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O futuro da Venezuela nas relações internacionais

02/03/2018 às 14:10
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A Venezuela está prestes a entrar num banho de sangue. E que isto gerará consequências no futuro das relações internacionais, é inquestionável. Seria ideal que as medidas para o reconhecimento de um novo Estado, pós-chavismo, com a possível saída de Maduro do poder, já fossem objeto de estudo no âmbito das relações internacionais.

Pode parecer uma piada de mau gosto, mas os Estados Unidos sustentam, em muito, economicamente, a Venezuela, que vive um governo de exceção, ditatorial, com o povo nas ruas, bradando por mudanças, uma economia à beira do abismo, uma desobediência civil que pode levar à formação de um governo independente, que, para tanto, deveria ter o reconhecimento  de outros Estados.

Informou-se que, com 165.000 homens, 25.000 na reserva e outros milhares da chamada Milícia Popular, a Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) está, atualmente, no comando de ministérios-chave, como o da Fazenda, o de Alimentação e Terras, o de Pesca e Aquicultura, Energia Elétrica e Moradia, entre outros.

Em fevereiro de 2017, Maduro, que governa o país de forma ditatorial com apoio das Forças Armadas, criou uma companhia militar de mineração, petróleo e gás, que se somou à lista de empresas controladas pela FANB, como um canal de televisão, um banco, uma montadora e uma construtora.

Mas há os interesses norte-americanos na região que são de grande monta. Os militares hoje se constituem na Venezuela em verdadeiros capitães de indústria, tendo altas participações financeiras na empresa de petróleo, em empresa de comunicação do governo. Esse é o preço que os militares têm para manter Maduro no poder e o sistema chavista já falido.

Como divulgou o El País, os EUA são o principal destino das exportações petroleiras da Venezuela, que é o terceiro maior fornecedor para os Estados Unidos. Caracas vendeu, em média, 741.000 barris por dia de petróleo a Washington em 2016, segundo o registro do Departamento de Energia norte-americano. Tendo em conta o preço de referência do ano passado, o negócio movimenta 32,2 milhões de dólares (mais de 100 milhões de reais) por dia. Controlada pela Pdvsa desde os anos 1980, a Citgo é o principal comprador de combustível venezuelano nos EUA.

  Washington só impôs sanções individuais a Caracas, por exemplo, a altos funcionários do Executivo e do Judiciário, que agora têm seus bens bloqueados nos EUA. No entanto, diante do declínio democrático no país latino-americano, acentuado nas últimas semanas pelas tentativas de Maduro de reescrever a Constituição para isolar a oposição, cresceu a especulação sobre a possibilidade de o Governo do Trump adotar penalizações setoriais. Qualquer passo nessa direção afetaria a indústria petroleira. O petróleo é o sustento da paupérrima economia venezuelana e seu único laço comercial relevante com os EUA.

Há uma evidente sublevação na Venezuela, prestes a entrar num banho de sangue. Entendo que já se deve analisar, no âmbito internacional medidas para reconhecimento de um novo Estado, pós-chavismo, com a possível saída de Maduro do poder.

Celso Duvivier de Albuquerque Melo (Curso de direito internacional público, 2007, pág. 363) trouxe  a concepção política de Estado de acordo com a teoria de Max Weber que o qualifica como:

a) uma ordem administrativa e jurídica;

b) um aparato administrativo que é regulamentada por uma legislação;

c) autoridade legal sobre as pessoas;

d) autoridade legal sobre pessoas e atos praticados no seu território;

e) legitimidade para o uso da força

Ensinaram Hildebrando Aciolly e Geraldo Eulálio do Nascimento Silva (Manual de direito internacional público, 15.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 99.) que “se se tratar de um Estado surgido de um movimento de sublevação, o reconhecimento será prematuro enquanto não cessar a luta entre a coletividade sublevada e a mãe-pátria, a menos que esta, após luta prolongada, se mostre impotente para dominar a revolta e aquela se apresente perfeitamente organizada como Estado; 2º) desde que a mãe-pátria tenha reconhecido o novo Estado, este poderá ser reconhecido logo que apresente todas as características de um Estado perfeitamente organizado e demonstre, por atos, sua vontade e sua capacidade de observar os preceitos do direito internacional. 3°) se se tratar de um Estado surgido de outra forma, ele poderá ser reconhecido logo que apresente todas as características de um Estado perfeitamente organizado e demonstre, por atos, sua vontade e sua capacidade de observar os preceitos do direito internacional.”

Contudo, não se pode descartar a hipótese do reconhecimento prematuro de um Estado, o que pode ser perigoso, devendo ser realizado com extrema cautela, uma vez que sua prática poderá ser interpretada como ingerência indevida em assuntos internos do Estado. Segundo alguns autores o reconhecimento da Croácia por parte de certos membros da Comunidade Europeia, e Suíça (ocorrido em 15 de janeiro de 1992), foi prematuro, eis que a Croácia, a época, controlava apenas um terço de seu próprio território, como ensinou Valério de Oliveira Mazzuolli(Curso de direito internacional público, 2009, pág. 400).

 A doutrina majoritária faz referência a duas teorias relativas ao reconhecimento de governo:

1) Doutrina Tobar. Instituída pelo Ministro das Relações Exteriores do Equador, Carlos Tobar (1853-1920), em 1907, pregava que a única forma de evitar golpes de Estado no continente americano seria a comunidade internacional se recusar a reconhecer os governos golpistas como legítimos, rompendo relações diplomáticas e apresentando a eles uma declaração de não-reconhecimento, até que aquele governo fosse confirmado de forma democrática. Esta tese esteve presente na América Latina, inclusive na Venezuela, que aplicou-a rompendo relações com Estados cujos governos não concordava, inclusive o Brasil.

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2) Doutrina Estrada. Em 1930, o Ministro das Relações Exteriores do México, Genaro Estrada (1887-1937), proferiu uma declaração sustentando que o reconhecimento de uma nova soberania é uma prática afrontosa, e de desrespeito à soberania da nação preexistente, pois o reconhecimento é um elemento dispensável para que o Estado inicie suas atividades. Em outras palavras, quer dizer que se um Estado não concorda com determinado governo, basta simplesmente não manter relações diplomáticas com ele. Mas emitir um juízo de valor seria considerado uma ofensa.

Na prática, percebe-se que esta teoria obteve maior aceitação na América Latina. Pode haver, para o caso, um reconhecimento especial que são alternativas que podem ser estudadas pela Organização dos Estados Americanos e, se for o caso, apesar da posição do Uruguai, pelo Mercosul, em grau de economia local: 

a) Reconhecimento de beligerância. Ocorre quando parte da população de um Estado desencadeia uma revolução contra o governo, com a finalidade de criar um novo Estado ou modificar a forma de governo existente. A beligerância é um estado jurídico “precário”, dada a existência de duas situações distintas, onde ou o governo preexistente retomará ao poder, ou os rebeldes tomarão o poder definitivamente e instituirão um novel governo, baseado em seus ideais revolucionários. Como exemplo, cabe mencionar o caso da Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela que reconheceram a Frente Nacional de Libertação Sandinista como beligerante na guerra civil da Nicarágua, em junho de 1979.

b) Reconhecimento de insurgência. A insurgência (insurgency, em inglês, ou insurgence em francês), é deflagrada no momento em que uma revolta de proporções consideráveis, mas sem a qualidade de guerra civil, com fins políticos, comandada por um movimento armado com o fim de impedir a soberania e as relações exteriores de um Estado. Esta espécie de reconhecimento faz com que os atos praticados pelos “insurretos” deixem de serem de serem qualificados como atos criminosos, de banditismo, terroristas ou de pura violência. A base de uma insurgência pode ser política, econômica, religiosa, étnica, ou uma combinação de fatores. Podem ser citadas insurgências históricas, como a Guerra Civil Russa (1918-1921), e a Guerra Civil Angolana (1975-2002).

c) Reconhecimento como Nação. Ocorre quando um ou mais Estados admitem que determinado grupo reúne todos elementos necessários para ser considerado como verdadeira Nação. O termo “Nação” refere-se a um conjunto de pessoas que possuem a mesma origem, as mesmas tradições, os mesmos costumes e aspirações comuns. Comumente os membros de uma nação falam a mesma língua e habitam o mesmo território, podendo, entretanto, haver exemplos em sentido contrário. O que liga o povo de uma nação é um laço puramente moral, ao passo que no Estado, existe uma relação política. O reconhecimento como Nação teve origem na primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, gerando efeitos mais políticos do que jurídicos, por tratar-se de uma espécie de “promessa” de reconhecimento, quando a respectiva Nação tornar-se formalmente um Estado soberano, após reunidos os requisitos que lhe são inerentes.

Explicou, por fim, Josué Scheer Drebes (O estado no direito internacional: formação e extinção) que o Direito Internacional comporta também os chamados “reconhecimentos especiais”. Tais atos jurídicos tem lugar a partir da emergência de situações peculiares como, por exemplo, um processo revolucionário, em que parte da população se levanta contra o governo com intuito de modificar o poder central ou até mesmo criar um novo Estado (reconhecimento de beligerância); quando se verifica um sublevação de caráter eminentemente político, não comparada aos atos de guerra civil (reconhecimento de insurgência); na situação em que se confere a determinado povo a qualidade de Nação politicamente organizada (reconhecimento como Nação). Como revelou José Scheer Drebes, esses “reconhecimentos” são de suma importância não apenas para o Direito Internacional como também para a Ciência Política, uma vez que seus efeitos alcançam esta disciplina.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O futuro da Venezuela nas relações internacionais . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5357, 2 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59457. Acesso em: 28 mar. 2024.

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