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A descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal

07/11/2015 às 12:38
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Ainda que excluído o rótulo de crime do art. 28 da Lei de Drogas, obviamente o tráfico ilícito de entorpecentes continuará sendo crime, equiparado a crime hediondo, bem como as drogas ilícitas continuarão a ser apreendidas.

Introdução

A discussão quanto à natureza jurídica do artigo 28 da Lei nº 11.343/06 nunca foi tão intensa como nos últimos dias, especialmente por conta do recente voto do Ministro Gilmar Mendes nos autos do Recurso Extraordinário nº 635.659/SP.

Entretanto, tais discussões tiveram início quando do advento da Lei 11.343, em 2006, tudo por conta da alteração do preceito secundário do crime de porte de drogas para consumo pessoal. Anteriormente, ainda na vigência da Lei nº 6.368/76 (antiga Lei de Drogas), o usuário de drogas estava sujeito a uma pena de detenção de seis meses a dois anos e ao pagamento de vinte a cinquenta dias-multa.

Com o advento da Lei 11.343/06, através de seu artigo 28, as penas para as mesmas condutas passaram a ser: (a) advertência sobre os efeitos das drogas, (b) prestação de serviços à comunidade e (c) medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo, momento em que a celeuma perante a doutrina foi instaurada.

Ademais, antes de adentrar propriamente na discussão quanto à natureza jurídica do art. 28 da Lei de Drogas, vale frisar que, dentre as cinco condutas descritas no mencionado artigo, não consta a conduta de mero uso da droga. Não por outro motivo, grande parte da doutrina prefere se referir ao art. 28 denominando-o de porte de drogas para consumo pessoal, e não simplesmente uso de drogas. Isso porque o Direito Penal, dentre seus diversos princípios norteadores, é também norteado pelo princípio da alteridade (ou transcendentalidade), segundo o qual proíbe a incriminação de atitude meramente interna, subjetiva do agente, por revelar-se incapaz de lesionar bens jurídicos. O fato típico pressupõe comportamento humano que ultrapasse a esfera individual do agente, bem como esteja apto a atingir o interesse de terceiro. Com isso, conclui-se por impossível a punição da autolesão pelo Direito Penal.


Bem jurídico tutelado pelo art. 28 da Lei 11.343/06

A saúde pública é o bem jurídico tutelado pela norma do art. 28 da Lei de Drogas, motivo pelo qual não confronta com o mencionado princípio da alteridade, já que a conduta do agente não se limita à própria esfera individual (não se pune o consumo em si) mas sim coloca em ameaça a saúde pública (por conta da circulação de entorpecente).

Trata-se de crime de perigo abstrato. Ademais, nesse sentido, após diversas discussões travadas pela doutrina e jurisprudência sobre eventual inconstitucionalidade nos crimes de perigo abstrato, o Supremo Tribunal Federal colocou uma pá de cal no assunto ao decidir que “a criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo o melhor (ou a única) escolha ou medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como por exemplo o meio ambiente, a saúde pública, etc”.[1]


Natureza jurídica do art. 28 da Lei de Drogas

Conforme alhures aludido, a discussão entorno da natureza jurídica da conduta de portar drogas para consumo pessoal surgiu após o advento da Lei 11.343/06, isso porque deixou de prever em seu preceito secundário o cárcere (e até mesmo a pena de multa).

Passou-se a “punir” o transgressor da norma do art. 28 da Lei de Drogas com sanções educativas, quais sejam, advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo.

Com isso, três correntes surgiram para discutir a natureza jurídica do art. 28 da Lei de Drogas:

Para uma primeira corrente, defendida por Luiz Flávio Gomes[2], houve verdadeira descriminalização formal e transformação em infração sui generis para a conduta de portar entorpecente para consumo pessoal, uma vez que leva em consideração a definição de crime estabelecida no art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei nº 3.914/41), cite-se:

Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas. alternativa ou cumulativamente.

Logo, segundo o renomado professor, o porte de drogas para consumo pessoal não seria mais “crime” por ausência de pena de reclusão ou detenção, passando a funcionar como infração sui generis de menor potencial ofensivo.

Uma segunda corrente, defendida por Alice Bianchini, entende que houve descriminalização substancial e transformação em infração de Direito Judicial. Teria ocorrido verdadeira abolitio criminis em relação à conduta de portar drogas para consumo pessoal, não mais pertencendo tal comportamento à tutela do Direito Penal, funcionando, entretanto, como uma infração tutelada por um Direito Judicial sancionador. Segundo o raciocínio da renomada autora, a pena é a essência do Direito Penal e, portanto, não havendo pena para o usuário, o art. 28 da Lei de Drogas não mais seria tratado como crime[3].

Por fim, o Supremo Tribunal Federal, se posicionando sobre a questão decidiu haver mera despenalização e manutenção do status de crime. Entendeu a Suprema Corte que, apesar de não haver pena privativa de liberdade, o art. 28 da Lei de Drogas continua sendo crime. Para o STF, a Lei de Introdução ao Direito Penal estabeleceu apenas um critério de distinção entre crime e contravenção, o que não impede que o legislador ordinário adote critérios diversos de distinção por força do art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, no qual transfere maior liberdade ao legislador infraconstitucional em estabelecer outros critérios que permitem a diferenciação entre crime e contravenção, in verbis:

Art. 5º, XLVI, da CF: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social e alternativa; e) suspensão e interdição de direitos.

Além disso, o STF leva em consideração a topografia do artigo 28 dentro da Lei de Drogas, no qual está inserido no Título III, Capítulo III, denominado “Dos Crimes e das Penas”.


O voto do Min. Gilmar Mendes (RE nº 635.659/SP)

Longe de finalizar a discussão quanto à natureza jurídica do art. 28 da Lei de Drogas, o voto do Ministro Gilmar Mendes através do Recurso Extraordinário nº 635.659/SP surge para trazer novos contornos à discussão à luz da Constituição Federal.

Trata-se de Recurso Extraordinário interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, no qual defende pela inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06, sendo que os principais argumentos foram:

  1. O art. 28 viola a intimidade e a vida privada constantes no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal, tendo em vista que a referida norma protege escolhas individuais no âmbito privado, desde que não ofensivas a terceiros (princípio da alteridade);
  2. “O art. 28 pressupõe a não irradiação do fato para além da vida privada do agente” (afronta ao P. da Lesividade). O Estado não está autorizado a penetrar no âmbito da vida privada, não pode intervir sobre condutas de tal natureza, vez que o indivíduo pode ser e fazer o que bem quiser, conquanto não afete concretamente direitos de terceiros.

Em contrapartida, o Ministério Público do Estado de São Paulo, em contrarrazões, argumentou que não haveria importância se o agente comete diretamente autolesão, já que o bem jurídico tutelado pela norma em debate é a saúde pública e, portanto, o agente acaba por atingi-la, ainda que indiretamente, visto que sua conduta, por si só, contribui para a propagação (tráfico) do vício no meio social. “Não há tráfico sem consumo”.

O mencionado RE encontra-se pendente de julgamento, entretanto, vale apontar os principais pontos do voto do Ministro Gilmar Mendes, digno de aplausos não apenas pela conclusão, mas, principalmente, pela riqueza de fundamentos e de análise aprofundada do direito comparado.

Por questões de didática, bem como considerando a riqueza de detalhes e profundidade do voto do Min. Gilmar mendes, elencaremos os principais fundamentos de seu voto e mencionaremos sua conclusão de maneira objetiva e simplificada. Eis os fundamentos:

(a) Para o min. Gilmar mendes, há contrariedade entre o meio (criminalização) e o fim (diminuição do consumo e do tráfico), isso porque o próprio projeto da Lei 11.343/06 não apresentou referência a dados técnicos quanto ao vínculo entre o porte de drogas para o consumo pessoal e a proteção ao bem jurídico que se pretendeu tutelar. Ao contrário, o mencionado projeto reconhece o usuário como uma das vítimas do tráfico de drogas, especialmente por conta de sua vulnerabilidade por conta da dependência química;

(b) A criminalização do porte para consumo revela-se em discordância com o princípio da proporcionalidade, uma vez que teria o status de crime, desprovido, entretanto, de pena e sim de medida educativa.

(c) Afronta ao princípio da alteridade. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes:

O uso privado de drogas é conduta que coloca em risco a pessoa do usuário. Ainda que o usuário adquira as drogas mediante contato com o traficante, não se pode imputar a ele os malefícios coletivos decorrentes da atividade ilícita.

Esses efeitos estão muito afastados da conduta em si do usuário. A ligação é excessivamente remota para atribuir a ela efeitos criminais. Logo, esse resultado está fora do âmbito de imputação penal. A relevância criminal da posse para consumo pessoal dependeria, assim, da validade da incriminação da autolesão. E a autolesão é criminalmente irrelevante.

[...]

“A criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.

(d) Afronta ao caráter subsidiário do princípio da intervenção mínima:

A exemplo de outros países, a prevenção do uso indevido de drogas, um dos princípios do sistema nacional de políticas públicas sobre drogas – art. 4º da Lei 11.343/06 – é uma finalidade estatal válida e pode ser alcançada, com maior eficácia, por meio de um vasto leque de medidas administrativas.

(e) Violação aos direitos à intimidade e à vida privada:

[...]A criminalização do porte de drogas para uso pessoal afigura-se excessivamente agressiva à privacidade e à intimidade.

(f) A ausência de critérios objetivos para distinguir o usuário do traficante viola o princípio de não culpabilidade:

A presunção de não culpabilidade – art. 5º, LVII, da CF – não tolera que a finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida. A finalidade é um elemento-chave para a definição do tráfico. A cadeia de produção e consumo de drogas é orientada em direção ao usuário. Ou seja, uma pessoa que é flagrada na posse de drogas pode, muito bem, ter o propósito de consumir.

Com base em tais fundamentos, o Min. Gilmar mendes conclui da seguinte forma:

Assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional.

Não obstante, o Min. Gilmar Mendes não só vota pela inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas, sem redução de texto, mas também apresenta possíveis alternativas como viáveis ao combate do porte de drogas para consumo pessoal, tais como aplicações de medidas administrativas e/ou cíveis, tomando por base o exemplo de diversos países que afastaram a tutela penal de tais casos e que apresentam resultados satisfatórios. Obviamente, o ínclito Ministro reconhece que haveria a necessidade de um estudo de campo mais aprofundado em nosso país, levando-se em consideração todas as características do problema no Brasil, utilizando-se do direito comparado apenas como passo inicial para a solução do problema da dependência química. Ou seja, possível solução não deverá ser fruto de imediatismo, havendo a necessidade de estudo de diversos fatores.

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Entretanto, apresenta como possível medida imediata (e vota nesse sentido) a aplicação do art. 28 da Lei de Drogas, em caráter transitório, sem qualquer efeito de natureza penal, mas apenas como medidas educativas, até o advento de legislação específica.

Por derradeiro, sem deixar de enfrentar as questões práticas da celeuma, o Min. Gilmar Mendes aponta solução transitória para os casos em que a polícia vier a flagrar agentes portando entorpecentes para consumo pessoal (ou não) até ulterior legislação específica:

Remanesce, contudo, a possibilidade de prisão pela posse, na forma do art. 50, caput, do mesmo diploma legal, quando o policial entender que a conduta se qualifica como tráfico, nos termos do art. 33 da referida Lei.

Diante dessa possibilidade, ou seja, quando o policial entender que não se trata de posse para uso pessoal, passível de simples notificação, nos termos do art. 48, §2º, e realizar a prisão em fragrante, temos que a imediata apresentação do preso ao juiz conferiria maior segurança na distinção entre traficante e usuário, até que se concebam, em normas especificas, o que se seria recomendável, critérios revestidos de maior Objetividade.


Conclusão

Através do brilhante voto do Min. Gilmar Mendes, podemos vislumbrar que a Suprema Corte caminha no sentido da descriminalização do porte de drogas para o consumo pessoal.

Importante ressaltar que não se trata de legalizar o uso de entorpecentes, tampouco de legitimar o usuário quando do consumo de drogas, mas apenas retirar a tutela penal de tal conduta, transferindo-a para a tutela do direito administrativo e/ou civil, em respeito ao princípio da intervenção mínima.

Por fim, ainda que excluído o rótulo de crime do art. 28 da Lei de Drogas, obviamente o tráfico ilícito de entorpecentes continuará sendo crime, equiparado a crime hediondo, bem como as drogas ilícitas continuarão a ser apreendidas.


Bibliografia

BIANCHINI, Alice. Lei de Drogas Comentada. Coordenador: Luiz Flávio Gomes. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 3ª ed. Salvador: Editora Jus Podivm. 2015.

STF – HC:104.410/ RS. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data do julgamento: 06/03/2012. Segunda Turma. Data de publicação: DJe-062.


Notas

[1] STF – HC:104.410/ RS. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data do julgamento: 06/03/2012. Segunda Turma. Data de publicação: DJe-062.

[2] GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas Comentada. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 111.

[3] BIANCHINI, Alice. Lei de Drogas Comentada. Coordenador: Luiz Flávio Gomes. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 117.

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Sobre o autor
Diego Luiz Victório Pureza

Advogado. Pós-Graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera Uniderp LFG. Pós-Graduando em Docência do Ensino Superior pela Universidade Anhanguera Uniderp - LFG. Pós-graduando em 'Corrupção: controle e repressão a desvios de recursos públicos'. Membro da Comissão 'OAB vai à escola' da 36ª Subseção da OAB/SP. Palestrante e Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PUREZA, Diego Luiz Victório. A descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4511, 7 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44210. Acesso em: 29 mar. 2024.

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