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Carência de ação e coisa julgada:

análise da relação direta entre a sentença de carência de ação e o mérito da demanda

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4. Coisa julgada formal

Coisa julgada formal é a imutabilidade e estabilidade da relação jurídica processual. Em nossa opinião, difere-se da preclusão máxima, que é a impossibilidade total de se praticarem atos processuais com o intuito de se modificar a decisão jurisdicional dada naquele processo específico. A coisa julgada formal é conseqüência direta da preclusão máxima, uma vez que a estabilidade da relação processual, ou seja, o trancamento do processo, gera a inimpugnabilidade da decisão jurisdicional dentro do mesmo aparato instrumental.

Neste mesmo sentido, impecáveis, a nosso ver, são as palavras de Ada Pellegrini Grinover:

Na verdade, porém, coisa julgada formal e preclusão são dois fenômenos diversos, na perspectiva da decisão irrecorrível. A preclusão é, subjetivamente, a perda de uma faculdade processual, e, objetivamente, um fato impeditivo; a coisa julgada formal é a qualidade da decisão, ou seja, sua imutabilidade, dentro do processo. Trata-se, assim, de institutos diversos, embora ligados entre si por uma relação lógica antecedente-conseqüente. [26]


5. Coisa julgada material x Coisa julgada formal

A coisa julgada material é a imutabilidade do dispositivo da sentença, aplicado para fora do processo, qual seja, à relação material. Não coincide, pois, com a coisa julgada formal. Pelo contrário, para que haja aquela, pressupõe-se esta. Certo é que, para que a decisão do juiz possa gerar efeitos no que diz respeito ao direito material, tal provimento deve, primeiro, estar coberto pelo manto da inimpugnabilidade dentro do processo, ou seja, pela coisa julgada formal. Prejuízos enormes poderiam ser provocados à parte, se fosse admitida, como regra geral, a execução de uma sentença que estivesse passível de revisão.

O próprio nome dos institutos já passa uma idéia de sua abrangência. Enquanto a coisa julgada formal, via de regra, gera efeitos tão somente no processo em que se formou, a coisa julgada material se faz eficaz também no direito material, ou seja, seus efeitos, além de incidirem no processo, incidem também na relação jurídica de direito material, impedindo que a decisão seja reapreciada inclusive em processo posterior. A esta impossibilidade pode-se determinar de efeito vinculante negativo da coisa julgada.

Da presente maneira, a coisa julgada material se diferencia da coisa julgada formal pela abrangência de seus efeitos. Enquanto o campo de incidência da coisa julgada formal é restrito à relação jurídica formal (processual), ou seja, ao processo em que se formou, gerando uma inimpugnabilidade relativa, a coisa julgada material cria uma inimpugnabilidade absoluta, uma verdadeira imutabilidade. Uma vez trânsita em julgado a sentença de mérito, ela é, via de regra, imutável.


6. Carência de ação e coisa julgada

Segundo a corrente majoritária na doutrina processual brasileira [27], a sentença proferida com fulcro no artigo 267, VI do CPC formaria, após a incidência do fenômeno da preclusão máxima, coisa julgada meramente formal, não atingindo o plano de direito material. Não haveria, pois, vinculação alguma entre a sentença proferida e a propositura da mesma demanda.

A corrente de pensamento exposta se fundamenta, basicamente, no comando do artigo 268 do CPC. Entretanto, em todos os ramos do Direito, deve-se evitar a interpretação literal e isolada da norma, e privilegiar a interpretação sistemática, com base em todos os dispositivos do diploma legal, como um todo. Logo, importantíssima se demonstra a leitura do artigo 468 do diploma processual brasileiro: "a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas". Conforme há de se ver mais adiante, tal artigo dá margem à interpretação de que a sentença de carência de ação pode, perfeitamente, formar coisa julgada material. Tal afirmação não se demonstra de todo impertinente, vez que a conclusão semelhante chegou o Colendo Superior Tribunal de Justiça.

Cumpre aqui, explicitamente, expor o ponto principal e a finalidade primeira deste trabalho: responder à seguinte indagação: afinal, a sentença que extingue o processo por carência de ação faz coisa julgada material? Conjuguemos, pois, a análise dos artigos 268 e 468 do diploma processual pátrio.


7. O artigo 268 do CPC

Assim preleciona o artigo 268 do CPC: "Salvo o disposto no artigo 267, n. V, a extinção do processo não obsta a que o autor intente de novo a ação. A petição inicial, todavia, não será despachada sem a prova do pagamento ou do depósito das custas e dos honorários de advogado". A uma primeira leitura de tal artigo, o operador do Direito pensa logo na absurda hipótese de, tendo havido extinção do processo sem julgamento do mérito, poder ajuizar a mesma demanda, ou seja, contendo as mesmas partes, o mesmo pedido, e a mesma causa de pedir.

Caso assim fosse, o advogado só precisaria ir a seu computador, mudar a data da elaboração da petição inicial (ou nem isso!), e imprimi-la novamente, provocando novamente a jurisdição a se manifestar sobre questão já decidida. Devemos lembrar que a atividade do juiz, quando da extinção específica por carência de ação, que é o ponto que nos interessa, configura-se como atividade jurisdicional. E o que caracteriza a atividade jurisdicional, diferenciando-a de demais atividades cognitivas do Estado, é o seu caráter de imutabilidade das decisões proferidas.

Concordamos com Nelson Nery Jr e Rosa Maria Andrade Nery, quando afirmam que, para a "repropositura" [28] da ação faz-se necessária a correção do vício que ensejou sua extinção prévia [29]. Procuramos, também, esclarecer um pouco a questão. Imagine-se um caso de extinção do processo por indeferimento da petição inicial, hipótese elencada no inciso I do artigo 267.

Some-se, a isto, que o motivo de indeferimento da petição inicial tenha sido a sua inépcia, por ausência de correlação lógica entre causa de pedir e pedido. Em homenagem ao princípio da economia processual, tão necessário nos dias de hoje, em que nota-se o fenômeno da multiplicação das lides e da divisão das comarcas, não se pode conceber que, após tal indeferimento, a parte possa ajuizar novamente a mesma demanda, contendo os mesmo vícios. Obviamente que a petição inicial deverá ser alterada, ou seja, o vício deve ser consertado, para que o pedido possa ser apreciado.

Da mesma forma que a correção do vício é necessária para que se possa ajuizar demanda após a extinção com fulcro no artigo 267, I, a extinção por carência de ação deve seguir o mesmo procedimento. Obviamente que em comarcas onde haja mais de uma vara, que trabalham com o regime de distribuição, caso a demanda viciada caia em vara diferente da que extinguira o processo anteriormente, a constatação de violação ao princípio da economia processual, se torna mais difícil. Entretanto, cabe ao Poder Judiciário se organizar para coibir tais tipos de abusos, e cabe também à parte contrária alertar o magistrado de tal procedimento antiético.

Ademais, há uma certa contradição nas palavras da doutrina quando ensina que, para a repropositura da ação deve-se, primeiramente, corrigir o vício prévio. Lembremos que os elementos identificadores de uma demanda são três: as partes, a causa de pedir e o pedido. Atentamos, ainda, para o fato de que "repetir" significa fazer a mesma coisa por mais vezes. Quando todos pedem para que o cantor, ao final do show, repita a música preferida, a platéia pede para que toque a mesma música, e não uma música parecida com aquela.

Dessa forma, uma ação, ou seja, uma demanda será repetida somente se for igual a uma demanda anterior. E a demanda atual será igual à posterior na medida em que as partes, a causa de pedir e os pedidos sejam idênticos. Embora tal pensamento se demonstre perfeitamente lógico, muita confusão é feita pela doutrina quando se fala em "ajuizar, novamente, a mesma ação". Confunde-se, com freqüência, ações (demandas) idênticas com ações (demandas) semelhantes.

Ora, se há necessidade de uma mudança, não sendo possível ajuizar a mesma ação, presente está o aludido efeito vinculante negativo da coisa julgada material. Desde longa data, processualistas da estirpe de Liebman [30], Dinamarco [31] e Bedaque [32] já anteviam tal possibilidade.


8. O artigo 468 do CPC

Passemos, agora, à análise do artigo 468 do CPC: "a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas". Faz-se necessário, para o entendimento da disposição legal, definir o conceito de lide, o qual se encontra na própria exposição de motivos do CPC:

O projeto só usa a palavra ‘lide’ para determinar o mérito da causa. Lide é, consoante a lição de Carnelutti, o conflito de interesses qualificados pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência do outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes [33].

Sendo o vocábulo lide portador da mesma significação que mérito, nota-se que o artigo 468 se inclina para uma hipótese de julgamento parcial do mérito, capaz de se tornar imutável fora do processo. Mas que haveria de ser o aludido julgamento parcial do mérito?

Podemos afirmar, sem titubear, que o julgamento parcial do mérito nada mais é do que a carência de ação, que, como se viu, é decretada quando não concorrem, na demanda, as três condições da ação: legitimidade, possibilidade jurídica da demanda e interesse processual. A análise das condições da ação deve ser anterior ao julgamento do mérito, por economia processual.

No entanto, é psicologicamente impossível analisar tais condições sem adentrar o mérito, uma vez que, para determinar se estão presentes as condições da ação, deve o juiz analisar a relação material. Uma vez que o CPC adota os termos "lide" e "mérito" como sinônimos, e o julgamento de carência de ação acaba por penetrar no mérito, a sentença que julga o autor carecedor de ação estará julgando parcialmente a lide, ou seja, o mérito, formando, de acordo com o artigo 468 do CPC, coisa julgada material.

Por meio de uma interpretação sistemática, o problema encontra fácil e óbvio deslinde, embora possa surpreender aqueles mais conservadores. O CPC adota, conforme já demonstrado, as palavras "lide" e "mérito" como sinônimos. A própria exposição de motivos do CPC, em seu capítulo III, subseção II, determina que o objeto do processo é a lide. Ora, se a lide é o objeto do processo, e a finalidade da jurisdição é pacificar o conflito social, por meio da análise do mérito, daí já se pode concluir que ambos são sinônimos, conforme demonstrado no item anterior.

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9. O acolhimento da tese pela jurisprudência do STJ

Compartilhando da opinião que a mera repetição da ação, com os mesmos elementos, constituía agressão aos princípios informadores do Processo Civil, assim decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça:

EXTINÇÃO DO PROCESSO. FALTA DE INTERESSE. Se o Juiz extinguiu o processo sem julgamento do mérito – o que não resulta coisa julgada material -, apontando a falta de interesse processual do autor em face da inadequação da ação civil pública ao caso, não é permitida a renovação da mesma causa ipsis litteris. (STJ – 4.ª Turma, em 21/9/2000, no Resp 191.934-SP, Rel. Min. Barros Monteiro – In Informativo 71 do STJ, de 18 a 22.09.2000) (grifos nossos)

Apesar de haver uma aparente contradição no acórdão, por dizer expressamente que não há coisa julgada material, mas tão somente seus efeitos, o mesmo consistiu grande avanço para a difusão da idéia aqui proposta, a qual foi mais bem delimitada em acórdão posterior do mesmo STJ:

ILEGITIMIDADE. TRÂNSITO EM JULGADO. A Turma entendeu, por maioria, que, indeferida a inicial, com a extinção do processo sem julgamento do mérito por falta de legitimidade passiva para a causa, sem que a parte recorra, dá-se o trânsito em julgado material, impossibilitando novo ajuizamento de idêntica ação (art. 301, § 2º, do CPC). Precedente citado: REsp 191.934-SP. REsp 160.850-SP, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 17/10/2000.

Nas razões de voto, proclamou o Relator, Ministro Cesar Asfor Rocha, que:

"No entanto, in casu, a autora deixou passar em branco o prazo para o recurso contra o indeferimento da petição inicial e, logo em seguida, ajuizou ação idêntica, com as mesmas partes, pedido e causa de pedir, mas que, por falha ou deficiência no sistema de distribuição, foi aleatoriamente distribuída a outro juízo da mesma comarca, desta feita, talvez por mera sorte da parte autora, sendo proferida sentença por magistrado que comunga de entendimento oposto àquele já objeto de pronunciamento judicial no primeiro processo, para admitir, agora, a instituição financeira no pólo passivo da relação processual.

"Ressalvo, entretanto, que somente se afigura admissível o ajuizamento de nova ação, nos termos do art. 267 do Código de Processo Civil, se a parte proceder à devida correção da deficiência anteriormente verificada, correção esta que conduz, em verdade, a que a segunda ação seja apenas semelhante à anterior, com possibilidade de trazer as mesmas partes, pedido ou causa de pedir, mas nunca idêntica à anteriormente ajuizada, ou seja, com igualdade concomitante de partes, pedido e causa de pedir, sob pena de flagrante litispendência, caso não extinto o primeiro processo, ou de ofensa à coisa materialmente julgada se já extinto aquele, como ocorreu na espécie" (grifos e negrito no original).

Como pode-se notar, os argumentos utilizados pelo Exmo. Ministro Relator são exatamente os mesmos aduzidos no presente artigo, razão pela qual podemos crer que o mesmo tenha a validade científica que dele se espera.

Não obstante os acórdãos acima, em que se pronunciaram os Ministros Relatores Ruy Rosado de Aguiar e César Asfor Rocha, também o Ministro Nilson Naves já veio dar sua contribuição ao desenvolvimento do assunto, no REsp 45935-4-SP, cuja ementa levou a seguinte redação: "Intentar de novo a ação. Não é lícito que o autor intente de novo a ação, quando lhe tenha faltado interesse processual para a anterior. Identidade de ações. Hipótese em que não houve ofensa ao artigo 268 do Código de Processo Civil. Recurso Especial não conhecido."

Assim, podemos concluir que há, definitivamente, suporte lógico, jurídico, doutrinário e, agora, jurisprudencial para a situação que aqui se propõe. Sendo as condições da ação atinentes, mesmo que em parte, ao mérito, e como o artigo 468 prescreve que um "julgamento parcial do mérito" deva formar coisa julgada material, infere-se que o sistema caminha para a aceitação da possibilidade aqui aventada.

Não se deve nunca olvidar, outrossim, que a carência de ação foi um instituto criado com o único intuito de prestigiar a economia processual e acelerar a prestação jurisdicional, motivo pelo qual a adoção da tese aqui proposta importará, sem dúvida alguma, em uma coerção à prática pouco ética de advogados que, tendo sua demanda extinta por ausência de condição da ação, não recorrem de tal decisão a se limitam a reproduzir a ação ora proposta, agora em outro juízo.

Não obstante as conclusões acima transcritas, deve-se, também, demonstrar suas utilidades, sobretudo da última. Uma vez que as condições da ação existem para garantir a economia processual, a sentença que decrete carência de ação e forme coisa julgada material, conforme o artigo 468, estará também primando pelo princípio da boa-fé, evitando que o advogado simplesmente imprima novamente a petição inicial, alterando a data, e repita, literalmente, a demanda viciada por carência de ação. Tal procedimento é eticamente repreensível, pois sabe-se, desde logo, que a ação não poderá proceder.

De fato, tudo o que foi dito no presente artigo já é aceito na doutrina. Quando se fala em necessidade de alterar uma demanda para a sua "repropositura", com base no artigo 268 do CPC, conclui-se que a sentença de carência de ação está gerando um efeito vinculante negativo no plano material. E este efeito é a maior e principal característica da coisa julgada material, garantindo a certeza nas relações jurídicas.

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Sobre o autor
Cláudio de Oliveira Santos Colnago

Advogado. Sócio da Bergi Advocacia em Vitória - ES. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT). Professor de Direito Tributário e Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Cursando LLM em Direito Corporativo pelo IBMEC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLNAGO, Cláudio Oliveira Santos. Carência de ação e coisa julgada:: análise da relação direta entre a sentença de carência de ação e o mérito da demanda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 456, 6 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5758. Acesso em: 29 mar. 2024.

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