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O tempo como bem imaterial indenizável de natureza autônoma

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Tornou-se consenso a avaliação de que o mau atendimento não é gerador de dano moral, recebendo inclusive o chavão de "mero dissabor do cotidiano" pela jurisprudência. Mas a perda do tempo não seria capaz de gerar outro dano imaterial, que não o moral?

Ainda que a doutrina já tenha conseguido dissolver qualquer possível confusão entre o dano moral e o dano imaterial, é comum nos depararmos no cotidiano forense com decisões que ignoram essa distinção conceitual, denunciando o flagrante acanho do judiciário em se debruçar adequadamente sobre a matéria. O dano moral é não mais do que uma das tantas espécies de dano imaterial, assim como o são o dano estético, o dano existencial e o dano temporal do qual cuidamos nestas linhas.

Se pudéssemos nos valer de um quadro-negro, lançaríamos mão de um organograma onde no topo ler-se-ia danos, que se dividiriam em materiais e imateriais. Os imateriais por sua vez se multifurcariam em morais, estéticos, existenciais, temporais e outros tantos que vierem a surgir de acordo com a evolução do direito, da sociedade e das exigências da própria natureza humana.

O reflexo direto da prostração do judiciário ao ignorar a classificação de gênero e espécie dos danos é a mitigação e/ou o não reconhecimento de um dano indenizável por alegada ausência do chamado abalo à honra ou lesão à imagem do ofendido. Familiar de todos aqueles que envergam carreiras jurídicas - sobretudo de advogados que militam no âmbito do direito do consumidor - é a frustração ao receber uma decisão que nega o dano imaterial por considerar que o evento prejudicial não passou de "mero dissabor do cotidiano" ou que não produziu dano que maculasse a honra ou a imagem do indivíduo. Esta é a forma que boa parte da jurisprudência encontrou para afastar a indenização imaterial: entender que todo e qualquer dano não-material passa necessariamente pelo abalo à honra ou a lesão à imagem.

Se analisarmos a acepção, o significado de dano moral, poderemos admitir que, v.g., aguardar duas horas na fila de um banco não afeta necessariamente a honra ou a imagem de ninguém. Contudo, submeter alguém a duas horas de espera para um atendimento não atinge a vida desta pessoa sob outro aspecto? Não se estaria gerando um dano não-material com potencial reparatório? O tempo, este bem irrecuperável, não carrega uma carga passível de indenização caso seja desperdiçado?

Marcos Dessaune[1] já respondeu essas questões com a sua desbravadora tese do Desvio Produtivo do Consumidor. Sua teoria, já adotada timidamente por alguns de nossos pretórios - defende sinteticamente que

“O desvio produtivo caracteriza-se quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar as suas competências — de uma atividade necessária ou por ele preferida — para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável”.

No entanto, seria apenas a perda do tempo útil ou produtivo capaz de gerar dano indenizável? O que seria tempo útil? O que seria tempo produtivo? Um cidadão que esteja no gozo de férias não teria então o direito de ser indenizado pela perda do seu tempo de descanso? O direito ao lazer, garantido pela Constituição Federal, não estaria abarcado nessa espécie de dano?

O Autor não se furtou de analisar este aspecto. DESSAUNE diz claramente que no bojo do desvio produtivo do consumidor está compreendido o tempo de lazer e o tempo de convivência familiar, ou seja, o tempo que seria dedicado para uma atividade preferida também está amparado por sua tese. No entanto, o desvio do tempo produtivo deve ser compreendido como uma espécie do gênero dano temporal, sob pena de subvertermos aquilo que pretendeu o jurista.

É que virou notícia uma sentença[2] de lavra do Juiz de Direito Fernando Antônio de Lima, da Comarca de Jales/SP, que julgou procedente o pedido de indenização por dano moral de um cliente contra uma instituição financeira. Na esteira deste julgado veio à tona a tese de DESSAUNE sobre o desvio produtivo do consumidor. E como razões de decidir, concluiu o magistrado que "a lesão objetiva ao tempo útil ou produtivo é que permite a reparação. O tempo produtivo constitui direito fundamental implícito (...)".

Não nos parece que limitar a indenização pela perda do tempo unicamente à perda de um tempo útil ou produtivo empreste ao direito algo de profundo relevo. O tempo útil ou produtivo pode ser reparado inclusive sob o viés do dano material. Imaginemos que um trabalhador sofra desconto em seu salário pela ausência do trabalho em decorrência de falha na prestação de serviços de um fornecedor. Este dano fica materializado no demonstrativo de seus vencimentos e a reparação desse dano é perfeitamente alcançada sob o aspecto material. A teoria do dano temporal alcança um espectro muito mais amplo.

Em que pese a Constituição Federal não fale expressamente sobre a proteção ao tempo perdido, traz no bojo de seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, assim como na esteira dos direitos individuais e coletivos a garantia de indenização por danos decorrentes da violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Ainda que silencie sobre a proteção ao tempo perdido, o §2º de seu art. 5º nos socorre ao prever que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados.

A proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem está inserida no contexto do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio que necessariamente evolui com a sociedade. Dignidade, do latim dignitas (virtude, honra, consideração) abarca todos estes valores e por consideração entende-se o respeito mútuo que todos devem ter, inclusive com a valorização do tempo de outrem. Portanto, ainda que o nosso constituinte não tenha deixado de forma expressa a proteção ao tempo perdido, é certo que tal valor é abrangido pelo princípio da dignidade da pessoa humana, sobretudo se atentarmos ao fato de que as aspirações e as exigências da sociedade de hoje não são as mesmas de trinta anos atrás.

Em que pese não seja exatamente recente a adoção da teoria do dano temporal no seio das relações de consumo, começam a surgir pronunciamentos judiciais reconhecendo o tempo como um bem indenizável fora do âmbito consumerista. É o que se extrai de um recente julgado[3] proveniente da 1ª Turma Recursal da Fazenda Pública do Rio Grande do Sul, conforme ementa abaixo, cujos grifos não constam no original:

"RECURSO INOMINADO. PRIMEIRA TURMA RECURSAL DA FAZENDA PÚBLICA. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. AJUIZAMENTO DE AÇÃO MONITÓRIA. TÍTULO EXECUTIVO INIDÔNEO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANO MORAL CONFIGURADO. (...) 3) Inegável que responder a processo judicial ao qual não deu causa constitui-se em abalo imaterial àquele que é indevidamente acionado. Imagináveis a perda de tempo, energia e paciência da Parte Autora, que somente viu-se livre do INDEVIDO aponte como devedora mediante a realização de prova pericial, fins de comprovar que a assinatura aposta no Termo de Confissão de Dívida não era sua. RECURSO INOMINADO PROVIDO, POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR."

No caso concreto, a Recorrente buscava a indenização por ter sido demandada judicialmente pelo Estado do Rio Grande do Sul em uma Ação Monitória onde sua assinatura fora adulterada, adulteração esta comprovada por perícia grafotécnica. No voto que balizou o acórdão que reformou a sentença por maioria, a juíza Thaís Coutinho de Oliveira entendeu que responder indevidamente a um processo judicial gera dano indenizável, considerando a perda de tempo daquele que não deu causa à instauração do processo. Vale a reprodução do seguinte trecho do voto:

"Quanto ao dano, inegável que responder a processo judicial ao qual não deu causa  constitui-se em abalo imaterial àquele que é indevidamente acionado. Imagináveis a perda de tempo, energia e paciência da Parte Autora, que somente viu-se livre do INDEVIDO aponte como devedora mediante a realização de prova pericial, fins de comprovar que a assinatura aposta no Termo de Confissão de Dívida não era sua." Grifamos.

Veja-se que a magistrada vai ainda além da variável tempo como caracterizador do dano imaterial. Cita ainda a perda de energia e de paciência daquele que experimentou prejuízos sem que tenha dado causa. No caso concreto, o Estado do Rio Grande do Sul foi condenado a indenizar a parte adversa em R$ 4.000,00 (quatro mil reais) pelos danos morais.

Ainda que a posição da magistrada deva ser festejada, nota-se aqui mais uma vez a resistência em separar ou identificar as diferentes espécies de danos imateriais. Ou terão a "perda de tempo, energia e paciência" força suficiente para abalar a honra ou ferir a imagem de alguém?

O Projeto de Lei nº 5221/16, proposto pelo Deputado Rômulo Gouveia (PSD-PB), denuncia que a essência da tese do dano temporal já bateu às portas do Congresso Nacional. O aludido projeto pretende inserir o parágrafo único ao art. 6º do Código de Defesa do Consumidor. O texto teria o seguinte teor, segundo a proposição:

Código de Defesa do Consumidor

Art. 6º. (...)

Parágrafo único. A fixação do valor devido a título de danos morais levará em consideração, também, o tempo despendido pelo consumidor na defesa de seu direito e na busca de solução para a controvérsia."

Embora a ideia do texto do projeto não crie exatamente a figura do dano temporal como modalidade autônoma, insere a variável tempo como critério a ser considerado quando da fixação do dano imaterial. Caberá evidentemente ao judiciário a sensibilidade de dissociar as espécies de danos e de fixar o quantum da indenização no que concerne à perda do tempo.

A proposta foi aprovada pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados e segue sua tramitação. Especial destaque para a parte final do relatório de lavra do Deputado César Halum (PRB-TO):

"(...) a intervenção sugerida pelo presente projeto de lei mostra-se extremamente louvável. Ao obrigar os causadores de danos morais a indenizar os consumidores pelo tempo despendido na defesa de seus direitos, a proposta, em sintonia com o espírito do CDC, fornece maior expressão econômica às lesões à dignidade do consumidor e afasta incertezas que ora fragilizam a efetivação da indenização moral. Desse modo, contribui para aperfeiçoar o subsistema normativo de proteção e defesa do consumidor"

Inegavelmente o tempo é um bem que merece ser tutelado. Nos dias de hoje onde vivemos conectados a maior parte do tempo, onde a informação nos chega quase que instantaneamente e onde o tempo é cada vez mais escasso, é inconcebível que o direito não acompanhe a evolução da sociedade neste aspecto.

Para ilustrar o avanço da sociedade nesta direção, lançamos mão de uma pesquisa de 2011 da Compuware[4], empresa de soluções em tecnologia. Segundo o aludido estudo, sete em cada dez usuários de smartphones toleram esperar no máximo cinco segundos para a página de um site abrir. Em 2015, em outra pesquisa, a Tech.co[5], também do ramo de tecnologia, apurou que os usuários aceitam aguardar os mesmos cinco segundos por uma resposta de aplicativo para celular. Nesta mesma trilha da tecnologia, vale citar um texto do ator Nelson Freitas que tem circulado há algum tempo nas redes sociais. Trata-se de um aforismo intitulado "O Banco da Vida", cujo cerne é exatamente o tempo. Encontra-se facilmente no Youtube[6] e vale a pesquisa.

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Portanto, é patente que o tempo se constitui em um bem que merece tutela do Estado. E por sua singular natureza de ser um bem irrecuperável, é legítimo que encontremos uma forma de converter seu desperdício em pecúnia. O caminho, parece-nos, é avançarmos na teoria do dano temporal, discutindo cada vez mais o tema e provocando o judiciário para que passe a conhecê-lo como um dano imaterial autônomo.


NOTAS:

[1] DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

[2] Procedimento do Juizado Especial Cível nº  0005804-43.2014.8.26.0297, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal do Foro da Comarca de Jales/SP, Prolator: Fernando Antônio de Lima, julgado em 28/08/2014.

[3] Recurso Cível Nº 71006189344, Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Niwton Carpes da Silva, Redator: Thais Coutinho de Oliveira, Julgado em 15/12/2016.

[4] http://tecnologia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2011/07/27/internautas-moveis-esperam-so-5-segundos-pelo-carregamento-de-um-site-diz-pesquisa.jhtm

[5] http://tech.co/users-looking-mobile-app-2015-10

[6] https://www.youtube.com/watch?v=pZydyb5TRPU


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/1990

BRASIL. Código Civil, Lei nº 10.406/2002

DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2012.

USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade Civil por Ato Lícito. São Paulo: Atlas, 2014.

PORTANOVA, Rui. Motivações Ideológicas da Sentença. 4. Ed. Ver. Ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

BARBOSA, Bruno Miranda Novaes. Responsabilidade civil pela perda do tempo livre: implicações jurídicas de um problema cotidiano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4884, 14 nov. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/48905>. Acesso em: 17/11/2016.

Consultor Jurídico. Tempo gasto em problema de consumo deve ser indenizado. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mar-26/tempo-gasto-problema-consumo-indenizado-apontam-decisoes>. Acesso em 15/11/2016.

Consultor Jurídico. Justiça reconhece autonomia da indenização por tempo perdido. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-01/justica-reconhece-autonomia-indenizacao-tempo-perdido>. Acesso em 17/04/2017.

Câmara dos Deputados. Consumidor poderá ser ressarcido por tempo gasto na resolução de problema. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CONSUMIDOR/522664-CONSUMIDOR-PODERA-SER-RESSARCIDO-POR-TEMPO-GASTO-NA-RESOLUCAO-DE-PROBLEMA.html>. Acesso em 18/04/2017.

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Sobre o autor
Eduardo Antônio Kremer Martins

Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Rio Grande do Sul, sob o nº 65.587. Possui escritório profissional em Porto Alegre, na Rua da República nº 305, sala 404, concentrando suas atividades na Capital do Estado e Região Metropolitana, atuando de maneira consultiva e no contencioso judicial. É Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Castelo Branco do Rio de Janeiro (UCB). Colabora como articulista em diversos veículos jurídicos, como os saites Espaço Vital, Jus Vigilantibus, Universo Jurídico, Jurid Publicações Eletrônicas, Artigos, A Priori, Artigonal, Só Artigos, Web Artigos, Portal Jurídico Investidura e os periódicos Seleções Jurídicas e o informativo semanal Consultoria Trabalhista, ambos publicados pela COAD. www.eduardomartins.adv.br [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Eduardo Antônio Kremer. O tempo como bem imaterial indenizável de natureza autônoma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5058, 7 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57404. Acesso em: 18 abr. 2024.

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