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A banalização da personalidade jurídica através da Súmula 480 do Superior Tribunal de Justiça

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21/10/2015 às 12:38
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A Súmula 480 deu legalidade a uma prática que visa meramente burlar o concurso de credores no juízo universal da recuperação. A desconsideração virou neste caso uma panaceia, já que totalmente dissociada de seus objetivos e âmbito de aplicação.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A teoria da desconsideração da personalidade jurídica; 3 A teoria da desconsideração na Justiça do Trabalho; 4 A recuperação judicial na Lei 11.101/05; 5 A súmula 480 do Superior Tribunal de Justiça; 6 A banalização da personalidade jurídica através da aplicação da súmula; 7 Conclusão; Referências.

RESUMO: Neste artigo estuda-se como a súmula 480 do Superior Tribunal de Justiça banaliza o instituto jurídico da personalidade jurídica empresária, ao legitimar a aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da recuperação judicial da Lei 11.101/05, pela Justiça do Trabalho. A súmula 480 foi editada tendo como pano de fundo a aplicação da teoria menor da desconsideração pela Justiça do Trabalho, ao redirecionar a execução do crédito trabalhista para o patrimônio dos sócios da pessoa jurídica em recuperação judicial. Desta forma, ao redirecionar a execução para os bens dos sócios, que, a princípio, não integram a recuperação judicial, a empresa fica livre de constrição. Ocorre que não existem fundamentos para aplicar a teoria da desconsideração, seja a teoria maior ou menor, uma vez que na recuperação judicial não há a negativa de solver o credor, mas uma repactuação da dívida, para isso havendo o concurso de credores no juízo universal. Portanto, ao não haver nenhum fundamento de aplicação, torna-se uma panaceia a aplicação da teoria da desconsideração, bem como a própria personalidade jurídica, restando como único objetivo a exclusão do credor trabalhista do concurso de credores na recuperação judicial, trazendo mais insegurança jurídica ao ordenamento.

PALAVRAS-CHAVE: Súmula 480 STJ; Desconsideração da personalidade; Recuperação; Judicial.


INTRODUÇÃO.

No ordenamento jurídico brasileiro, as sociedades personificadas, especialmente as empresárias, têm um papel de fonte produtiva em vários sentidos, sejam como agentes econômicos de fomento ao crescimento do país, ou do emprego, consistindo em uma função social extremamente relevante. Esta função é exercida pela pessoa jurídica, que assume os riscos econômico-financeiros envolvidos na atividade, já que, ao ser dotada de personalidade jurídica, adquire capacidade para ser sujeito de direitos e obrigações, respondendo por suas próprias obrigações e responsabilidades.

Desta forma, existe uma separação patrimonial entre a pessoa jurídica e a figura dos sócios, que investiram na criação e/ou operação daquela. Essa autonomia patrimonial é elencada como de alto valor para o ordenamento jurídico, já que reduz os riscos da atividade empresarial, estimulando os agentes econômicos.[1].

Entretanto, a separação patrimonial não é um dogma absoluto, pois depende do uso idôneo da pessoa jurídica personalizada de acordo com os fins de sua existência, especialmente sua função social. Caso seja constatado abuso da pessoa jurídica, mais propriamente da autonomia patrimonial gerada pela personificação, como meio de se mascarar por detrás do véu da pessoa jurídica, deve o Estado coibir este abuso.

Um dos modos de se coibir e fazer cessar o uso abusivo da pessoa jurídica é através da desconsideração da personalidade jurídica, de modo a se atingir aqueles que se utilizam do véu. Porém, este instrumento não pode ser utilizado indiscriminadamente, de modo a se desprestigiar a ficção da autonomia patrimonial, bem como aqueles que a utilizam de boa-fé, sob pena de se considerar ato abusivo, desta vez por parte do Estado, a própria desconsideração.

Como se constatará a diante no trabalho, este uso abusivo da teoria da desconsideração tem ocorrido na Justiça do Trabalho, no âmbito da recuperação judicial, com o aval de legítimo pelo Superior Tribunal de Justiça, através da súmula 480. O problema em questão é que no escopo da recuperação judicial não há margem para a aplicação da teoria, mas, ainda assim, o Tribunal optou por reconhecê-la como de possível utilização, banalizando a autonomia patrimonial e a própria personalidade jurídica empresária.


2 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou disregard of legal entity, ou ainda superamento do véu da pessoa jurídica, é um instituto jurídico que busca a responsabilização dos sócios ou administradores através do alcance de seu patrimônio pessoal. Trata-se de uma medida de exceção no ordenamento jurídico, uma vez que, como visto, vigora no Direito Brasileiro a regra da separação patrimonial.

A teoria é utilizada caso a pessoa jurídica, e mais especificamente a personalidade jurídica, que conduz ao estado de separação patrimonial, estiver sendo usada abusivamente, fora de propósitos legítimos, de forma a reprimir e coibir esse uso indevido. Logo, não se pode utilizar do regime jurídico de autonomia para encobrir uma realidade de desvio da finalidade da pessoa jurídica, evitando-se a aplicação de normas que normalmente incidiriam em um determinado caso concreto [2].

Entretanto, frise-se que não há o descarte da personalidade jurídica e menos ainda sua dissolução. Há apenas a declaração judicial de ineficácia de atos praticados por intermédio da pessoa jurídica, consequentemente anulando-se a separação patrimonial, estendendo-se os efeitos da obrigação daquela, e atingindo-se o patrimônio do sócio ou administrador. Esta extensão de efeitos decorre da prática de atos que na verdade eram de interesse daqueles sujeitos que controlam a pessoa jurídica, e que agiram com dolo ou má fé, causando prejuízo a terceiros [3].

De acordo com Marlon Tomazette[4] a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica prescinde de fundamentos legais para sua aplicação, havendo casos de aplicação na década de 1960 registrados na jurisprudência brasileira, época muito aquém do primeiro marco legal do instituto. A justificativa desse entendimento seria a de que a separação patrimonial é um privilégio dado pelo Estado de forma a reduzir os riscos da atividade da pessoa jurídica. Por isso o Estado teria plena legitimidade para verificar o uso adequado deste privilégio, obstando resultados contrários ao direito. [5].

Conforme ressalta Nelson Abrão[6], dentro desse manto de proteção da desconsideração da personalidade jurídica em geral, se encontram tuteladas situações que envolvam esvaziamento patrimonial, fraude, desvio, abuso, excesso de poder, violação da lei, do estatuto ou contrato social, fatos ou atos ilícitos em geral, ou seja, qualquer forma de desvirtuar a ficção da personalidade jurídica.[7].

Parte da doutrina faz distinção entre algumas espécies de teoria da desconsideração, sendo as mais relevantes a teoria maior e a teoria menor. Nestas teorias há divergência acerca dos pressupostos necessários à ineficácia da separação patrimonial, porém em ambas é necessário o exaurimento do patrimônio social e sua insuficiência para saldar a obrigação sem que se tenha de atingir o patrimônio pessoal, ou seja, cobra-se primeiro da sociedade, e caso não haja patrimônio suficiente a obrigação se estende ao patrimônio pessoal dos agentes.

A teoria maior, mais aceita em meio doutrinário, é caracterizada pela presença de requisitos específicos, além do descumprimento de uma obrigação pela pessoa jurídica. É necessária a prova do desvirtuamento de função, o qual consistiria na constatação de fraude, abuso de direito, ou ainda confusão patrimonial.

A fraude consiste em utilizar-se da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para uma finalidade ilícita, que seria prejudicar terceiros. Um exemplo citado por Fábio Ulhoa Coelho[8] seria a criação de uma nova pessoa jurídica para ferir a cláusula de trespasse. Nesta cláusula o alienante do estabelecimento possui uma obrigação pessoal de não realizar concorrência ao adquirente. Entretanto, uma nova pessoa jurídica, como é um sujeito de direito autônomo, não teria esta obrigação, logo, a princípio, o alienante não estaria praticando concorrência.

Já o abuso direito não leva em conta necessariamente a má fé em prejudicar terceiros no exercício da pessoa jurídica. Há um mau uso da pessoa jurídica em que, entre os diversos meios de uso do direito, se escolhe o meio que não seja o mais útil ou adequado à instituição, e ao mesmo tempo seja o mais gravoso a terceiros[9]. Assim, o modo de uso do direito é, a princípio, lícito, porém ao trazer prejuízos, tanto à própria pessoa jurídica, quanto a terceiros, verifica-se que não atende à sua função social.

Um tipo comum de abuso de direito é o encerramento irregular da pessoa jurídica, sem tomar as providencias necessárias, não liquidando seus débitos. Entretanto, conforme o Enunciado 281 da Jornada de Direito Civil da Justiça Federal[10], este encerramento por si só não é suficiente. Seria necessário, por exemplo, posterior criação de nova pessoa jurídica pelos sócios, demonstrando o intuito de abuso.

Em ambos os casos, fraude ou abuso de direito, o fim é o mesmo: o que se pretende é burlar a autonomia patrimonial pelo fato de que a responsabilidade dos sujeitos não é direta, ou seja, a pessoa jurídica é autônoma e responde por suas obrigações. A separação patrimonial é usada como “um escudo para o exercício irregular da atividade desenvolvida pela pessoa jurídica” [11].

Por outro lado, a confusão patrimonial ocorre quando se misturam os bens da sociedade e dos agentes, de forma que não há distinção na utilização dos bens.[12].

Interessante ressaltar que parte da jurisprudência consignou que as dificuldades econômicas enfrentadas pela pessoa jurídica, mesmo diante da incompetência administrativa de seus gestores, por si só, não é considerada como ilícito ou desvio de finalidade da pessoa jurídica. Logo, desde que haja boa fé na condução dos negócios sociais, o mero infortúnio, mesmo com atos propositais de incompetência dos sócios, administradores e controladores, não será fundamento para se atingir o patrimônio pessoal destes através da desconsideração.

A teoria maior fora consolidada no art. 50, do CC/02, que conceitua o abuso da pessoa jurídica na ocorrência de duas situações, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Este dispositivo funciona como cláusula geral da teoria da desconsideração no ordenamento jurídico, de forma dupla, já que atende além de ser diploma geral das relações civis, atende aos requisitos gerais da referida teoria.

Encerrada a teoria maior, tem-se à chamada teoria menor. Esta teoria, defendida por Fábio Ulhoa Coelho[13], é caracterizada pela ausência de requisitos específicos para a aplicação da teoria da desconsideração. Basta a frustração do credor pela pessoa jurídica por ausência de patrimônio para saldar o crédito. O STJ referendou a existência da teoria menor como presente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, bastando a mera prova de insolvência da pessoa jurídica.

Aqui o risco da atividade, que em regra é da pessoa jurídica, sujeito de direito autônomo, é transferido para os sócios ou administradores, que respondem pelos atos da sociedade, independentemente de intenção fraudulenta. Além não guardar relação com as origens da disregard doutrine, desprestigia a ficção jurídica da pessoa jurídica, e os agentes econômicos, desestimulando o exercício da atividade, na prática revogando a figura da autonomia patrimonial.[14]. É uma situação que causa grande insegurança jurídica.

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A teoria menor fora consolidada no §5º, do art. 28 do CDC e, juntamente com as outras hipóteses do caput e §§ 2º, 3º, e 4º, constituem o primeiro marco legal da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito Brasileiro, em ambas as vertentes maior e menor.


3 A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA JUSTIÇA DO TRABALHO.

Na Justiça do Trabalho a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica é aplicada levando-se em conta duas analogias: com a legislação fiscal; e com a legislação do consumidor. Ambas as analogias tem como base legal de que os arts. 8º caput, e parágrafo único, e 769 da CLT autorizam a aplicação analógica de legislação[15].

No primeiro entendimento ficou constatado que os créditos fiscais possuíam um privilégio na prática maior que o trabalhista, uma vez que o Código Tributário Nacional, CTN, em seu art. 135, autoriza a extensão da responsabilidade para os sócios perante o Fisco, inclusive mediante a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Desta forma, nada mais coerente do que estender também aos créditos trabalhistas mais esta opção de solvência do crédito, que possui um privilégio e um valor social maior do que o crédito fazendário[16].

No segundo entendimento, já fixado que para o crédito trabalhista poderia se aplicar a teoria da desconsideração, buscou-se no Direito Comum um norte que melhor se adaptasse à situação no Direito do Trabalho. Cogitou-se na utilização do CC/02, porém como afirma Hermelino de Oliveira Santos[17], apesar de possível aplicação, exigir do empregado a prova de abuso da pessoa jurídica tornaria o processo trabalhista um obstáculo à satisfação do crédito, que é alimentar. Da mesma forma não se poderia aplicar a teoria “pura”, a qual desnecessita de previsão legal, mas demanda a prova do abuso.

Assim, ao se analisar a legislação do consumidor viu-se situação semelhante, uma vez que nas relações de consumo em geral, tem-se uma parte hipossuficiente, e busca-se tutelar uma relação desigual, tal como nas relações trabalhistas, inclusive com a existência de contratos de adesão. Diante do princípio da aplicação da norma mais benéfica a ser aplicada ao trabalhador, e do caráter alimentar do crédito trabalhista, viu-se como de boa aplicação o §5º, do art. 28 do CDC, o qual suprime o problema da prova de abuso da pessoa jurídica, imprimindo celeridade e efetividade ao processo e à satisfação do crédito, logo se aplicando a teoria menor ao processo trabalhista.


4 A RECUPERAÇÃO JUDICIAL NA LEI 11.101/05.

A recuperação judicial é instituto jurídico disciplinado na Lei 11.101/05 cujo objetivo é conceder à pessoa jurídica empresária uma oportunidade de reestruturação e reerguimento face ao estado de crise econômico-financeira, ao invés da decretação da falência. É um modo de permitir a manutenção da fonte produtiva, de empregos, e uma composição dos interesses dos credores. É um meio de sanear o estado de crise[18]. É o que dispõe o art. 47 da Lei 11.101/05 [19].

Sua natureza jurídica é de um acordo judicial, uma vez que a superação da crise depende de um entendimento entre o devedor e os credores, em que deve chegar a um consenso acerca do plano de reestruturação da empresa, incluindo as disposições acerca dos créditos dos credores. A chancela jurisdicional é basicamente para um controle de legalidade, incluindo objeções injustificadas de alguns credores face à viabilidade do plano de recuperação, não havendo interferência judicial no conteúdo do plano.

Quanto à aprovação do plano de recuperação judicial em si, há que se ressaltar que não depende da unanimidade de aprovação dos credores, podendo o magistrado forçar sua aprovação, desde que presentes os requisitos do art. 58, §1º [20], o qual dispõe acerca de um quórum de maioria dentro e entre as classes de credores. Isso possibilita a consolidação do princípio da função social da empresa, já que é considerável a manifestação positiva de parte dos credores[21].

Além disso, com sua aprovação, o plano, que tem característica novativa, tem o efeito de tornar as obrigações acordadas substitutas das originais, extinguindo as antigas obrigações, de acordo com o artigo 59, caput da Lei 11.101/05[22].

Conforme este dispositivo, todos os credores se encontram sujeitos ao plano, devendo obedecer ao estipulado. Devido a essas características do instituto da recuperação judicial, a qual é um acordo, e que necessita do comprometimento de todos os credores, mesmo que contra a vontade uma minoria, tem-se que é uma espécie de processo concursal, em que é necessária a concentração destes agentes num único processo, extinguindo-se as ações originárias contra a pessoa jurídica devedora, já que ocorre a novação, conforme o texto do art. 59.

Logo deve haver apenas um juízo competente, conservando a uniformidade e o efeito vinculatório erga omnes, e como é instituído por lei, apenas esta poderá abrir exceções.


5 A SÚMULA 480 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

A súmula 480 do STJ foi criada no ano de 2012 e é resultado do julgamento de diversos conflitos de competência, agravos regimentais e embargos de declaração em conflitos de competência. O STJ sumulou o entendimento de que “o juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa.”[23].

Os julgados que levaram a tal entendimento envolveram lides trabalhistas, reclamatórias que haviam redirecionado a execução para os bens, ou dos sócios, através da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou dos bens de demais empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico. Em síntese, a justificativa é bem simplória: os bens da pessoa jurídica, no caso da recuperação judicial, quedam-se livre de constrição com o redirecionamento da execução para os sócios ou empresas do grupo econômico, não se justificando a competência do Juízo Universal, necessária para evitar decisões conflitantes acerca de um mesmo patrimônio, o da pessoa jurídica em recuperação.

Duas são as ressalvas desse entendimento: a primeira quando o Juízo Universal também tenha decretado a desconsideração relativa aos mesmos bens e pessoas, mesmo que posteriormente ao redirecionamento na JT, caso em que aquele prevalece; e a segunda se tais bens de alguma forma estejam abrangidos pelo plano.

No caso de haver a desconsideração da personalidade jurídica em execução individual, como ocorre na Justiça do Trabalho, e ocorrer falência ou recuperação judicial superveniente, o entendimento é pacífico no sentido de que os bens particulares sejam levados ao juízo universal, de forma a se prestigiar a igualdade estabelecida na lei, aproveitando à massa de credores[24]. Conclui-se, portanto, que na prática somente é permitido atingir os bens dos sócios e satisfazer o credor após o início do processo de recuperação, já que se ocorrido antes, não se sabe se integrarão o plano, devendo ser preservados.

Assim, neste caso, para se evitar decisões conflitantes e o exaurimento de patrimônio, o juízo universal seria o competente. Não se explica, entretanto, as consequências ou como se procederia em caso de posterior desconsideração da personalidade jurídica pelo juízo da recuperação, e a constatação de exaurimento dos valores pelo credor.


6 A BANALIZAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ATRAVÉS DA APLICAÇÃO DA SÚMULA.

A súmula 480 não faz referencia acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas, como visto no capítulo 6, o enunciado foi proposto sobre uma prática já existente na Justiça do Trabalho, a qual utiliza a teoria da desconsideração menor de forma a satisfazer o crédito do trabalhador sem obediência ao concurso de credores, porém também sem afetar diretamente o plano de recuperação. Logo, apesar de a súmula ser um enunciado geral, o qual dispõe acerca de competência jurisdicional, o seu principal pano de fundo e de maior aplicação é o uso da teoria da desconsideração, especificamente a teoria menor, e na Justiça do Trabalho.

A partir desta constatação surgem alguns problemas acerca da aplicação dessa súmula, especialmente acerca da teoria da desconsideração em processos de créditos envolvidos na recuperação judicial. Para a análise destes problemas será feita uma discussão acerca da possibilidade da aplicação da teoria em relação à Lei 11.101/05, em ambas as vertentes, tanto a teoria maior, quanto a teoria menor.

Em relação à desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da Lei 11.101/05, fato é que não existe disposição expressa a respeito de sua aplicação, tanto nas disposições acerca da falência, quanto da recuperação judicial. Há somente o disposto do artigo 82 que, apesar de não haver menção expressa à desconsideração da personalidade jurídica, pode-se extrair sua aplicação indireta através do próprio dispositivo[25].

Entretanto, a teoria da desconsideração em sua vertente original, consignada hoje como teoria maior, prescinde de previsão legal, já que, por ser a personalidade jurídica, e mais precisamente a autonomia patrimonial, benefício concedido pelo Estado de modo a reduzir os riscos da atividade, também tem o Estado legitimidade para conferir o bom uso deste direito. Desta forma, desnecessária a previsão normativa, porém apenas para a teoria maior, uma vez que para a teoria menor, diante de sua grande generalidade, poderia causar maior insegurança jurídica.

Assim, mesmo que não haja disposição expressa, a teoria maior pode ser aplicada, desde que haja o descumprimento de uma obrigação, ou seja, a frustração do credor, isso além do desvirtuamento da pessoa jurídica, comprovado através de fraude, abuso de direito, ou confusão patrimonial. Por outro lado, a teoria menor, necessita apenas da frustração do credor, para que se possa atingir os bens dos sócios.

Entretanto, ocorre que na recuperação judicial não há propriamente a frustração do credor, com a negativa de pagamento, ou seja, não há insuficiência financeira direta, pois do contrário seria decretada a falência de plano. Na prática o que ocorre é apenas um acordo para postergar o pagamento, vinculando todos os credores. A insuficiência financeira direta seria caso de falência, o que inclusive de forma alguma poderia ensejar desconsideração da personalidade jurídica na justiça trabalhista, por conta do artigo 82, da Lei 11.101/05, em que é competência do juízo universal.

Ademais, mesmo que se considere que a recuperação seja o descumprimento das obrigações, ainda assim não se poderia aplicar a teoria da desconsideração por dois motivos: o primeiro seria porque a aprovação do plano enseja a novação dos créditos, ou seja, tornam-se novas obrigações, extinguindo as anteriores, inclusive encerrando as reclamatórias trabalhistas, o que inviabiliza da mesma forma a ideia de descumprimento de obrigações, já que por ato volitivo da maioria pactuou-se novas obrigações.

O segundo motivo, por sua vez, seria a contradição em se desconsiderar a personalidade jurídica no âmbito da recuperação judicial, uma vez que para se efetuar a desconsideração, o resultado deveria beneficiar a todos os credores, o que somente poderia ocorrer no juízo universal e não em execuções individuais. Porém nem no juízo universal da recuperação não pode se satisfazer os credores desta forma, pois seria desconsiderado o plano aprovado pela maioria, e se estaria na prática diante de um processo falimentar, já que haveria pagamento dos credores diretamente através do confisco de bens, uma execução coletiva, totalmente contrária à natureza da recuperação judicial.

Ainda assim, mesmo que se perpasse por todos estes argumentos, e consiga se provar fraude ou abuso de direito, não há que se falar em aplicar a teoria da desconsideração, já que os credores irão receber o novo crédito pactuado, e por conta da própria pessoa jurídica. Não haverá prejuízo para o credor, e não se pode argumentar prejuízo causado pelo tempo de aguardo ou eventual diminuição ou parcelamento do crédito, uma vez que é da própria natureza do instituto, criado pelo legislador para atender valores e bens constitucionais de maior importância, como o da preservação da empresa, de modo que continue a exercer sua função social.

No caso da teoria menor, legitimada pelo contexto da súmula, esta se torna menos ainda aplicável, pelos mesmos motivos declinados para a teoria maior, e porque não possui previsão na Lei 11.101/05, e não pode ser aplicada da mesma forma que a teoria maior, que prescinde de texto expresso. O fato de ser prevista na legislação de defesa do consumidor e ambiental não atrai sua incidência para a legislação falimentar, já que estes diplomas tem aplicabilidade em microssistemas jurídicos específicos, e não de índole geral. Logo, por ser a legislação falimentar também de índole específica, torna-se inviável a analogia.

Desta forma, a aplicação da teoria menor da desconsideração na Justiça do Trabalho, e no âmbito da recuperação judicial, não possui qualquer embasamento, servindo meramente para privilegiar o credor trabalhista que for mais ágil, uma vez que a manobra não significa sequer que todos estes credores serão beneficiados. Pode ocorrer que insuficiência do patrimônio dos sócios, ou mesmo incúria do patrono da parte ou do magistrado.

Portanto, a súmula 480 apenas legitima um meio de burlar o concurso de credores na recuperação judicial, de modo totalmente tóxico ao ordenamento jurídico, já que abre margem para a aplicação sem fundamentos da teoria menor da desconsideração, o que causa maior insegurança jurídica do que normalmente já causa. Assim, a personalidade jurídica empresária é tomada como chacota, uma panaceia que pode ser desconsiderada de qualquer forma, ilegitimamente, da mesma forma que as disposições da Lei 11.101/05 são ignoradas.

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Sobre o autor
Clair Valverde Pereira

Mestrando em Direito Empresarial na Faculdade de Direito Milton Campos (Nova Lima).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Clair Valverde. A banalização da personalidade jurídica através da Súmula 480 do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4494, 21 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43567. Acesso em: 28 mar. 2024.

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