenamento jurídico. De inicio, fica clara a vinculação do nosso direito nascente ao Direito Canônico, afinal nossas raízes jurídicas encontram-se ainda na primeira metade do século XIX, porém recepcionando um instrumental legal do século XVII (as Ordenações Filipinas, que passaram a ter vigência no Brasil com uma lei Imperial de 20 de outubro de 1823). Daí ter significativa importância a conjunção carnal para concretizar os casamentos havidos à época. Assim é que se condicionava, por força das Ordenações Filipinas, a meação entre os cônjuges nos seguintes termos: "E quando o marido e a mulher forem casados per palavras de presente á porta da Igreja, ou per licença do Prelado fóra della, havendo cópula carnal, serão meeiros em seus bens e fazenda." [10] [grifos nossos].

O primeiro esforço pátrio para que tivéssemos um ordenamento jurídico próprio veio a lume depois de promulgada a Constituição Imperial de 1824, que em seu art. 179, n. 18 estabelecia: "Organizar-se-á, quanto antes, um Código Civil e Criminal, fundado nas sólidas bases da Justiça e da Equidade". Assim é que, muito tempo depois, em 1855, o jurista cachoeirense Augusto Teixeira de Freitas foi contratado para sistematizar a dispersa legislação civil brasileira, dando origem, em 1858, à Consolidação das Leis Civis. O documento, de 1333 artigos, apesar do caráter de provisoriedade, foi utilizada durante muitos anos como verdadeiro Código Civil pátrio. [11] Na Consolidação, sobressai-se a questão da cópula sexual como forma de concretizar o casamento e de efetivar os seus efeitos patrimoniais. Em seu art. 117 estabelecia a Consolidação que "a comunhão legal dos bens só se concretizava depois da cópula carnal dos esposos, que deveria ocorrer em seguida à solene celebração do matrimônio." [12][grifos nossos]. Segue-se, sem dúvida, a supramencionada disposição filipina.

A progressão da história da nossa codificação civil continuou com o mesmo Teixeira de Freitas, desta vez contratado para preparar um projeto de Código Civil, que deveria substituir a Consolidação, pois esta tratava-se de mescla entre libelos legislatoriais pátrios e alienos. Em 1865, Teixeira de Freitas apresenta o Esboço do Código Civil, que listava quase 5.000 artigos. Julgado prolixo pela comissão encarregada de examina-lo, foi o Esboço rejeitado. Neste texto, onde já se pode tocar o brilho da verve lúcida do jurista baiano, destaquem-se os art. 1305 e 1306, que implicavam em viverem sob o mesmo teto marido e mulher, sendo a mulher obrigada a seguir o marido, cabeça do casal, podendo este, caso contrário, contar com diligência policial para obrigá-la, restando ainda, se for este o seu interesse, negar-lhe alimento como punição. [13]

Tal mandamento, de injustificada fundamentação na atualidade, deve ser contextualizado. Esta era a realidade da mulher do final do século XIX e início do século XX, contra a qual Teixeira de Freitas, integrante que era do seu tempo, não poderia se sobrepor. Porém, uma inovação do seu gênio apresenta-se com especial interesse para o estudo que fazemos. Não obstante o dever de coabitação se faça presente em sua forma literal no Esboço, pela primeira vez na nossa até então curta história civilista não há menção, como havia nas Ordenações Filipinas e na Consolidação, à obrigatoriedade da cópula carnal para a concretização do casamento. Ressalte-se que a Consolidação era uma composição das leis preexistentes, orientadas pelo Direito Canônico, representado no sistema jurídico brasileiro pelas Ordenações Filipinas. Ao que parece, a originalidade de Teixeira de Freitas fez suprimir o débito conjugal in verbis, inobstante não escape ao nosso sentir a condição de extrema subserviência da mulher à época, o que tornaria até redundante a instituição de um dispositivo legal para que o marido fizesse uso do corpo da sua esposa para satisfazer-se sexualmente.

Seguindo o débito conjugal na evolução do Direito Civil Brasileiro, deparamo-nos com o trabalho de um até então desconhecido professor de Direito Comparado da Faculdade de Direto de Recife. Por indicação de Epitácio Pessoa, Ministro da Justiça de Campos Sales, Clóvis Beviláqua assumia o encargo de preparar um projeto de Código Civil para o país. Em novembro de 1889, a tarefa encontra-se conclusa. O projeto Beviláqua não ficou, no entanto, incólume à sua passagem pela esfera legiferante. Particularmente ao tema em apreço, é esta a opinião da Prof. Florisa Verucci: "O Código Civil vigente, promulgado em 1916, tem como autor o civilista Clóvis Beviláqua que, na verdade, o queria bem mais liberal no que se referia à mulher do que finalmente se tornou, após os trâmites e emendas que sofreu" [14]. Em palavras da lavra do próprio civilista pernambucano: "A forma egualitaria actual, si não é a mais forte e si espera modificações do tempo para accentuar-se melhor, é certamente mais própria do que as suas precursoras (matriarcado e patriarcado) para satisfazer as necessidades hodiernas da conservação da espécie, assim como para dar maior expansão á vida physica, econômica e moral do indivíduo." [15] O que diz sobre o contexto da promulgação do CC-16 o jurista Sílvio Rodrigues dá bem a mostra d a incompatibilidade entre o pensamento técnico do elaborador e a visão estreita do legislador:

"A família de que cuida o legislador de 1916 é a tradicional, inspirada na privilégio da varonia, pois o art. 233 do C. C., que declara que o homem é o chefe da sociedade conjugal, limita bastante os direitos da mulher casada, que inclusive é vista como relativamente incapaz quanto a certos atos e a maneira de os exercer" [16].

Esta família varonil brasileira teria normatizado o seu regime sexual? Julgaria necessário a cópula comprovada para o estabelecimento de direitos patrimoniais, como foi nas Ordenações Filipinas, na Consolidação das Leis Civis (art. 117) e no Decreto nº 181 (art. 57 do decreto de 1890, que reforçou a copularidade da instituição casamentária), ou, pelo contrário, atentaria ao mero desígnio de coabitação, sem especificação do conluio genital como condicionante da perfectibilização do casamento, como no Esboço de Teixeira de Freitas (art. 1305), no Projeto de C.C. de Felício dos Santos (art. 697 do projeto publicado em 1891) e no Projeto de C.C. de Coelho Rodrigues (art. 1.934 do projeto publicado em 1893)? Neste pormenor, Beviláqua ateve-se à tendência pronunciada de "descopularizar" o instituto do casamento, restringindo-se a estabelecer uma obrigação de coabitação (art. 269/Proj. Beviláqua), expressão que foi suprimida do projeto primitivo pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que a substituiu por dever de coabitação na versão final do documento [17]. O texto legal que foi finalmente promulgado em 1916, conforme já aludimos, dispôs da seguinte forma sobre o tema em tela: "Art. 231, inc. II – vida em comum, no domicílio conjugal."

Chegando até o Código Civil em vigor, não restaria a mera menção ao inc. II do art. 231 no texto aprovado em 1916 para nos pronunciarmos sobre o instituto do dever de coabitação. Vários foram os libelos legislatoriais que remorfosearam o Direito de Família pátrio até que este alcançasse nossos dias. Como bem lembra o profº Luiz Edson Fachin:

"O modelo jurídico de família, tal qual espelhado na codificação de 1917, que pode ter sido coerente com o seu tempo, à luz das mudanças culturais, sociais e econômicas da sociedade foi-se rearticulando no curso de algumas décadas, com sístoles e diástoles próprias de uma sociedade que procura encontrar seu caminho – e acabou projetando-se para a Constituição de 1988". [18]

E é com a Constituição Federal de 1988 que surgem os fundamentos da mudança de concepção da família. Implantando as novas bases do nosso ordenamento jurídico, a CF/88 atingiu diretamente o Direito de Família, pois diferentemente de outras propostas legais que perambulam pelos corredores do Congresso Nacional, deixando, pouco a pouco, sopesar sobre si a inclemência do tempo, incompatibilizando-se no momento do seu transplante com o corpo social que lhe é receptor (e a semelhança com o caso do CC-02 não é mera coincidência, haja vista a Emenda Fiúza, que já se afigura para amenizar os anacronismos resultantes de mais de um quarto de século de tramitação), a CF/88 foi fruto de uma coalização de forças que, após uma ruptura política, mais ou menos drástica a depender do perfil ideológico da análise, precisava se legitimar sob um novo marco jurídico. Neste sentido, a Carta Magna em vigor foi curtida no calor de algumas discussões travadas a pleno vapor no seio da sociedade. É o que comprova a participação do Movimento Feminista, cuja vertente política estava completamente engajada nesta construção, de acordo com o seguinte relato do ilustre Frei Betto: "Pressionado pelos movimentos de mulheres, o presidente Sarney propôs ao Congresso a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), aprovado em 1985. Vinculado ao Ministério da Justiça, exerceu positiva atuação na constituinte de 1988." [19] É com base nesta nova família constitucional que examinaremos as incompatibilidades do débito conjugal que se arrastou até nossos dias, ao menos para os doutrinadores.

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Sobre o autor
Fagner Cordeiro Dantas

Bacharel em Urbanismo (UNEB/2001); Bacharel em Direito (UFBA/2007) e Mestrando em Administração Pública (UFBA/2010)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Fagner Cordeiro. Débito conjugal: o corpo como dote. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 68, 2 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4303. Acesso em: 19 abr. 2024.

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