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Propósito negocial: uma violação à limitação constitucional do poder de tributar

05/04/2017 às 15:50
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O planejamento tributário constitui uma possibilidade de o contribuinte minimizar a excessiva carga existente no Brasil. Todavia, atualmente, percebe-se uma tendência a obstar essa alternativa, utilizando-se, por exemplo, da teoria do propósito negocial.

Propósito negocial: uma violação à limitação constitucional do poder de tributar


Introdução

Os índices da carga tributária brasileira têm crescido ao longo dos anos, promovendo custos tributários excessivamente onerosos em todas as esferas de governo. Tal cenário acaba por reduzir a competitividade e a lucratividade das empresas aqui instaladas, criando um ambiente improdutivo para os negócios.

Como forma de mitigação dos efeitos devastadores desta realidade, os contribuintes empreendem esforços para organizar e executar planejamento tributário, conduzindo suas ações e operações de maneira a tentar, licitamente (isto é, com observância da lei), eliminar ou reduzir a incidência de tributos em suas atividades.

Todavia, ocorre que, tanto o Fisco quanto a jurisprudência administrativa têm procurado ampliar o alcance da norma tributária, a fim de desconsiderar negócios jurídicos. Para tanto, a utilização da teoria do propósito negocial mostra-se bastante recorrente, embora não haja previsão legal para tal abordagem. É esta problemática que se passa a analisar.


Pressupostos constitucionais

 As mais expressivas declarações do movimento constitucionalista denotavam que a formação do Estado constitucional perpassasse pela manifestação da soberania popular em um documento escrito, dotado de supremacia e nomeado Constituição, o qual, através da consagração de direitos e da limitação do poder, fundamentaria o próprio Estado. 

Tal compreensão orientou a elaboração das Constituições no mundo ocidental, o que, certamente, culminou no desenvolvimento da Constituição Federal brasileira de 1988 (CF/88). Uma das expressões mais notáveis da influência do constitucionalismo na CF/88 é a consagração do elemento da rigidez das normas constitucionais, de modo que a alteração destas normas obedece processo diverso e mais rigoroso do que quando da modificação das demais normas do ordenamento jurídico.

No âmbito tributário, este tratamento pode ser sentido na própria disciplina detalhada da competência tributária dada pela CF/88, a qual reflete um dos poderes do Estado, o poder de tributar, e que, portanto, resulta em limitações de natureza constitucional sobre a matéria para o legislador ordinário. 

Tal recurso acaba por proteger o contribuinte dos arbítrios estatais para instituição de exações, uma vez que, em um sistema constitucional rígido, mais bem delimitado, o contribuinte encontra mais amparos para realizar o planejamento tributário com segurança. 


Elisão e evasão fiscal

Cumpre salientar que o conceito de planejamento tributário não guarda nenhuma correlação com a utilização de meios ilícitos para burlar a tributação. Nesta acepção, é necessário esclarecer os conceitos de elisão e evasão fiscal. Conforme doutrina de Ives Gandra Martins, temos que:

“A elisão fiscal, portanto, é procedimento utilizado pelo sujeito passivo da relação tributária, objetivando reduzir o peso da carga tributária, pela escolha, entre diversos dispositivos e alternativas da lei, daqueles que lhe permitem pagar menos tributo.

Não o mesmo em relação à evasão fiscal, que adentra o campo da sonegação e falta de recolhimento tributário, haja dolo ou culpa, sendo que, na sua faceta dolosa, hão de se considerar as formas previstas no Direito pátrio, como simulação, fraude e sonegação.

No Direito brasileiro, a elisão é permitida e a evasão, além de representar infração administrativa, muitas vezes implica delito penal, desde que a lei a defina como tal”. 

Assim, a elisão fiscal é a forma pela qual o contribuinte adota as vias possíveis e necessárias para minimizar a incidência tributária de forma lícita, eliminando-a ou optando pela forma menos onerosa. 

Tal delimitação corresponde ao conceito de planejamento tributário, que é uma das formas utilizadas pelo contribuinte para buscar maior eficiência tributária, minimizando os efeitos da elevada carga tributária, como a existente no Brasil. 


Teorias de análise do sistema constitucional tributário

Conforme exposto anteriormente, o sistema constitucional brasileiro encontra fundamento na CF/88, com precisa limitação do poder de tributar a partir da delimitação das competências tributárias. Diante deste caráter determinante das previsões constitucionais para o campo tributário, é possível afirmar que a regra matriz de incidência tributária começa a ser construída no âmbito constitucional. 

Segundo a teoria clássica, a norma tributária resultante desta formulação deverá prever determinada ocorrência que, se e somente se coincidir com o fato correspondente ocorrido no mundo real, fará nascer a obrigação de pagar tributo. 

Assim, há subsunção do fato à norma, de modo que não será admitida integração por analogia para que a norma implique a incidência de tributo não previsto para o caso concreto, sob pena de desrespeito à segurança jurídica, princípio fundamental do Estado constitucional.

Veja-se o posicionamento de Heleno Torres:

“A preeminência constitucional do Sistema Tributário Nacional é superna e dela decorrem os mais variados efeitos, entre outros, o mais significativo, que é o compromisso de efetividade do princípio da segurança jurídica em matéria tributária nas suas distintas funções (certeza, estabilidade sistêmica e confiança legítima). De fato, o princípio do sistema tributário não tem simplesmente a função de instituir e coordenar o conjunto de todos os tributos em vigor. Trata-se de um subsistema constitucional – da constituição (material) tributária – dirigido à concretização das garantias e princípios constitucionais preestabelecidos para proteção de direitos fundamentais ao tempo do exercício das competências materiais tributárias. E todo esse esforço tem como único propósito conferir segurança jurídica aos contribuintes e às unidades do federalismo em face do exercício do chamado “poder de tributar” do Estado”.  

Contudo, é possível, ainda, apontar, outra teoria que busca esclarecer a incidência da norma tributária. Trata-se da teoria moderna, endossada por Marco Aurélio Greco, a qual, a partir do princípio constitucional da capacidade contributiva, potencializa o alcance da norma tributária para alcançar as manifestações de riqueza do contribuinte equivalentes à ocorrência nela prevista.

Esta teoria funda-se no ideal da solidariedade, pugnando que a economia indevida de tributos prejudica a arrecadação do Estado e, consequentemente, a distribuição dos recursos à sociedade. Assim, para esta corrente, só há direito de o contribuinte pagar menos tributo quando o objetivo principal da ação não tenha o viés fiscal, isto é, quando a decisão do contribuinte tenha motivação extratributária preponderante.

Com respaldo nas premissas de que (1) a Constituição está calcada na proteção do contribuinte e na limitação do poder de tributar e de que (2) a legalidade é o  princípio norteador da criação de obrigação tributária (Art. 150, I, da CF/88 c/c art. 9º, I, do CTN), parece correto afirmar que o alargamento de preceito ilegal para alcançar hipóteses não previstas originalmente pela norma tributária, embora seja incentivado por parte da doutrina e por parcela significativa da jurisprudência administrativa, é inconstitucional.


Propósito negocial

Também se coadunando com a contraposição à finalidade de minorar a incidência de tributos evidenciada no tópico anterior, a ampliação do poder de tributar do Estado pode ser percebida na importação, sem previsão legal, da teoria do propósito negocial pela jurisprudência administrativa brasileira.

Surgido na jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana, tal conceito destina-se a fundamentar a desconsideração de negócios jurídicos fundados em arranjos que não fazem sentido do ponto de vista estritamente empresarial, considerando-se como resultado final a economia de tributos. 

Isto quer dizer que se passa a questionar a legitimidade de determinada operação, analisando se ela seria empreendida pelo contribuinte mesmo que não fossem obtidas vantagens tributárias, uma vez que o simples animus egoístico do contribuinte para economizar tributo desrespeitaria a solidariedade e a capacidade contributiva.

A título exemplificativo, destaca-se julgamento de notória relevância nacional realizado em maio do ano corrente pela 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF que se utilizou de tal fundamento. No caso concreto, os Conselheiros, por maioria, entenderam que os atos societários praticados revelaram-se desprovidos de propósito negocial, tendo como único objetivo deslocar para os sócios, mediante o instituto da incorporação de ações, o ganho de capital auferido pela sociedade na liquidação de seu investimento. Veja-se:

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“(...) Os motivos são preponderantemente de cunho tributário, primeiro porque, ao formalizar a incorporação de ações da E. Johnston pelo Banco Itaú, as pessoas físicas, sócias da referida empresa, receberiam em troca ações do Banco que posteriormente seriam trocadas pelas da Itaú Holding com as quais subscrever-se-ia o capital da IUPAR, livrando a empresa do ganho de capital decorrente da “alienação” via incorporação de ações dos seus ativos para a incorporadora (...)”.

Assim, os Conselheiros afirmaram que é lícito ao Fisco desconsiderar atos de natureza formal, isto é, praticados exclusivamente para evitar a incidência da tributação devida. Ainda, aduziram que, como a reorganização societária deu-se por meio de incorporação de ações do grupo, verificou-se a ocorrência de ganho de capital tributável, sendo devida a incidência do IRPJ e da CSLL na hipótese dos autos.

Cabe ressaltar que, para identificar a existência de propósito negocial em uma operação, aponta-se a utilização de determinados critérios, quais sejam: (1) o elemento temporal, para reconhecer o tempo necessário para se realizar uma transação e o efetivamente despendido, (2) a independência das partes, para avaliar se a transação foi realizada entre partes relacionadas e (3) a coerência da operação, a fim de verificar a compatibilidade da operação com o objeto social da empresa.

Ocorre que tais parâmetros são meramente informativos, de modo que não evidenciam em absoluto se houve ou não propósito negocial em determinada operação efetivada pelo contribuinte no mundo real, devendo a análise do caso concreto sobressair a meros padrões abstratos artificialmente concebidos.

Para além desse ponto, a própria utilização de tal doutrina no cenário brasileiro esbarra nos pressupostos que fundamentam o Sistema Tributário Nacional. Por certo, conforme exposto anteriormente, o princípio da legalidade orienta a criação da norma tributária, de modo que a vedação a determinado planejamento tributário deve vir através da legislação. 

É fundamental a formalização em lei daquilo que é indevido, não sendo suficiente a mera interpretação do que pode ser descabido, uma vez que o acolhimento ilimitado do instituto sem correspondência legislativa resulta na própria erradicação da possibilidade de se elaborar e executar planejamento tributário no Brasil, dado que toda e qualquer estrutura implementada pelo contribuinte na condução de seus negócios será passível de desconsideração e tributação pelo Fisco.

Cumpre ressaltar, ainda, que a análise das peculiaridades do nosso sistema fornece as premissas e a conclusão para o estudo da norma tributária e do planejamento tributário no Brasil, não podendo o ordenamento pátrio adotar irrestritamente critérios estrangeiros que possuem origem em sistemas constitucionais diferenciados. 

Por fim, cabe registrar que a mais recente tentativa de incorporar esse conceito em nosso ordenamento jurídico veio através da MP nº 685/2015, que, em seu art. 7º, I, obrigava os contribuintes a informar à Receita Federal sobre seus planejamentos fiscais feitos “sem razões extratributárias relevantes”.

Tal normatização foi avidamente combatida pela doutrina, chegando a ter sua constitucionalidade questionada judicialmente por meio da ADI 5.366/DF ajuizada no Supremo Tribunal Federal. 

Felizmente, quando da conversão da referida Medida Provisória na Lei nº 13.202/2015, tal dispositivo não restou reproduzido, o que pode representar, talvez, uma conscientização do legislador da limitação constitucional que se impõe em relativizar garantias individuais para atender a realização de finalidades sociais.


Referências bibliográficas

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TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: Metódica da Segurança jurídica do Sistema constitucional Tributário. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

MARTINS, Ives Gandra. Elisão e evasão fiscal. v.13. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. 

SCHOUERI, Luís Eduardo (coord.). FREITAS, Rodrigo de (org.). Planejamento tributário e o “propósito negocial”. Mapeamento de decisões do Conselho de Contribuintes de 2002 a 2008. São Paulo: Quartier Latin, 2010. 

CANÁRIO, Pedro. Norma que coíbe o planejamento tributário visa combater a sonegação, afirma PGR. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-06/mp-tributa-planejamento-fiscal-medida-sonegacao-pgr>. Acesso em 14 de novembro de 2016.

MOREIRA, João Paulo Aguiar. Cortes devem decidir entre planejamento tributário e propósito negocial. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jul-10/joao-paulo-moreira-cortes-rever-uso-proposito-negocial>. Acesso em 14 de novembro de 2016.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PONTES, Kamila. Propósito negocial: uma violação à limitação constitucional do poder de tributar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5026, 5 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54427. Acesso em: 29 mar. 2024.

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