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Novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas no Brasil.

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09/05/2017 às 15:28
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Esta pesquisa almeja a construção de um novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas no Brasil, partindo de um diálogo entre a interpretação jurídica, as políticas públicas e as instituições econômicas.

RESUMO: Esta pesquisa almeja a construção de um novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas no Brasil, partindo de um diálogo entre a interpretação jurídica, as políticas públicas e as instituições econômicas. Com este desiderato, inicialmente examina a legitimidade democrática da jurisdição no sistema de freios e contrapesos estabelecido pela Constituição de 1988. Nesse sentido, estuda a natureza da função exercida pelo Judiciário, cotejando-a com os demais centros decisórios do regime democrático. Ademais, discute a forma de legitimação das decisões judiciais no sistema brasileiro atual, abordando os limites jurídicos e políticos impostos para a argumentação. Em seguida, aprofunda o papel exercido pelo magistrado no processo de recuperação de empresas, de modo a investigar eventuais distinções com relação às demandas de natureza diversa. Trata, então, do local adequado para a implementação da política pública de recuperação de empresas de acordo com o sistema da Lei nº 11.101/2005, examinando se há alguma peculiaridade em comparação com as demais políticas públicas. Ainda, perscruta se há uma forma específica de fundamentação das decisões em matéria de recuperação de empresas, objetivando o desenvolvimento de um instrumental analítico que auxilie na construção de um método capaz de conciliar os diversos interesses envolvidos nesse tipo de lide. Por derradeiro, expõe as conclusões do trabalho relativas à necessidade ou não de um novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas e, em caso positivo, se deve ser desenvolvido a partir das propostas oferecidas.

Recuperação de Empresas. Política Pública. Análise Jurídica da Política Econômica.

SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO..2 A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JURISDIÇÃO.2.1 A FUNÇÃO POLÍTICA DO MAGISTRADO NO SISTEMA BRASILEIRO DE FREIOS E CONTRAPESOS.2.2 O ENGAJAMENTO NA POLÍTICA PÚBLICA COMO FATOR DE LEGITIMAÇÃO JURISDICIONAL.. 3 O MAGISTRADO RECUPERACIONAL COMO AGENTE RESPONSÁVEL PELA IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA.. 3.1 O JUDICIÁRIO ENQUANTO ARENA ELEITA PELO LEGISLADOR PARA A EXECUÇÃO DA POLÍTICA.. 3.2 A ADEQUAÇÃO DA DECISÃO QUE TUTELA O INTERESSE DA COLETIVIDADE À LUZ DE DADOS SOCIOECONÔMICOS: UMA POSSÍVEL APROXIMAÇÃO COM A METODOLOGIA DO DIREITO CONCORRENCIAL.. 4 CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS.                                          


1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, um dos temas mais debatidos pelos juristas consiste na forma de implementação das políticas públicas necessárias para a garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, bem como na participação do Judiciário nesse processo[1]. Nesse contexto, levando-se em consideração o fato de que a efetividade desses direitos interfere inexoravelmente no desenvolvimento da política econômica nacional, distintos modelos de racionalidade jurisdicional têm sido apresentados como adequados. Em apertada síntese, é possível fazer referência a quatro abordagens distintas para a resolução das demandas: interpretação formal; interpretação substantiva; ponderação de valores; e Análise Econômica do Direito (AED). A despeito da existência de diversos aspectos relevantes em cada um desses modelos, entende-se, de uma forma geral, que nenhum deles logrou efeitos plenamente satisfatórios para viabilizar a harmonia entre a segurança jurídica, a fruição dos direitos fundamentais, o desenvolvimento nacional e a construção de uma sociedade em bases mais equitativas[2].  

Com efeito, os defensores da interpretação formalista concentram seus esforços na análise dos dispositivos constantes na Constituição e na lei, não atribuindo grande relevância para as peculiaridades fáticas, mormente no que tange à construção da norma. Interessante observar a utilização nessa linha argumentativa do princípio da reserva do possível, fundado na distinção consagrada na Alemanha de direitos negativos ou de defesa e positivos ou prestacionais. Contudo, essa separação é passível de críticas, tendo em vista que a fruição dos direitos negativos também exige prestações estatais. A rigor, todos os direitos envolvem atuação estatal e custos elevados, inclusive os tradicionalmente denominados de negativos, uma vez que exigem o funcionamento adequado de sistemas políticos, judiciais e de segurança[3]. A seu turno, a interpretação substantiva almeja a proteção dos grupos vulneráveis. Seus corifeus se dividem entre os que adotam uma linha finalista e os que seguem abordagem procedimentalista. O maior problema dessa teoria consiste na desconsideração das implicações de suas escolhas para a ordem econômica. Na prática, é possível que haja perda de competitividade dos empresários brasileiros no cenário internacional ou criação de insegurança decorrente do subjetivismo[4].

A interpretação baseada na ponderação de valores, de outro lado, analisa abstratamente os valores em questão. Contudo, esse cálculo prudencial abstrato não é capaz de vislumbrar as dificuldades da realidade fenomênica. Ademais, evidente a dificuldade na construção de soluções capazes de conciliar os interesses em jogo sem que se verifiquem os problemas concretos. Por derradeiro, a AED se baseia no exame do custo-benefício em busca da eficiência econômica, desprezando os interesses e valores não econômicos. Nesse cálculo, não entram, contudo, alguns valores consagrados pela Constituição como orientadores da ordem econômica, tal como a promoção da justiça social[5].

Esse cenário se aplica para os processos de recuperação de empresas. Atualmente, percebe-se que uma série de divergências doutrinárias e jurisprudenciais decorre do embate entre as aplicações dos modelos descritos acima. Inclusive, percebe-se com facilidade a construção pelos Tribunais de uma interpretação teleológica que se afasta do sentido admitido pelos dispositivos legais, como são exemplos a dispensa de certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação, a prorrogação do prazo de 180 dias para a suspensão das ações e execuções contra o devedor, a ilegitimidade ativa do Fisco para ajuizar ação de falência e a aplicação do cram down para aprovação dos planos de recuperação rejeitados pelos credores, nos moldes norte-americanos. Ademais, para justificar a interpretação teleológica, os Tribunais utilizam a ponderação dos valores constantes no próprio ordenamento jurídico. Essa forma de resposta, malgrado apresente diversas vantagens em relação à interpretação formal, não parece alcançar os melhores resultados, tendo em vista que realiza uma avaliação abstrata dos interesses em conflito, resultando em subjetivismo, o que prejudica a segurança jurídica e o mercado de crédito no Brasil. Desse modo, faz-se mister a busca por um novo modelo.

Nesse sentido, importante observar que, atualmente, a dinâmica do Estado vem sendo compreendida por intermédio do instrumental analítico das políticas públicas[6]. Deveras, a partir dos anos 80 o modelo baseado nos grandes sistemas de planejamento exibiu sinais de decrepitude motivados por novas variáveis como as grandes crises financeiras e do petróleo. Assim, fez-se necessária a introdução de mecanismos de respostas estatais mais flexíveis, surgindo nesse contexto a gestão estratégica[7]. Nesse período, outrossim, houve uma cobrança crescente por maior participação democrática, facilitada pelo avanço no campo das comunicações e da informática. Esse conjunto de circunstâncias incorporou à análise estrutural da administração pública uma visão dos fluxos de decisão, isto é, do próprio funcionamento estatal. Tratava-se da construção da ação da máquina administrativa a partir da noção de políticas públicas, um sistema de decisões públicas condicionadas pelo fluxo de reações e valores dos agentes sociais influentes com o desiderato de alcançar determinados fins[8].

No bojo desse movimento, pode-se vislumbrar a construção paulatina de uma política pública de recuperação de empresas no Brasil. Com efeito, constatando-se a insuficiência do modelo traçado pelo Decreto-lei 7.661/1945 para a realidade econômica do final do século XX, entrou na agenda governamental o debate relativo ao desenvolvimento de uma nova sistemática. Formulou-se, então, o Projeto de Lei 4.376/1993, que, após mais de dez anos de intensos debates democráticos, foi sancionado em 2005. Em síntese, o novo modelo conta com uma amplitude muito maior, soluções diversificadas, distinção entre a sorte da empresa e do empresário e uma carga axiológica expressa. Os arts. 47 e 75 da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperações e Falências – LRF) fazem referência a valores como manutenção da fonte produtora, dos empregos e dos interesses dos credores, preservação da empresa, função social, estímulo à atividade econômica, bem como preservação e otimização da utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos.

Naturalmente, o sistema de recuperação de empresas não se resume à sua esfera judicial. Com efeito, são também medidas imprescindíveis para a superação das crises econômico-financeiras oferta de crédito por bancos públicos e privados, capacitação de profissionais, adequação da carga tributária, entre outras. Vale ressaltar que o sistema de insolvência constitui elemento fundamental do mercado de crédito e, portanto, imprescindível ao desenvolvimento econômico nacional. Ademais, os mecanismos de recuperação de empresas se apresentam como um eficiente meio de amortecer as adversidades da conjuntura econômica. Entretanto, os números de empresas efetivamente recuperadas no Brasil representam percentual muito baixo[9]. Desde a entrada em vigor da LRF, apenas 178 empresas conseguiram encerrar a recuperação judicial de um total de 1.136 sentenças de concessão (com dados até maio de 2014)[10]. Ainda assim, os empresários vêm se utilizando cada vez mais do portfólio de soluções da lei de recuperações (já foram propostas, desde o advento da lei em 2005 até agosto de 2014, 4.775 ações de recuperação judicial[11], inclusive de grande impacto social e econômico, como OGX, OSX, VARIG, VASP, LBR, Parmalat do Brasil, Hermes, Mabe, Rede Energia, entre outros). Torna-se, portanto, de grande relevância a avaliação do arranjo institucional a fim de buscar o aperfeiçoamento do sistema. Algumas questões, nesse caminho, entretanto, demandam aprofundamento.

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O desenvolvimento de um novo paradigma de recuperação de empresas deve ser capaz de conciliar de forma pragmática todos os interesses conflitantes, dentro do que Duncan Kennedy denominou de “modo contemporâneo de pensamento jurídico”[12]. Trata-se de uma nova compreensão do direito, com três características fundamentais: análise pragmática conjunta das formas jurídicas com as decorrentes de ciências diversas na estrutura das políticas públicas; crença na possibilidade de equilíbrio entre os diversos interesses conflitantes; e tentativa de compensação da “perda do sistema” (a incorporação jurídica da análise das políticas públicas promoveu uma especialização que não forma mais um conjunto sistemático). Interessante ainda, sob essa perspectiva, é a fluidez entre as categorias de direito público e privado[13].

No direito brasileiro, essa perspectiva se afina com a agenda do “Novo Desenvolvimentismo” decorrente da Escola do Direito e Desenvolvimento. Sob essa perspectiva, o aparelho estatal atua de forma efetiva, porém com base no fortalecimento do setor privado. Deve, então, desenvolver e coordenar as políticas públicas de desenvolvimento econômico, promovendo controle da inflação, medidas de distribuição de renda, valorização do salário mínimo e expansão do crédito. Na falta de certezas nesse novo campo, merecem especial atenção o diálogo horizontal e o pragmatismo democrático[14]. Também de grande relevância nessa ótica a Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE), formulação alternativa das articulações entre o direito, as políticas púbicas e o desenvolvimento. Trata-se de abordagem interdisciplinar que analisa o complexo de princípios, regras, instituições e discursos dirigidos à organização da produção, troca e consumo na sociedade. Almeja-se, nessa linha de entendimento, a construção de um instrumental analítico capaz de conciliar os diversos interesses em debate, levando-se em consideração a avaliação empírica, de maneira a possibilitar o desenvolvimento econômico em bases mais equitativas. Outrossim, reconhece-se que as políticas econômicas atuam de maneiras distintas sobre as ações e a fruição de direitos dos diversos grupos sociais[15].

Aplicando essa compreensão para o sistema de recuperação de empresas, algumas questões específicas precisam ser esclarecidas. Inicialmente, constatou-se que os Tribunais não estão mais se restringindo à aplicação de direitos preexistentes, estabelecidos pelo Legislador, em um comportamento comumente denominado de ativismo judicial. Assim, deve se verificar, em primeiro lugar, se compete ao Poder Judiciário julgar sem se ater necessariamente aos textos legais, ou atribuindo-lhes sentido que obviamente escapa dos limites semânticos ordinários. Ademais, cabível a indagação se essa liberdade interpretativa é legítima ou coloca em risco o equilíbrio entre a separação dos Poderes, mormente pelo fato de os membros do Judiciário não haverem sido eleitos pelo povo. De outro lado, necessário o exame da possibilidade de análise dos processos de recuperação de empresas dentro da abordagem das políticas públicas. Indispensável, nesse estudo, a identificação das peculiaridades do sistema de recuperação de empresas. Por derradeiro, deve ser esclarecida a forma de participação do Judiciário na estrutura da política pública de recuperação de empresas, destacando suas peculiaridades e buscando parâmetros para a forma da sindicabilidade jurisdicional.

Para tanto, o itinerário a ser seguido se inicia com a análise da legitimidade da jurisdição no sistema democrático brasileiro. Assim, examina-se a natureza da atividade jurisdicional e os seus limites no regime democrático. Encerra-se o primeiro capítulo com a descrição das peculiaridades existentes na análise jurídica de políticas públicas e com o estudo da construção de uma nova relação entre os Poderes. Na segunda parte da exposição, o foco estará na busca de novas bases para as demandas de recuperação de empresas. Com esse objetivo, inicialmente será investigado o local adequado no ordenamento jurídico brasileiro para a implementação de uma política pública de recuperação de empresas. Ademais, haverá a análise da Análise Jurídica da Política Econômica aplicada às decisões nos processos de recuperação de empresas. Por fim, apresentam-se as conclusões alcançadas ao longo da pesquisa.

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Sobre o autor
Gerardo Alves Lima Filho

Presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça do DF e Oficial de Justiça do TJDFT. Bacharel em Direito pela UFBA, Especialista em Direito pela ESMA/DF e Mestre em Direito pelo UniCEUB. Foi diretor e gestor de diversas entidades representativas de servidores públicos, exerceu o cargo de Policial Rodoviário Federal e foi professor de diversas faculdades de Direito de Direito Empresarial, Civil, Processual Civil e Prática Civil. Publicou inúmeros artigos em sites e revistas jurídicas especializadas. Possui experiência em Direito Administrativo, Previdenciário, Constitucional, Empresarial, Tributário, Civil, Processo Civil, Trabalho, Processo do Trabalho, Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Gerardo Alves. Novo modelo de racionalidade jurídica para os processos de recuperação de empresas no Brasil.: O diálogo legitimador entre a interpretação jurídica, as políticas públicas e as instituições econômicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5060, 9 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56281. Acesso em: 28 mar. 2024.

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Artigo que elaborei quando cursei a disciplina Temas Aprofundados de Direito Constitucional no Mestrado do UniCEUB com o Professor José Levi.

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