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A nova faceta direito penal do inimigo produzindo inimigos do sistema

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O clamor pelo direito penal máximo produz um ciclo insustentável que se encerra e se renova cada vez que cai no chão um corpo sem alma.

 A foto era de um carro novo amassado pela pancada com um corpo humano. O sangue vermelho criava rastros na cor preta do automóvel lembrando no luxo a sujeira de um pobre, ladrão, fedido, um corpo morto e, agora sim, sem alma, estraçalhado no chão após uma tentativa de assalto. O título da mensagem que compartilhava aquela foto dizia “meu desejo era ter feito o mesmo com o cara que me assaltou”. A autora da frase, uma advogada pós-graduada, autointitulada “defensora dos animais”. Os comentários lançados abaixo difundiam o ódio contra os direitos humanos, clamavam por mais direito penal e comemoravam o assassinato do ladrão.

Nenhuma lamentação! Ninguém parecia ter dó daquele corpo “sem alma” espatifado no chão. Nem ao menos daquela da senhora que dirigira o veículo “sob o domínio de violenta emoção” após uma tentativa de assalto e que praticou esse bruto ato do qual, talvez, esteja profundamente arrependida. A “desgraça” ali retratada parecia indiferente no meio da vingança comemorada.

Sem o “talvez” acima colocado na situação da autora do crime (sim, foi um crime), as pessoas curtiram, comentavam e comemoraram a tragédia como se estivessem vibrando em um gol de virada em final da copa do mundo. Aqueles que desejavam estar no lugar daquela pobre senhora tinham a certeza de que “pobre” ela só era na conduta e jamais na aplicação da lei penal...

Aquele era o retrato do nosso retrato social: o ódio compartilhado e o clamor pelo direito penal como a última esperança do estado democrático de direito. Uma ilusão. Apenas o reforço da sistemática de “etiquetamento” de indivíduos, uma rotulação que define, dentro da violação da norma penal, os sujeitos considerados perigosos para o sistema, estereótipos criminosos que precisam ser neutralizados em nome do bem comum. É a essência de uma corrente de pensamento denominada de Labelling Approach, também conhecida com o nome “Teoria da Reação Social”, delineada por Howard S. Becker, em sua obra Outsiders.


Teoria do Etiquetamento/Teoria da Reação Social/ Labelling Approach (Howard S. Becker)

A partir dessa corrente tem-se uma dupla estigmatização. Primeiro com a definição da norma em abstrato e suas sanções tendo como destinatários principais os indivíduos pertencentes a classe marginalizada. Posteriormente, a aplicação das sanções, que é, do mesmo modo, direcionada, e os limites ao poder punitivo passam a ser desrespeitados para essa parcela da população. [1]

Tudo isso acontece com o apoio do senso comum. É o deturpado senso de justiça apontando o dedo para a vitima do atropelamento doloso, que possivelmente merecia ter sua vida ceifada em um conflito de valores com um bem material. Naquele caso nem parece ter sido um homicídio... Não, não foi um homicídio. Na verdade, face ao princípio da presunção de inocência, o rótulo de criminoso ninguém deveria ter. Mas, a cor daquele rapaz atropelado no chão e a condição social em que estava inserido, antecipavam a punição de sua conduta e a sentença era de morte. Não houve para aquele jovem a chance de se defender, não lhe foi ofertada a possibilidade de tentar fazer diferente.

Segue-se, então, o que a doutrina denominou de “desviação secundária”, um processo através do qual o indivíduo “etiquetado” passa a aceitar a rotulação imposta pelo sistema (role engulfment) como reflexo da exclusão social ingressando na carreira criminosa para, então, incorporar uma retaliação ao Estado que o vê como inimigo e cumpre o seu papel de garantidor de direitos apenas para uma parcela da população, enquanto a parcela excluída recorre às facções criminosas para a sua proteção. [2]                      

Direito Penal do Inimigo

A principal consequência dessa sistemática é a construção de um círculo isolante entre o idealizado cidadão de bem e os inimigos criados pelas estruturas sociais. Nesse isolamento, fica à margem toda a classe pobre, raça marginalizada historicamente. A linha do Direito Penal do fato cede espaço ao direito penal do autor, seguindo a lógica do Direito Penal do Inimigo de Jackobs.

Juarez Cirino dos Santos explica a teoria do Direito Penal do Inimigo afirmando que Jakobs propõe:

“uma distinção entre cidadãos e inimigos no âmbito da imputação penal, deste modo: a) o cidadão é autor de crimes normais, que preserva uma atitude de fidelidade juridical intrínseca, uma base subjetiva real capaz de manter as expectativas normativas da comunidade, conservando a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque não desafia o sistema social; b) o inimigo é autor de crimes de alta traição, que assume uma atitude de insubordinação jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de produzir um estado de Guerra contra a sociedade, com a permanente frustração das expectativas normativas da comunidade, perdendo a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social.” [3]

Do autoritarismo Cool

A lógica do direito penal do inimigo é fomentada pela situação emblemática narrada no início desse texto, pois a com a difusão do ódio pelos meios de comunicação, sobretudo pelas redes sociais, tem-se produzido e identificado mais inimigos comuns do que a esperança na paz social, o que deságua na maximização do direito penal, com novos contornos para o poder punitivo, exacerbando poderes em um paradoxo sem fim, como se o nosso passado ditatorial houvesse construído uma realidade presente que pudesse servir de exemplo para o futuro. São as facetas do “autoritarismo cool” fruto de um sistema de periculosidade presumida. Nas palavras de Zaffaroni: “É cool porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e para não perder espaço publicitário. (Zaffaroni, 2007, p.69, [grifo do autor])”

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A pior face desse “autoritarismo cool” é o reflexo dentro do próprio judiciário, ora recuando no tempo da legislação penal com a criação de leis mais severas sempre atendendo aos pleitos da punibilidade, ora retrocedendo jurisprudencialmente, vide o atropelamento da presunção de inocência por parte do STF quando voltou a permitir a utilização de inquéritos policiais e ações em curso para agravar a pena base. Além disso, vivemos um retrocesso que representa um verdadeiro desrespeito a todo esforço da criminologia crítica na edição a Lei n. 12.411/11, através de prisões arbitrárias e da desconsideração da existência das alternativas às prisões provisórias, distanciando o processo penal cada vez mais dos mandamentos constitucionais e do postulado da presunção de não culpabilidade. [4]

Nessa lógica, o estado isola, o crime batiza, a polícia mata, o médico não salva, e quando mesmo assim o “inimigo” sobrevive a sociedade é quem mata. Não importa a idade, morre preto na favela, morre criança branca na imigração, cai menina de onze anos apedrejada no chão vítima do ódio cristão. E a sociedade, irresignada, ainda pede mais punição.

Com essa banalização do direito penal não só a norma definha diante de sua contravenção, mas se esvai toda a possibilidade de se promover a paz social. Segue-se, então, um ciclo insustentável, que se encerra e se renova cada vez que cai no chão “um corpo sem alma” com as comemorações de “gol de virada.”


REFERÊNCIAS

[1] Becker, Howard S. 2008 [1963]. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar.

[2] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas Mãos da Criminologia – O Controle Penal

[3] SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. 2009. Disponível em: . Acesso em: 25.09.2015.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl.PIERANGELI, José Henrique.Ma- nual de direito penal brasileiro.Parte geral.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011  

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Sobre a autora
Monaliza Maelly Fernandes Montinegro

Defensora Pública do Estado da Paraíba. Foi Servidora Pública Federal no Instituto Nacional do Seguro Social - Analista com formação em Direito e exerceu o cargo de Técnica do seguro social. Formação em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Autora de artigos Jurídicos em periódicos como Jornal GGN, revista ContiOutra, site Bastidores na Política, site BemBlogado, JornaldeFato, na página do Rapper Emicida e na revista da Academia de Letras do Brasil/AM. Atualmente, colunista da revista on line justificando.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTINEGRO, Monaliza Maelly Fernandes. A nova faceta direito penal do inimigo produzindo inimigos do sistema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4588, 23 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45963. Acesso em: 25 abr. 2024.

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