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O servidor público, a voz de prisão e o abuso de autoridade

18/03/2017 às 15:20
Leia nesta página:

O artigo trata de um problema corriqueiro, qual seja, a voz de prisão dada, inadequadamente, por autoridades públicas, com sua análise à luz do princípio da isonomia e da legislação aplicável à espécie.

I – PONDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Embora o princípio da igualdade esteja mais do que consagrado na ordem jurídica nacional, com previsão expressa no famoso e sempre repetido artigo 5º da Constituição Federal, é certo que ainda hoje a sociedade brasileira é fortemente marcada por abusos relacionados à classe econômica ou cargo público exercido por determinados indivíduos (juízes, promotores, procuradores, delegados, militares de alta patente etc.).

Justamente por isso, não raras vezes, nós nos deparamos com manchetes de jornais estarrecedoras, com notícias de que determinados servidores públicos, invocando o poder de seu cargo, dão voz de prisão a cidadãos comuns, em verdadeiros atos de abuso de autoridade.

Com efeito, há que se esclarecer ao leitor que o cidadão que teve decretada sua prisão acaba sendo vítima de crime de abuso de autoridade cometido pelo servidor público, que é tão cidadão quanto ele. E, em razão do cometimento da infração penal, é a vítima do abuso que deveria dar a voz de prisão para a chamada autoridade pública, e não o contrário, conforme restará adiante demonstrado.


II – DAS PREVISÕES LEGAIS RELATIVAS À PRISÃO E AO ABUSO DE AUTORIDADE

Desde logo, cumpre consignar que, com relação ao assunto tratado, toda a interpretação do sistema jurídico deve se dar a partir do previsto no artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal, cuja redação segue abaixo:

“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.” (g.n.)

O texto constitucional, portanto, é claro ao estabelecer que a regra geral do sistema jurídico brasileiro é a inviolabilidade do direito à liberdade de todos os cidadãos, admitindo a sua restrição em apenas três situações: (1) em caso de flagrante delito; (2) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente; e, (3) nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar.

A esse respeito, cumpre trazer à baila os comentários ao referido dispositivo constitucional constantes da obra Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:

“(...) O direito à liberdade é relativo à qualidade do ser humano enquanto sujeito de direito. Portanto, a regra geral do sistema constitucional brasileiro quanto à prisão, em razão do direito de todos à liberdade, é a de que ninguém deverá ser preso (CF 5º, LXI), a não ser nas exceções estritas previstas na CF.”.

Ressaltamos, desde logo, que a terceira hipótese especificada acima não se aplica ao cidadão comum, ou seja, trata-se de disposição específica dirigida aos servidores públicos militares, que podem (apenas eles) ter a prisão decretada em caso de transgressão militar ou crime propriamente militar, com previsão na legislação militar.

Portanto, o cidadão comum (excluído, nesse ponto, o servidor público militar) somente pode ser preso em duas únicas hipóteses: em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (leia-se: juiz togado).

Analisaremos, pois, essas duas hipóteses, começando pela possibilidade da prisão em flagrante delito.

Inicialmente, chamamos a atenção para o fato de que qualquer pessoa, autoridade pública ou não, poderá decretar a prisão de um indivíduo que esteja em situação de flagrante delito, nos estritos termos do disposto no artigo 301 do Código de Processo Penal:

“Art. 301 – Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.” (g.n.)

É isso mesmo. Qualquer pessoa (do povo) pode dar a voz de prisão a outro cidadão que esteja em flagrante delito, sendo dever das autoridades policiais e seus agentes darem cumprimento a essa determinação.

Cumpre esclarecer que se considera em flagrante delito quem esteja cometendo uma infração penal, tenha acabado de cometê-la, seja perseguido após o cometimento de um crime em situação que faça presumir ser o autor da infração penal, ou, finalmente, seja encontrado, logo após o cometimento de um crime, com objetos que façam presumir o cometimento da infração penal. Nesse sentido é a redação do artigo 302, do Código de Processo Penal, in verbis:

“Art. 302 – Considera-se em flagrante delito quem:

I – está cometendo a infração penal;

II – acaba de cometê-la;

III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.”.

É certo que há expressões no texto legal, como, por exemplo, “logo depois” (art. 302, IV, do CPP), que dão margem a diversas interpretações. Porém, a interpretação de pontos como esse já está bem definida pela doutrina e pela jurisprudência pátria, não sendo o caso de adentrarmos a essas questões, sob pena de nos desviarmos do escopo do presente artigo.

Portanto, considerando o quanto explicitado acima, é certo que a decretação da prisão em flagrante, diferentemente do que muitos acreditam, pode ser feita por qualquer pessoa, e não apenas por determinadas autoridades (juiz, promotor, procurador, delegado etc.).

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Em outras palavras, o cidadão comum tem exatamente o mesmo direito do que qualquer autoridade pública de decretar a prisão de um sujeito que esteja em situação de flagrante delito.

Ainda assim, contudo, é certo que há determinadas autoridades que, aproveitando o desconhecimento dos cidadãos com relação ao ordenamento jurídico, utilizam-se do poder de seu cargo para intimidar as pessoas, inclusive, ameaçando-as de prisão diante de qualquer entrevero, como em uma discussão, ou, simplesmente, para se gabar.

É o caso, por exemplo, do professor de direito de uma universidade de São Paulo, que, utilizando do poder de seu cargo público, ameaçou dar voz de prisão a uma aluna em sala de aula durante uma discussão, ou, ainda, do juiz de direito que deu voz de prisão aos funcionários de uma empresa aérea após ser avisado que não poderia embarcar em seu voo pois o check-in havia sido encerrado, casos emblemáticos e recentes que viraram manchetes nos jornais, dentre tantos outros.

Com relação ao último exemplo acima, é mais do que óbvio que o titular do cargo público (juiz de direito), em tese, cometeu crime de abuso de autoridade, tipificado na Lei nº 4.898/1965.

Em razão disso, como exposto acima, o correto seria que os funcionários da empresa aérea dessem voz de prisão ao referido servidor público (juiz de direito), em razão do suposto cometimento de crime em flagrante (abuso de autoridade).

Tecidas essas ponderações, passamos para a segunda (e última) situação em que um cidadão comum pode ser preso, em decorrência de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. A autoridade competente para determinar essa prisão é o juiz togado (juiz de direito ou juiz federal) e apenas ele.

É isso mesmo. Ao contrário do que muitos pensam, afora a hipótese de prisão em flagrante, apenas o juiz togado tem o poder de decretar a prisão de um cidadão comum, sendo condição indispensável para essa modalidade de prisão que ela ocorra por ordem escrita (o chamado mandado de prisão) proferida no bojo de um processo ou procedimento, sendo que essa determinação deve ser devidamente fundamentada, inclusive, na legislação aplicável à espécie.


III – CONCLUSÃO

Concluímos, pois, que, em regra, o cidadão comum apenas pode ter sua prisão decretada em duas únicas hipóteses: em caso de flagrante delito; ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.

No primeiro caso, qualquer do povo pode decretar a prisão de um indivíduo que esteja em situação de flagrante delito, seja ele detentor de cargo público ou não, sendo dever das autoridades policiais darem cumprimento a essa determinação.

Já a segunda hipótese de prisão somente pode ser decretada por um juiz togado, mediante ordem escrita e devidamente fundamentada, proferida no bojo de um procedimento (processo criminal, inquérito policial etc.).

Logo, as autoridades públicas (juiz, promotor, procurador, delegado, policial etc.) têm exatamente o mesmo direito de qualquer outro cidadão de decretar a prisão de um indivíduo que esteja em situação de flagrante delito. Afora essa situação, a decretação da prisão somente pode ser determinada por um juiz togado, mediante ordem escrita e fundamentada, ainda que a requerimento de outro servidor público (delegado, por exemplo).

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Sobre o autor
Rafael Camargo Trida

Procurador do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET (2010). Especialista em Direito do Estado pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado - ESPGE (2013). Diretor de Comunicação da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo - APESP (biênio 2012/2013). Professor da Escola da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo - EAP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRIDA, Rafael Camargo. O servidor público, a voz de prisão e o abuso de autoridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5008, 18 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52956. Acesso em: 18 abr. 2024.

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