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Responsabilidade civil do Estado por prisão ilegal

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III - DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

"Quando os agentes públicos insultam garantias constitucionais do cidadão, não atino com a lógica que possa exculpá-los, sem negar os interesses superiores do próprio Estado de Direito, cuja vivência pressupõe o poder cívico de tutela da liberdade individual".

(Mauro Cappelletti)

1. Conceito e Generalidades sobre a Responsabilidade Civil

A mais antiga codificação de leis, ao longo da história da civilização humana que temos notícia a tratar do dano e de sua reparação é o Código de Ur-Nammu, que previa em seus dispositivos, princípios referentes à reparação dos danos, com uma larga utilização da pena pecuniária. Este fato contrastava com a prática da época – a vingança privada, praticada como pena pelo dano causado.

Acerca do tema, seguem alguns trechos do Código de Ur-Nammu: "(a) se um homem, a outro homem, com um instrumento, o pé se cortou: 10 siclos de prata deverá pagar; b) se um homem, a outro homem, com uma arma, os ossos tiver quebrado: uma mina de prata deverá pagar". [116]

Já o Código de Manu trazia, como forma de punir o dano, a imposição contra o causador de um sofrimento idêntico ao provocado. A mesma orientação seguiu o Código de Hamurabi, em que as ofensas pessoais, desde que praticadas por membros da mesma classe social deveriam ser reparadas mediante ofensas idênticas, prevendo, igualmente a reparação do dano à custa de pagamento de um valor pecuniário, constituindo-se em uma forma de proporcionar à vítima uma satisfação compensatória, através da diminuição patrimonial do agente lesionador.

O Direito Romano, através de seu ordenamento jurídico escrito, traçava normas que obrigavam o causador do dano a responder pelo ato praticado. Os romanos conservavam a idéia de honestidade, bem como, o não lesar o direito de outrem, como princípios basilares do direito, daí a reflexão dos romanos constante no Digesto de Justiniano:

Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere, significando – Os preceitos de direito são estes: viver honestamente, não lesar outrem, dar a cada um o que é seu". [117] (grifo do autor).

Como se pode extrair, naturalmente não se permitia a lesão no Direito Romano, por tal motivo a vítima recebia proteção jurídica. Encontramos na Lei das XII Tábuas, dispositivo que previa a reparação para aquele que causasse um dano. Vejamos:

Tábua Sétima – 1. Se um quadrúpede causa qualquer dano, que o seu proprietário indenize o valor desse dano ou abandone o animal ao prejudicado; 2. Se alguém causa um dano premeditadamente, que o repare; 9. Aquele que causar dano leve indenizará 25 asses; 10. se alguém difama outrem com palavras ou cânticos, que seja fustigado; 11. Se alguém fere a outrem, que sofra a pena de Talião, salvo se houver acordo. [118]

O grande legado do Direito Romano na esfera da responsabilidade civil foi sem dúvida a Lex Aquilia, publicada na era republicana, esta lei veio demarcar a responsabilidade extracontratual, criando uma nomenclatura que até hoje persiste no direito, em oposição à contratual. Sobre a Lex Aquilia, Josivaldo Félix de Oliveira elucida:

Foi, sem dúvida, um marco tão relevante, que a ela se imputa a origem do elemento "culpa" como fundamento na reparação do dano. A Lex Aquilia, bem assim a subseqüente "actio ex lege Aquilia" têm sido destacadas pelos romanistas e pelos civilistas em matéria atinente à responsabilidade civil. [119] (grifo do autor).

O conceito de responsabilidade, consoante Josivaldo Félix de Oliveira se prende, etimologicamente, ao vocábulo originado do verbo latino:

"Respondere", expressão proveniente do idioma latino, com o sentido jurídico vigorante na antiga Roma, e trasladada para o direito brasileiro em uma nova moldura e sentido jurídico característico do jus hodierno. [120] (grifo do autor).

A idéia de responsabilidade patrimonial [121] se liga, portanto à obrigação atribuída a uma pessoa física ou jurídica de restabelecer o equilíbrio patrimonial e moral, em virtude de um ação ou omissão causadora de prejuízos na esfera alheia, com a finalidade de compor os danos causados. Podemos afirmar que responsabilidade significa imputabilidade e o fundamento dessa responsabilidade que pode ser pública ou privada, conforme o dano seja causado pelo Estado ou por particular, é a restituição.

Essa responsabilidade advém de previsão normativa que estabelece como pena ao causador do dano a obrigação de repará-lo. Dessa forma, para a imputação com a conseqüente responsabilização, necessário se faz a presença do evento danoso com a comprovação do prejuízo.

Lembra Américo Luís Martins da Silva que: "Na responsabilidade civil, crucial para a sociedade é a existência ou não de prejuízo experimentado pela vítima. Portanto, o dano é o principal elemento daqueles necessários à configuração da responsabilidade civil". [122] (grifo do autor).

Quanto à responsabilidade civil na atualidade, o que se observa é a existência simultânea de duas espécies de responsabilidade - a subjetiva e a objetiva, a primeira se baseia em critérios tradicionalmente privatísticos, relacionando-se com a culpa, enquanto que a responsabilidade objetiva tem por norte diretrizes publicísticas e se liga ao resultado. Nos dois casos, a responsabilidade existe com fundamento na restituibilidade, não importando se a obrigação decorre de princípios hauridos do Direito Privado ou Público.

A teoria da culpa continua imperando, servindo de base ao direito comum, representando a clássica responsabilidade civil, reservando-se a teoria do risco para os casos especificados em legislações outras, como a lei que trata do transporte de passageiros, fato que permite ao lesado maior proteção e garantia quanto à possibilidade de recomposição do prejuízo.

Marcelo Sampaio Siqueira esclarece que:

"Há diferenças entre a responsabilidade patrimonial civil e a responsabilidade patrimonial do Estado, principalmente no tocante à sua natureza, privada e pública, embora o conceito, os elementos e os excludentes da responsabilidade sejam comuns às duas matérias". [123]

Nessa esteira de raciocínio, a responsabilidade pública é informada por normas de direito público, especificamente do Direito Administrativo, mas com pontos em comum com os princípios que informam a responsabilidade no direito privado, especificamente o Direito Civil.

Outra nota diferenciadora é que ao contrário do direito privado, onde a responsabilidade exige a prática de ato ilícito, no direito público, em especial o Direito Administrativo, ela advém de atos que embora lícitos causem a determinados indivíduos, gravame maior do que o imposto a outros componentes da sociedade.

É sobre a responsabilidade do Estado, que se orienta hodiernamente pela teoria objetiva, sob a modalidade do risco administrativo que nos deteremos a comentar.

Celso Antônio Bandeira de Melo define a responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado como sendo:

a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos. [124]

Desse modo, o Estado enquanto pessoa jurídica se responsabiliza patrimonialmente por atos praticados mediante a atuação de pessoas físicas que ajam na condição de seus agentes, desempenhando funções relativas ao funcionamento do aparelho estatal, por isso, o querer e o atuar do agente público é o querer e o atuar do Estado, fato que impõe ao mesmo a obrigação de indenizar às custas dos cofres públicos.

Pensamento assente na doutrina é que a responsabilidade do Estado surge como decorrência lógica da noção de Estado de Direito, que por sua vez prevê a igualdade na repartição dos encargos sociais, sujeitando todos, pessoas físicas e jurídicas, de Direito Público ou Privado ao ordenamento jurídico vigente, impondo o dever de indenizar por ato que venha a causar prejuízo a outrem.

O termo responsabilidade, acompanhada do adjetivo "civil" [125], se justifica porque a responsabilidade do Estado somente pode ser civil e não penal, muito embora, em alguns casos seja impugnada com fundamento de que a mencionada expressão encerra conteúdo pleonástico, tendo em vista serem as pessoas jurídicas responsáveis patrimonialmente, cabendo a elas, tão somente a responsabilização de caráter civil.

Esta responsabilidade extracontratual do Estado fundamenta-se, como já dito no princípio da isonomia, e encontra-se regulamentada pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, § 6º.

2. Responsabilidade Civil do Estado: Fases e Teorias

A responsabilidade civil do Estado pode ser definida, consoante Maria Sylvia Zanella Di Pietro como: "a responsabilidade extracontratual corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos". [126] Estando tal instituto delineado em nossa legislação entre os casos de responsabilidade objetiva. Nem sempre, entretanto, foi assim. Até se chegar ao estágio atual, houve uma lenta evolução histórica, acompanhada, igualmente, pelo desenvolvimento do homem e da sociedade.

No período da Antigüidade, o soberano ou rei representava aqui na Terra a vontade divina e por não se conhecer ainda Estado politicamente organizado é que este não respondia pela prática de atos causadores de danos aos particulares.

Roma também desconheceu a responsabilização do Estado pelos atos danosos praticados. Nesse sentido se expressa Sonia Sterman:

Em Roma, apesar da inexistência do Estado como personalidade, criou-se a figura do fisco que, por ficção, passou a ser uma pessoa moral, através da qual pertenciam os bens do Estado. Mas, como vigorava a teoria do direito divino, sendo o soberano o representante de Deus aqui na Terra, continuava ele impune à responsabilidade. [127]

Na Idade Média, com o predomínio do Estado despótico e absolutista vigorou o princípio da irresponsabilidade estatal, não subsistindo nos governos absolutos nenhuma parcela de responsabilidade quanto aos atos praticados. Dispunha o Estado de uma autoridade inquestionável, o súdito nada podia contra o rei. Os particulares lesados tinham a obrigação de suportar o prejuízo. Retratam muito bem essa época as tão conhecidas expressões: L’Etat c’est moi, o Estado sou eu, além da expressão utilizada no direito inglês, The king can do no wrong, o rei não erra.

No citado período, os administrados tinham apenas ação contra o próprio funcionário causador do dano, o Estado não possuía responsabilidade alguma. Constituíam o Estado e o funcionário sujeitos diversos, onde o primeiro possuía supremacia, a ponto de agir de forma ilimitada, abusando inclusive dos poderes que lhe eram inerentes.

Reinava, naquela época a teoria da irresponsabilidade, com os fundamentos acima delineados, mas por se tratar de uma teoria desarrazoada, gerando manifesta injustiça, foi por demais combatida, ao argumento de que o Estado, enquanto pessoa jurídica, titular de direitos e obrigações, deveria ser responsabilizado pela prática de seus atos danosos.

Atualmente não mais se admite a teoria da irresponsabilidade estatal, ficando superada a partir do século XIX. [128] Celso Antônio Bandeira de Melo [129] cita o aresto Blanco, do Tribunal de Conflitos, proferido em 1º de fevereiro de 1873, como marco relevante para o reconhecimento da responsabilidade do Estado, ainda que tal responsabilidade não fosse absoluta por parte do Estado. Somente mais tarde, entretanto é que o Estados Unidos e Inglaterra, respectivamente em 1946 e 1947, vieram admitir a responsabilidade civil do Estado.

As teorias subseqüentes se embasavam nos princípios que regiam o Direito Civil, daí serem chamadas de teorias civilistas. Com o liberalismo, a responsabilidade civil do Estado passou a ser admitida. Num primeiro momento havia uma distinção entre atos de império e atos de gestão. Maria Sylvia Zanella Di Pietro esclarece que:

... os primeiros seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular e independente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos seriam os praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços; como não difere a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum. [130]

A diferença entre atos de império e atos de gestão veio abrandar a aplicação da teoria da irresponsabilidade. Sendo admitida a responsabilização do ente estatal quando decorresse de ato de gestão e afastando-a, quando o dano provocado adviesse de atos de império, continuando o ente estatal, na última situação, imune à qualquer responsabilidade.

Essa teoria foi combatida sob a alegação da dificuldade em se estabelecer limites entre os atos de gestão e os atos de império, pelo que, além da impossibilidade de se dividir a personalidade do Estado, abandonando-se tal distinção passou-se a admitir a responsabilidade do Estado com fundamento da culpa do funcionário.

A denominada teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva só teria aplicação quando o dano causado ao súdito fosse derivado de uma conduta culposa causada pelo agente público. Dessa forma, apenas as condutas classificadas como imprudentes, negligentes e imperitas do servidor é que geravam para o Estado a obrigação de compor o dano, permanecendo como responsabilidade própria do servidor, as condutas dolosas. Na esteira do direito privado, a citada teoria de caráter eminentemente civil estabeleceu uma variedade de distinções entre as modalidades de culpa, como a culpa de serviço, a culpa de pessoal, culpa in eligendo, dentre outras, para se saber quando o Estado podia ou não ser responsabilizado por atos de seus agentes.

A doutrina civilista ou da culpa vem paulatinamente perdendo espaço para as teorias publicistas. O primeiro passo, consoante já citamos, se deu com as decisões proferidas pelas Cortes francesas, em especial a do Tribunal de Conflitos, que segundo Sonia Sterman:

... competia decidir o conflito de competências entre o Conselho de Estado e a Corte de Cassação nessas questões, envolvendo a responsabilidade civil do Estado, foram avançadas e acabaram por rejeitar os princípios do direito privado estabelecidos no Código de Napoleão, assinalando a autonomia do direito administrativo, com soluções derrogatórias e exorbitantes do direito comum, portanto, no âmbito do direito comum. [131]

Continua a citada autora a falar que duas grandes decisões, conhecidas como o caso Rotschild, em 1855 e Blanco, em 1873, repercutiram na responsabilização do Estado.

A responsabilidade pelo acidente com a menina Agnés Blanco que, ao cruzar os trilhos do trem, na cidade de Bourdeax, foi colhida por um vagão da Companhia Nacional de Manufatura de Fumo, deve ser imputada ao Estado, não em virtude de direito civil, mas em virtude do direito público, que não é codificado; a partir dessa decisão, pautou-se a construção jurisprudencial. [132]

A primeira teoria de caráter publicista foi a teoria da culpa administrativa, representando a transição entre as idéias civilistas e a doutrina publicista. O fundamento dessa teoria leva em conta a falta do serviço, advindo dela, a responsabilidade do Estado.

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Na culpa administrativa se procurou desvincular a responsabilidade do Estado da idéia de culpa do funcionário. Ocorrendo a culpa da administração quando o serviço não funciona, funciona mal ou funciona atrasado. De forma mais clara, bastando a ausência do serviço devido ou seu precário funcionamento.

Sergio Cavalieri Filho enuncia que:

... a culpa anônima ou a falta do serviço público, geradora da responsabilidade do Estado, não está necessariamente ligada à idéia da falta de algum agente determinado, sendo dispensável a prova de que funcionários, nominalmente especificados tenham incorrido em culpa. Basta que fique constatado um mau agenciador geral, anônimo, impessoal, na defeituosa condução do serviço, à qual o dano possa ser imputado. [133]

A teoria do risco administrativo que serve de base à responsabilidade objetiva se fundamenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais. Nesse sentido, enfatiza Maria Sylvia Di Pietro:

... assim como os benefícios decorrentes da atuação estatal repartem-se por todos, também os prejuízos sofridos por alguns membros da sociedade devem ser repartidos. Quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para restabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, utilizando recursos do erário público". [134]

Não subsiste nessa teoria a noção de culpa, o que se perquire é acerca do nexo causal que se origina entre funcionamento do serviço e o prejuízo sofrido pelo particular. Nesta teoria, embora se dispense a prova da culpa, é permitido ao Estado, afastar a sua responsabilidade nos casos de exclusão do nexo causal, que por sua vez ocorre quando há culpa exclusiva da vítima, caso fortuito, força maior e fato exclusivo de terceiro.

O risco administrativo torna o Estado responsável em virtude de sua atividade administrativa, o que não significa, necessariamente a imputação e o correspondente dever de indenizar do Estado em toda e qualquer situação. Hely Lopes Meirelles esclarece que:

O risco administrativo não significa que a administração deva indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular; significa, apenas e tão-somente, que a vítima fica dispensada da prova da culpa da Administração, mas esta poderá demonstrar a culpa total ou parcial do lesado no evento danoso, caso em que a Fazenda Pública se eximirá integral ou parcialmente da indenização. [135]

A teoria do risco integral é modalidade extremada da doutrina do risco, imputando ao Estado a obrigação de indenizar mesmo nos casos de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou de força maior.

Preleciona Hely Lopes Meirelles que a citada teoria foi

... abandonada na prática, por conduzir ao abuso e à iniqüidade social. Por essa fórmula radical, a administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de dolo ou culpa da vítima. Daí porque foi acoimada de "brutal", pelas graves conseqüências que haveria de produzir se aplicada na sua inteireza. [136]

O nosso país não experimentou a fase da irresponsabilidade do Estado. Atualmente adotamos a teoria da responsabilidade objetiva da administração, na modalidade do risco administrativo. Essa teoria foi acolhida pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, § 6º.

Com base na teoria acolhida pelo sistema constitucional brasileiro quanto à responsabilização do Estado, o nexo causal constitui o fundamento dessa obrigação, inexistindo portanto, a relação de causalidade, fica o Estado imune à obrigação de indenizar. Dessa forma, há causas que excluem a responsabilidade.

A primeira delas é a força maior, que pode ser definida como o acontecimento imprevisível e estranho à vontade das partes, ligando-se à idéia de fatos naturais, como por exemplo, uma tempestade e um terremoto. Tais eventos excluem a responsabilidade da Administração, tendo em vista a inexistência do nexo causal entre o evento danoso e o comportamento do Estado.

O caso fortuito decorre de comportamento humano, resultando o evento danoso de causa desconhecida e como tal não podendo ser prevista ou mesmo impedida. Adverte, contudo Maria Sylvia Zanella Di Pietro que:

... na hipótese de caso fortuito, em que o dano seja decorrente de ato humano, de falha da Administração, não ocorre a mesma exclusão; quando se rompe, por exemplo, uma adutora ou um cabo elétrico, causando danos a terceiros, não pode falar em força maior. [137]

Continua a citada autora, argumentando que: "No entanto, mesmo ocorrendo motivo de força maior, a responsabilidade do Estado poderá ocorrer se, aliada à força maior ocorrer omissão do Poder Público". [138]

Em casos de ocorrência de culpa exclusiva da vítima, o Estado não pode responder, porque não houve participação alguma do mesmo, porém, se a culpa é concorrente, o Estado terá sua responsabilidade atenuada, repartindo-a com a vítima.

3. Responsabilidade Civil do Estado no Âmbito do Poder Judiciário

Quando nos reportamos à responsabilidade do Estado, obrigatoriamente estamos tratando das suas funções, pois é precisamente por meio delas que se reparte o poder estatal. Tais funções foram criadas para atuar na condição de órgãos autônomos e independentes, desempenhando cada uma tarefa própria, dentro dos limites estabelecidos pelo ordenamento constitucional.

Acerca da função estatal, José de Albuquerque Rocha enuncia que:

... as chamadas funções do Estado são, justamente, as tarefas ou atribuições fundamentais que o Estado tem de executar para realizar seus fins. É exatamente nesse sentido que a palavra função é usada por nossa Constituição Federal ao tratar do exercício das funções do Estado, nos arts. 44 e 76. Só que a Constituição Federal usa a palavra poder com o sentido de função, de forma que, onde está escrito "o Poder Legislativo e o Poder Executivo são exercidos etc.", deve-se ler: a função legislativa e a função executiva são exercidas etc. Por conseguinte, função do Estado é o conjunto unitário de atribuições que o Estado tem de implementar para alcançar a realização dos fins a que se propõe. [139] (grifo do autor).

Assim, podemos dizer que as funções: Administrativa, Executiva e Judiciária se destinam à concretização de atividades próprias que visam aos fins a que o Estado se propõe – o bem comum. Diante de tais circunstâncias, podemos afirmar que a responsabilização do Estado, decorre necessariamente de danos causados ao particular mediante o exercício de suas funções.

Não mereceria tratamento diferenciado o Poder Judiciário. Já que a noção de serviço público não se cinge apenas à atividade administrativa. Sobre o conceito de serviço público, preleciona Hely Lopes Meirelles: "... é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado". [140]

Com maior clareza se expressa Pontes de Miranda, enunciando que: "Serviço público é o que concerne ao desenvolvimento da atividade estatal, em seus três ramos: legislativo, executivo e judiciário". [141]

O conceito amplo de serviço público inclui, como visto todas as atividades do Estado: legislação, execução e jurisdição. Esta última também se insere como uma das funções específicas do Estado, uma vez que o mesmo chamou a si, exclusivamente a tutela dos direitos ameaçados ou violados, instituindo o serviço público judiciário, funcionando este como espécie do gênero serviço público.

Nessa condição, a atividade judiciária deve ser prestada como os demais serviços públicos, primando pelo zelo e presteza para atingir a finalidade a que se propõe, sujeitando-se portanto à responsabilização pelos danos causados por sua indevida atuação. Pensar de forma contrária, seria negar o próprio direito e admitir que o Estado criado para assegurar a paz e sobretudo, no exercício da jurisdição, proporcionar segurança jurídica, ao se excepcionalizar, tornando-se imune à responsabilização, acaba por não cumprir com sua função de distribuir justiça.

No momento, cumpre-nos explicitar o entendimento firmado por José de Albuquerque Rocha no sentido de que:

... a jurisdição é, justamente, a função estatal que tem a finalidade de manter a eficácia do direito em última instância no caso concreto, inclusive recorrendo à força, se necessário. Sua nota individualizadora é de natureza funcional e consiste, por conseguinte, em estar dirigida, especificamente, ao fim de manter, em última instância, o ordenamento jurídico no caso concreto, ou seja, manter o ordenamento jurídico quando este não foi observado espontaneamente pela sociedade. [142]

Do citado conceito se infere que, a jurisdição tem por finalidade a conservação do direito e a manutenção do ordenamento jurídico, constituindo-se a um só tempo em direito fundamental do cidadão - no sentido de exigir decisões justas, e um dever do Estado em prestá-las.

Ademais, o serviço judiciário deve ser entendido como modalidade do serviço público, uma vez que é exercido por uma das funções estatais, por isso, se praticado atos danosos a particulares, no exercício de suas atribuições, estará agindo, igualmente em nome do Estado, se constituindo em um serviço danoso prestado pelo mesmo, conservando, portanto, a obrigação de responder civilmente pela indenização.

O Poder Judiciário, considerado por alguns como o último reduto da irresponsabilidade civil do Estado, na atualidade, tem suscitado na doutrina e jurisprudência posicionamentos divergentes e conflituosos quanto à sua responsabilização. A jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal, [143] por exemplo tem se consolidado no sentido da irresponsabilidade civil do Estado, quanto a atos do poder Judiciário, admitindo apenas a responsabilização nas hipóteses previstas na legislação. A ementa abaixo transcrita demonstra com clareza os argumentos expendidos pelo STF para não responsabilizar o Estado por atos do Poder Judiciário:

Responsabilidade Objetiva do Estado – Ato do Poder Judiciário – a orientação que veio a predominar nesta Corte, em face das Constituições anteriores à de 1988, foi a de que a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do Poder Judiciário, a não ser nos casos expressamente declarados em lei – Precedentes do STF – Recurso Extraordinário não conhecido (STF, 1ª T., 11/12/92).(RTJ 145/268).

Sobre o atual posicionamento da Corte Constitucional brasileira, pondera Vilson Rodrigues Alves:

Em que pese a tais doutos entendimentos, que o Colendo Supremo Tribunal Federal tem adotado para decidir por um Estado irresponsável civilmente pela indenizabilidade dos danos acarretados pela prática de atos judiciais, quando não-previstos expressamente pela técnica legislativa, é absolutamente necessário proceder-se à revisão desse posicionamento, a fim de que opere, quando coexistentes os essentialia do suporte fático de incidência das regras jurídicas da Constituição Federal de 1988, art. 37, § 6º, a responsabilidade civil do Estado pelos danos que todos os seus agentes causarem a terceiros, inclusive os juízes. [144]

Não obstante o Supremo Tribunal Federal apresente como fundamento de suas decisões o fato de ser o Poder Judiciário soberano e gozar os juízes de imunidades que não se enquadram no regime de responsabilidade aplicada aos demais agentes públicos, argumentos mais lógicos e critérios hermenêuticos mais aceitáveis e convincentes orientam a uma posição contrária, atribuindo uma correta interpretação ao artigo 37, § 6º da Constituição Federal, que conduz à responsabilização do Estado por atos praticados no âmbito do Poder Judiciário.

Nesta esteira de raciocínio e citando dispositivos da Constituição Portuguesa, JJ. Gomes Canotilho assegura que:

Além da responsabilidade da administração, a norma constitucional está "aberta" à responsabilidade por facto das leis ("responsabilidade do Estado-legislador") e à responsabilidade por facto da função jurisdicional ("responsabilidade do Estado-juiz"). Relativamente a esta última, a Constituição consagra expressamente o dever de indemnização nos casos de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (CRP, art. 27.º/5) e nos casos de erro judiciário (CRP, art. 29.º/6), mas a responsabilidade do Estado-juiz pode e deve estender-se a outros casos de "culpa grave" de que resultem danos de especial gravidade para o particular. [145] (grifo do autor)

A Constituição portuguesa, em seu art. 22, a exemplo de outros países, [146] estabelece a responsabilidade civil do Estado, quando representado por seus agentes e funcionários, causar danos a terceiros, o fazendo nos seguintes termos:

O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis em forma solidária com os titulares, funcionários ou agentes por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem. (art. 22).

A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer. (art. 26 – 5). [147]

Não enxergamos razões para diferenciar o cabimento da responsabilidade do Estado Administrador e Legislador e a não responsabilização do Estado Juiz. Acreditamos que o art. 37, § 6º da Constituição Federal não estabeleceu nenhuma distinção. Segue transcrição do citado artigo, in verbis:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo e culpa.

Por esse e por outros motivos que adiante elencaremos é que a teoria da irresponsabilidade vem aos poucos caindo em desuso. Ademais, o princípio da igualdade dos encargos sociais que impõe ao prejudicado o direito à indenização quando sofrer danos em virtude do funcionamento do serviço público, encontra-se na atualidade servindo de guia à responsabilização do Estado.

Os principais argumentos utilizados pelos que defendem a irresponsabilidade do Estado na esfera do Judiciário são os seguintes:

a)Soberania do Poder Judiciário - o exercício da função jurisdicional está acima da lei, pois este órgão do Estado exerce parcela do poder supremo, é portanto soberano, não comportando questionamento algum, em face do caráter absoluto que encerram suas decisões, logo de sua atuação não poderá resultar responsabilidade para o Estado, mesmo porque contra o Judiciário não se pode contrapor interesses particulares;

b) Independência dos magistrados no exercício de suas funções - os juízes gozam de absoluta independência, não podendo sofrer abalos na sua autonomia, decorrência lógica do princípio da independência funcional da magistratura, princípio insculpido na Constituição Federal de 1988, visando garantir a atuação livre, imparcial e sem restrições aos seus membros;

c)Não inclusão dos magistrados na norma constitucional que prevê a responsabilidade do Estado por danos provocados aos particulares: - a responsabilidade patrimonial do Estado imposta pelo art. 37, § 6° da Constituição Federal é alusiva a ato danoso praticado por funcionário público, não sendo o magistrado considerado funcionário público, mas agente político, não se pode invocar o dispositivo para responsabilizar o Estado por ato jurisdicional;

d)Infringência à coisa julgada - quando o Judiciário profere decisões, tais atos se cercam da imutabilidade da coisa julgada, e mesmo decidindo erroneamente, não caberia indenização pelo dano decorrente, pois estar-se-ia desprestigiando e violando o instituto da coisa julgada.

Totalmente infundada é a pretensão do primeiro argumento ao afirmar a irresponsabilidade do Poder Judiciário, tendo em vista que a soberania não pode funcionar como atributo de uma das funções estatais, de maneira exclusiva, só se permitindo o reconhecimento de tal prerrogativa à nação.

Vejamos o conceito de soberania, segundo JJ. Gomes Canotilho: "A soberania, em termos gerais e no sentido moderno traduz-se num poder supremo no plano interno e num poder independente no plano internacional". [148] (grifo do autor). Mais adiante, esclarece que: "... só a nação é soberana... ". [149]

O raciocínio de que o Poder Judiciário se constitui numa função soberana, levaria à conclusão de que o Poder Executivo – em relação ao qual não se contesta a responsabilidade, também o seria, e nessa condição, aplicação nenhuma teria o art. 37, § 6º da CF/88, posto que os atos dos agentes públicos, praticados no exercício das funções Executiva, Legislativa e Judiciária representariam atos de soberania.

No entanto, esta construção "lógica" não merece amparo, por isso o dispositivo constitucional citado se aplica igualmente ao Judiciário e ao Legislativo e além do mais o Judiciário, mesmo se considerado como poder soberano não poderia se encontrar acima do Direito.

A interpretação levantada chega a equiparar os poderes, em especial a função Judiciária à totalidade do próprio Estado, como se fosse possível cindir e exercer a soberania livremente, sem vinculação alguma ou subordinação a outros elementos. Ademais, mesmo que o exercício da jurisdição fosse considerado ato de soberania, não poderia isso significar irresponsabilidade do Estado, não se contrapondo a soberania à noção de responsabilidade.

Nesse sentido, enuncia Josivaldo Félix de Oliveira:

Mesmo que se admitisse a soberania do Judiciário, este fato não exoneraria o Estado de ressarcir os danos por atos jurisdicionais, por não haver autonomia entre soberania e responsabilidade pois soberania não quer dizer infalibilidade ou irresponsabilidade. [150]

Vale ressaltar, por fim, a consideração feita por Marcelo Sampaio Siqueira:

A afirmação de que o exercício da função jurisdicional constitui a própria manifestação da soberania do Estado, não podendo o ato judicial ser passível de falha, ensejador de dano, já que o ato soberano não pode ser contestado, levaria-nos à época da irresponsabilidade total do Estado, repudiada não só pela doutrina, mas pelas normas positivadas e pela própria jurisprudência. [151]

Quanto ao segundo argumento, compete inicialmente dizer que entre a responsabilidade do Estado e a garantia de independência não há qualquer incompatibilidade, não implicando dessa forma, a responsabilidade, na perda da liberdade de julgar ou em restrição ao desempenho do magistrado.

No magistério de JJ. Gomes Canotilho:

A independência funcional é uma das dimensões tradicionalmente apontadas como constituindo o núcleo duro do princípio da independência. Significa ela que o juiz está apenas submetido à lei – ou melhor, às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas – no exercício da sua função jurisdicional. [152] (grifo do autor).

A independência do Judiciário, prevista no art. 95 da Constituição Federal de 1988, trouxe como corolário a garantia de independência do juiz e a sua imparcialidade, requisitos que cercam a magistratura de liberdade para estabelecer julgamentos conforme a convicção do julgador. Destarte, a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva, com o conseqüente emprego do art. 37, § 6º, da CF/88, não afrontaria a figura do juiz, até porque quem arcaria com a responsabilidade de indenizar, num primeiro momento, seria o Estado.

Como explica Marcelo Sampaio Siqueira:

... a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, abrangendo os atos jurisdicionais, não estaria inovando o ordenamento, pois a regra existe desde a Constituição de 1946, art. 194, como também não estaria enfraquecendo a figura do Juiz, que só seria atingido pela falha que cometeu em casos específicos, podendo esses agentes, salvo situações excepcionais, ser considerados irresponsáveis. Mas uma coisa é a irresponsabilidade de certos tipos de agente público, outra coisa é a irresponsabilidade do Estado pelos atos de seus agentes, teoria abandonada a muito. [153]

Outro ponto a ser destacado é que o fato de ser o juiz falível em suas decisões, podendo equivocar-se no curso do processo ou em seu final, não pode justificar a irresponsabilidade do Estado pelos danos eventualmente ocorridos. Consoante Marcelo Sampaio Siqueira:

Essa afirmação é capaz apenas de justificar a irresponsabilidade do magistrado, mas nunca a do Estado, que se encontra fundamentada não só no princípio da responsabilidade objetiva, mas nos princípios da dignidade da pessoa humana, artigo 1º, inciso III da CF, e da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, artigo 2º, inciso I da CF. [154]

Ademais, a independência não significa privilégio dos magistrados, a ponto de gerar total irresponsabilidade para o Estado, deixando aos jurisdicionados o ônus de pagar pelo custo de tal prerrogativa atribuída aos juízes. A respeito da independência da magistratura, se pronuncia Mauro Cappelletti:

... deve ser vista, ao contrário, em função dos usuários, e, assim, como elemento de um sistema de justiça que conjugue a imparcialidade – e aquele tanto de separação ou isolamento político e social que é exigido pela imparcialidade – com razoável grau de abertura e de sensibilidade à sociedade e aos indivíduos que a compõem, a cujo serviço exclusivo deve agir o sistema judiciário. [155] (grifo do autor).

Comentando sobre a irresponsabilidade dos juízes por suas decisões, e demonstrando que o Estado deve arcar com a indenização nos casos em que a lei não prevê a responsabilidade do juiz, esclarece JJ. Gomes Canotilho: "Os particulares que se considerem lesados por actos ou comportamentos dos magistrados no exercício da função jurisdicional poderão recorrer ao instituto da responsabilidade do Estado". [156]

De modo a refutar o argumento da independência, tem-se a posição da Profa. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Diz ela "A idéia de independência do Judiciário também é inaceitável para o fim de excluir a responsabilidade do Estado, porque se trata de atributo inerente a cada um dos Poderes. O mesmo temor de causar danos, poderia pressionar o Executivo e o Legislativo." [157]

Quanto ao entendimento de que a condição jurídica do juiz não implica em classificá-lo como funcionário público, não tem mais razão de existir, posto que a atual Constituição Federal, em seu art. 37, § 6º, utiliza a expressão "agente", e não mais a de "funcionários públicos", como fez a Constituição de 1967. No direito brasileiro, o magistrado ocupa cargo público criado por lei e se enquadra no conceito legal dessa categoria funcional, desempenhando uma função em nome do poder público, mediante remuneração.

E mesmo que se entendesse ser o magistrado agente político, estaria, ainda inserido na previsão constitucional que garante ao lesado a indenização pelo Estado quando causar dano pela sua atuação. A utilização da expressão "agente", abrange todas as categorias de pessoas que prestam serviços ao Estado, a qualquer título. Dessa forma, infrutífera é a discussão para saber se o magistrado se enquadra na classificação de servidor público ou funcionário público, agente especial ou sui generis. O que importa efetivamente é saber que o mesmo desempenha suas funções na qualidade de agente público, se constituindo esta classificação no gênero de todas as outras espécies, concluindo-se que a norma constante do art. 37, § 6º da Constituição Federal é aplicável aos atos dos juízes.

A intangibilidade da coisa julgada, também não é suficiente para justificar a irresponsabilidade estatal por atos do Judiciário. A justificativa que oferece suporte a esse argumento se baseia no fato de que a interposição de uma ação que se propõe ao reconhecimento do ato falho, estaria rediscutindo assunto relativo à decisão que não comporta mais questionamento, por força do trânsito em julgado.

A res judicata não se revela como valor de caráter absoluto, pois entre ela e o conceito de justiça, o último prevalecerá, porque se a coisa julgada visa assegurar a paz jurídica, esta, está mais do que respeitada, se for, por exemplo, desfeita uma sentença injusta, reparando-se ao prejudicado todos os danos por este suportados.

Em nosso ordenamento jurídico, a coisa julgada é restringida pela ação rescisória, no âmbito processual civil e pela revisão criminal, no processo penal. Com relação a esta última, existe previsão no art. 630 do Código de Processo Penal, impondo ao Estado o dever de indenizar. Em verdade, não se justifica nos dias atuais, o estabelecimento de uma regra específica para o erro judiciário, como a do referido artigo constante no Código de Processo Penal, se já existe uma regra mais abrangente, de caráter constitucional, estabelecendo a responsabilidade objetiva do Estado, por danos que seus agentes causarem a terceiros, seja na esfera processual civil ou penal.

Quando se tratar de revisão criminal provida, dúvida não há, até porque a regra geral contida na Constituição Federal, ratificada pela anterior previsão do 630 do CPP, impõe de forma cabal o dever de indenizar. Dúvidas subsistem quando a ação rescisória não soluciona o assunto, por ter sido julgada improcedente, porque ocorreu prescrição ou porque a decisão se torna imutável. Nesses casos, houve o trânsito em julgado, sem possibilidade alguma de modificação no teor decisório, daí se infere que uma indenização por dano decorrente de sentença, poderia infringir a regra da imutabilidade da coisa julgada. Esse é o argumento mais forte para inadmitir a responsabilidade do Estado no âmbito do Judiciário, pois as decisões judiciais ao transitarem em julgado, não permitem contestação, por encerrarem presunção de verdade [158].

O que se constata, por evidente, é que nada tem a indenizabilidade estatal pelos danos causados a terceiros pelo erro judiciário, com a eficácia da coisa julgada. Não havendo a exigência da ação de rescisão da sentença que provocou o erro. Com efeito, o que se pretende é impor ao Estado a possibilidade de indenizar o prejudicado, em se tratando de erro, fato que não implica necessariamente na modificação da sentença prolatada. A decisão permanece válida entre as partes, produzindo os seus efeitos e conservando natureza de intangibilidade, ficando, porém, o Estado na obrigação de reparar os danos que a decisão imutável acarretou a uma das partes.

O Estado poderá responder civilmente por atos lesivos praticados pelos órgãos do Poder Judiciário, tendo em vista que o mesmo não exige distinção entre atos administrativos, legislativos ou jurisdicionais; requer-se tão somente prova do dano e a comprovação de ter sido ele causado por ato do agente público.

Além dos citados argumentos em prol da irresponsabilidade estatal por atos do Poder Judiciário, Vilson Rodrigues Alves, faz menção a outros: riscos da jurisdição; lacuna do direito positivo; onerosidade estatal excessiva; processo simulado e inessencialidade da atividade jurisdicional.

Pelo argumento do risco da jurisdição, o Estado seria irresponsável por erro judiciário, pressupondo-se que o jurisdicionado, uma vez acionado o Poder Judiciário suportaria os riscos advindos da jurisdição. Não merece acolhida tal entendimento. Sobre ele, Vilson Rodrigues Alves enuncia:

Por essa consideração, a falibilidade contingencial do Magistrado seria risco que as pessoas sob sua jurisdição teriam assumido. Ora, a responsabilidade civil traçada no art. 37, § 6º, da Constituição da República, de 1988, é resultado de lenta e sólida evolução da teoria do risco administrativo, a que evidentemente se contrapõe o entendimento que pretende pré-excluir a indenizabilidade estatal no suporte da prévia assunção deste risco pelos próprios jurisdicionados. [159] (grifo do autor).

Quanto à lacuna no Direito Positivo não existe consistência alguma, tendo em vista a existência da norma contida na Constituição Federal que obriga o Estado a reparar o dano causado ao particular por sua indevida atuação, valendo lembrar que a citada regra não se traduz em norma de caráter programático, por tal motivo, o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, se constitui em norma com direito bastante em si, possuindo plena eficácia, sem necessidade de regulamentação infraconstitucional. O fato de ser auto-aplicável e estar presente no corpo da Constituição, revela também que se outras leis pretenderem o afastamento da responsabilidade civil estatal, em afronta ao artigo constitucional, será ela tida como inconstitucional, devendo ser expurgada do ordenamento jurídico, via ação de inconstitucionalidade. Saliente-se também que o dever de indenizar por parte do Estado é fundado na responsabilidade objetiva, pela qual, presentes os elementos: resultado danoso, nexo de causalidade entre o resultado e o ato omissivo ou comissivo do agente político, impõe-se a obrigação de indenizar.

Para os adeptos da teoria da onerosidade estatal excessiva, a responsabilidade do Estado por atos do Poder Judiciário implicaria sobrecarga ao erário público, com um visível prejuízo para o Estado que já possui outras obrigações. Convém reconhecer que este raciocínio nos leva a afirmar a ineficiência do serviço público estatal. Com clareza, explica Vilson Rodrigues Alves:

... não se pode carrear a problemática dos recursos à indenizabilidade ao lesado, que isso, antes de problema dele, é problema do Estado, que chamando a si a monopolização da tutela jurisdicional, por óbvio também a si atraiu a responsabilidade pelos défices no desenvolvimento das atividades-meio a esse fito. [160]

O processo simulado implica na possibilidade de facilitação às partes, com base no art. 37, § 6º, da Constituição Federal da simulação de um processo, com o objetivo de lesar terceiros, desviando o processo de seu fim instrumental. Porém, o Código de Processo Civil já prevê a responsabilidade por perdas e danos daquele que pleitear de má-fé como autor, ré ou interveniente, reputando ainda como litigante de má-fé quem usar do processo para conseguir objetivo ilegal (arts. 16 e 17, do Código de Processo Civil). Além de prevê o art. 485, III, do Código de Processo Civil, a rescindibilidade da sentença que resultar de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei.

A inessenciabilidade da atividade jurisdicional, consiste no fato de que as pessoas prescindem da jurisdição, sem necessidade de tal serviço para viverem. Acerca do tema se posiciona Vilson Rodrigues Alves:

... na casuística das objeções doutrinário-jurisprudenciais à responsabilidade civil do Estado por erro de seus juízes, há também a afirmação de que as pessoas, que não poderiam viver sem a administração, poderiam viver sem a jurisdição, sem ter relação com a justiça. Desse por correto esse equivocado enunciado, a verdade é que, havendo dano, incidiria, como ineliminavelmente incide, a primeira regra jurídica do art. 37, § 6º da Constituição Federal. Do contrário, o Estado, que monopolizou a prestação da tutela jurisdicional para reduzir injustiças, faria o contrário, recrudesceria a injustiça. [161]

Por fim, cumpre transcrever posicionamento de Canotilho acerca da responsabilidade por fato da função jurisdicional:

Não obstante as reticências da jurisprudência portuguesa, a orientação mais recente de alguns países vai no sentido de consagrar a responsabilidade dos magistrados (de tribunais individuais ou colectivos) quando a sua actividade dolosa ou gravemente negligente provoca um dano injusto aos particulares. Sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova. [162]

É absurdo constatar que o direito brasileiro, por meio da jurisprudência e da doutrina clássica, ainda não admite interpretação que permita a responsabilização do Estado no âmbito do Poder Judiciário, manifestando-se, ao contrário, pela teoria da irresponsabilidade, como é o caso já citado da posição firmada pelo Supremo Tribunal Federal, ao argumento de que os magistrados, pela garantia da independência que os cercam, encontram-se imunes ao erro, sendo suas decisões intangíveis e infalíveis, interpretação que vem liberando o Estado da responsabilidade pelos danos injustos causados aos que procuram o Judiciário, exatamente para realização da justiça.

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Sobre a autora
Lenilma Cristina Sena de Figueiredo Meirelles

Mestre em Direito Constitucional pela UFC;Professora de Direito Processual Penal da UFPB;Professora da Especialização em Direito Processual da UFCG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRELLES, Lenilma Cristina Sena Figueiredo. Responsabilidade civil do Estado por prisão ilegal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 505, 24 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5961. Acesso em: 29 mar. 2024.

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