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O processo civil à luz do direito de família

17/07/2018 às 11:00
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Reflexão a respeito da aplicação das normas do processo civil nas demandas que tratam de matéria de família, considerando a natureza, a relevância e a especialidade das questões tuteladas.

Todo homem, quando nasce, ensina Washington de Barros Monteiro, “torna-se membro integrante de uma entidade natural, o organismo familiar. A ela conserva-se ligado durante toda a existência, embora venha a constituir nova família. O entrelaçamento das múltiplas relações, estabelecidas entre os componentes da referida entidade, origina um complexo de disposições, pessoais e patrimoniais, que formam o objeto do Direito de Família”.  

Entre todos os ramos do Direito Civil – proclamam Gagliano e Pamplona Filho – “o Direito de Família é aquele que mais perto toca aos nossos corações e as nossas vidas”.  

Diz-se, então, que o Direito de Família é o mais sensível dos ramos do Direito Civil. Além de conter as normas que protegem a família, como base da sociedade (CF, 226, caput), regulamenta o estado da pessoa, inclusive antes do nascimento, até a morte. De fato, no Direito de Família estão regulados, dentre outros, o parentesco, o casamento e o divórcio, a união estável, o poder familiar e todas as situações dele decorrentes, como guarda, visitas e alimentos aos filhos menores. É possível dizer, portanto, que seu objeto é a própria existência das pessoas, eis que dela a inserção familiar é indissociável.

Destarte, vários são os princípios constitucionais que norteiam as relações familiares, dentre os quais se destacam o da dignidade da pessoa humana, como fundamento da República (CF 1º, III) – princípio máximo ou superprincípio, como refere Tartuce, e que encontra particular efetividade justamente no Direito de Família.  Com efeito, “não há ramo do Direito Privado em que a dignidade da pessoa humana tenha mais ingerência ou atuação do que o Direito de Família”.   Releva, ainda, o princípio da proteção especial do Estado assegurada à família (CF, 226, caput); da proteção integral da criança e do adolescente (CF 227, caput); da igualdade entre homem e mulher (CF, 5º, I; CF, 226, 5º) - princípio ainda de tormentosa aplicação e com implicações que transcendem o espaço jurídico; da igualdade entre os filhos (CF, 227, § 6º); como, também o princípio da entidade familiar plural (CF, 226, 3º). 

Já o processo civil é instrumento da jurisdição. Como “ramo da ciência jurídica que trata do complexo das normas reguladoras do exercício da jurisdição civil”, funciona como “principal instrumento do Estado para o exercício do Poder Jurisdicional”.  E disso se extrai que existe no processo “sempre um interesse público, que é o da pacificação social e o da manutenção do império da ordem jurídica, mediante a realização da vontade concreta da lei” – no caso, consubstanciada no direito material. Tem a finalidade, portanto, de assegurar o direito objetivo ao caso concreto, na eventual lesão. É um meio de proteção do direito individual.

Desta forma, afigura-se inarredável a conclusão de que, quando aplicável à questões de Direito de Família, o processo civil deve se curvar à sua relevância e singularidade, permitindo soluções ou caminhos diferenciados daqueles prescritos ao procedimento comum, e que se reputam mais adequados para as demandas do foro familiarista.

Tanto é que, o Código de Processo Civil vigente prevê um procedimento próprio para as ações de família, nos artigos 693 a 699. Referido regramento, ainda que não contenha maiores novidades técnicas no âmbito do processo em si, tem o mérito de proclamar a supremacia dos meios consensuais para se chegar à solução dos conflitos (CPC, 694), o que enseja assegurar à família e seus integrantes um espaço diferenciado, não jurisdicionalizado, mais adequado à reconstrução dos vínculos e/ou à reorganização das relações rompidas e dos laços afetivos violados, que consistem, no fundo e na forma, os verdadeiros conflitos das demandas do foro da família.

Sobressai, ainda, a questão da interdisciplinaridade, positivada particularmente no art. 694. É o reconhecimento formal de que o sistema jurídico clássico é limitado para enfrentar os complexos litígios familiares que chegam às centenas nos tribunais. Muitos deles, inclusive, não passíveis de solução apenas na esfera técnico-jurídica, condicionados que estão ora a aspectos eminentemente subjetivos e particularizados dos envolvidos (sobrelevam questões emocionais e psicológicas das famílias, traços de personalidade e idiossincrasias de seus integrantes, quadros neuróticos, de depressão, quando não quadros psiquiátricos mais graves, além de situações de drogadição, alcoolismo, dentre outros), ora a questões sociais ou financeiras, não menos intrincadas. Não raro, há necessidade de que sejam buscadas soluções fora do Direito, para as quais nem sempre o processo civil oferece o melhor caminho e a necessária solução. Sem dizer, da sólida formação humana e equilíbrio emocional que se exige do operador do direito, para pautar sua conduta com a necessária imparcialidade e sensibilidade de modo a efetivamente somar para a busca da paz na família.

A propósito, então, o poder geral de cautela do juiz, que remanesceu no art. 297, do CPC, precisa ser compreendido mais como um dever do que uma faculdade, que se estende a todos os atos do processo, impondo-se maior obrigação de atuação de ofício, até mesmo para tomar postura mais diretiva na gestão processual. Também na produção da prova, o juiz de família deverá intervir de modo mais ativo, particularmente diante da parte hipossuficiente, da mais fragilizada, nos casos que versam sobre direitos indisponíveis, de modo, inclusive, a equilibrar os pratos da balança e assegurar às partes, efetivamente, igualdade de tratamento (CPC, 139, I).

O advogado, indispensável à administração da justiça, de profissional litigante na defesa intransigente dos interesses de seu constituinte, deve passar a ter uma postura de agente negociador, atuando nos interesses da família como um todo, mais do que focado apenas no êxito da pretensão de seu cliente. Destaque-se, aqui, a regra do art. 3º, do Código, quando proclama que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados também pelos advogados, inclusive no curso do processo judicial. Mesmo porque, no fundo e na forma, nos litígios de família não há vencedor ou vencido, tudo gira em torno da reconstrução da família em crise, da administração dos recursos que ela tem, dentro de suas possibilidades reais e concretas. Desempenha, assim, o advogado, relevante papel para a Justiça, inclusive em cumprimento ao princípio constitucional que assegura à família a especial proteção do Estado. 

Mas não se esgotam aí as peculiaridades do processo civil quando se volta aos conflitos em matéria de família. Muitas outras soluções diferenciadas podem ser encontradas no próprio contexto do código de processo, inclusive na parte geral, tudo a confirmar a conclusão da especialidade com que devem ser tratadas as questões de família. 

É o caso, por exemplo, da previsão do foro privilegiado para as ações de divórcio, anulação de casamento e reconhecimento de união estável (CPC, 53) – que são típicas ações de família (CPC, 693). Ainda, a prerrogativa de foro do alimentando, para a ação em que pede alimentos (CPC, 53, II) – igualmente demanda típica, ainda que sujeita o procedimento especial (Lei n. 5.478/68); também a prerrogativa de foro do incapaz, especificamente para as ações em que for réu (CPC, 50).

Além das demais, há também a regra de a citação não poder ser feita pelo correio (que é o procedimento padrão), apenas por oficial de justiça quando se tratar de ações de estado (CPC, art. 247, I); de o mandado de citação estar desacompanhado de cópia da petição inicial, contendo apenas os dados necessários ao comparecimento à audiência  (CPC, 695, § 1º); o segredo de justiça nas demandas que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes (CPC, 189) - como exceção ao princípio da publicidade dos atos processuais; o efeito apenas devolutivo da apelação interposta da sentença que condena a pagar alimentos (CPC, 1.012, II) -  hipótese excepcional, que enseja a possibilidade de imediata execução do título que constitui os alimentos, privilegiando a garantia da subsistência do alimentado em detrimento da segurança, em dentre outros.

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Na legislação esparsa, da mesma forma são encontradas situações de quebra de paradigmas processuais. Como exemplo, o arbitramento de alimentos provisórios ainda que não haja pedido expresso (Lei nº 5.478/68, art. 4º) - norma que, num primeiro exame, afigura-se violação do princípio da inércia da jurisdição; além da relativização da coisa julgada na ação de alimentos (Lei nº 5.478/68, art. 15; Código Civil, 1.699).

Ainda, nas ações de alimentos, é francamente admitida a possibilidade de se constituir obrigação alimentar em valor superior ao pedido – o que, a rigor, consistiria em julgamento extra petita, por violação da norma do art. 492, do CPC: “é vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que foi demandado”.  Tudo justificado no fato de que nas demandas de alimentos deve prevalecer o interesse do alimentado, assegurado na mais escorreita observância do princípio da adequação do valor ao trinômio necessidade, possibilidade e proporcionalidade. 

Acrescente-se a possibilidade de a mulher/mãe, na ação de divórcio ou declaratória de união estável, pleitear, em nome próprio, alimentos ao filho menor – proceder que viola, em tese, o princípio da ação. 

Nas ações de guarda e visitas, então, é ainda mais ampla a possibilidade de o magistrado decidir e/ou sugerir arranjos das mais diversas formas, sempre atento à individualidade do caso concreto e conforme o contexto daquela família em particular e dos seus integrantes. Tanto é, que o Código Civil, ao tratar da proteção da pessoa dos filhos nos casos de pais que não vivem juntos, complementa a disciplina da implementação da guarda (unilateral e compartilhada), com a seguinte regra: “havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes, a situação deles para com os pais” (CC, art. 1.586). O Código, ao conferir ao magistrado a possibilidade de decidir a guarda de forma diversa daquela que ele próprio regulamenta, conforme reclame o interesse do filho, acaba por também permitir ao juiz inovar com solução que eventualmente extrapole dos limites da litiscontestatio. Isso porque, toda e qualquer decisão a respeito de guarda de filho somente pode ser tomada mediante análise efetiva e atual da dinâmica do conflito familiar, não se admitindo soluções que apenas tangenciem a questão subjacente ao dissenso, na eventualidade de obstáculos meramente processuais, haja vista os efeitos deletérios que uma decisão dessa natureza pode ter sobre o filho e a família.

Também na ação de investigação de paternidade, destaca-se a possibilidade de relativização da coisa julgada, sob o fundamento de que “não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável” (STF – Recurso Extraordinário RE 363889, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 02/06/2011).

Com efeito, por onde quer se olhe, a conclusão que se tem é de que o processo civil deve, efetivamente, ser visto com outros olhos pelo operador do Direito de Família. A natureza, a relevância e a especialidade das questões tuteladas, todas alçadas à categoria dos direitos constitucionais fundamentais e que merecem a especial proteção do Estado, por força de norma constitucional, autorizam, seguramente, a mitigação dos princípios gerais e regras do processo civil, sempre que houver confronto entre o formalismo, o rigor da norma processual e o direito de natureza pessoal e familiar a ser tutelado. 


REFERÊNCIAS 

GAGLIANO, Pablo Stolze e Outro. Novo Curso de Direito Civil: direito de família. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. v.6. 

KOZIKOSKI, Sandro Marcelo. In: FAGUNDES CUNHA, José Sebastião e Outros. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1381.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil : direito de família. 37.ed. rev. atual. São Paulo : Saraiva, 2004.

TARTUCE, Flavio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 02 jan. 2009. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.22637&seo=1>. Acesso em: 09 set. 2016.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do direito processual civil. processo de conhecimento. procedimento comum. 57. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016. v. I.

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Sobre a autora
Denise Damo Comel

Doutora em Direito. Juíza de Direito da 1ª Vara da Família e Sucessões, Registros Públicos e Corregedoria do Foro Extrajudicial da Comarca de Ponta Grossa. Professora na Escola da Magistratura do Paraná. Especialista em Metodologia do Ensino Superior. Especialista em Psicologia da Educação. Autora dos livros: Do Poder Familiar (Revista dos Tribunais, 2003); Manual Prático da Vara dos Registros Públicos (Juruá, 2013); Manual Prático da Vara de Família : roteiros, procedimentos, despachos, sentenças e audiências (4.ed. Juruá, 2016).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COMEL, Denise Damo. O processo civil à luz do direito de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5494, 17 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59572. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Publicado em: Caxias do Sul, Revista Juris Plenum. Plenum, v. 73, jan./fev. 2017. p. 97 São Paulo, Revista Síntese de Direito de Família. IOB, v. 99, dez.jan/2017. p. 117.

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