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A liberdade de crença

04/10/2017 às 13:00
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Para garantir simultaneamente a liberdade de todos, a laicidade distingue e separa o domínio público, onde se exerce a cidadania, e o domínio privado, onde se exercem as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de convicção) e onde coexistem as diferenças (biológicas, sociais, culturais).

I - A LAICIDADE

Em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, uma umbandista foi apedrejada pela vizinha evangélica. Uma ialorixá, acusada de bruxaria, macumbeira e feiticeira-mor, foi atacada por sete homens. Tinham ordens para atacar os terreiros. Em frente ao terreiro, deixaram o recado: "Só Jesus salva". Casos como esse cresceram 4.940% entre 2011 e 2016.

Essas formas de discriminações religiosas não devem ser toleradas no Estado Democrático de Direito.

O Estado brasileiro, dentro de um entendimento que vem desde a Constituição de 1891, é laico.

Necessário saber o que é laicidade.

A Laicidade é a forma institucional que toma nas sociedades democráticas a relação política entre o cidadão e o Estado, e entre os próprios cidadãos. No início, onde esse princípio foi aplicado, a Laicidade permitiu instaurar a separação da sociedade civil e das religiões, não exercendo o Estado qualquer poder religioso e as igrejas qualquer poder político.

Para garantir simultaneamente a liberdade de todos e a liberdade de cada um, a Laicidade distingue e separa o domínio público, onde se exerce a cidadania, e o domínio privado, onde se exercem as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de convicção) e onde coexistem as diferenças (biológicas, sociais, culturais). Pertencendo a todos, o espaço público é indivisível: nenhum cidadão ou grupo de cidadãos deve impor as suas convicções aos outros. Simetricamente, o Estado laico proíbe-se de intervir nas formas de organização coletivas (partidos, igrejas, associações etc.) às quais qualquer cidadão pode aderir e que relevam do direito privado.

A Laicidade garante a todo o indivíduo o direito de adotar uma convicção, de mudar de convicção, e de não adoptar nenhuma.

A Laicidade do Estado não é, portanto, uma convicção entre outras, mas a condição primeira da coexistência entre todas as convicções no espaço público.

Como afirmou o ministro Celso de Mello, no julgamento da ADin 4.439, o Estado laico não pode ter preferências de ordem confessional, não podendo interferir nas escolhas religiosas das pessoas. “Em matéria confessional, o Estado brasileiro há manter-se em posição de estrita neutralidade axiológica em ordem a preservar, em favor dos cidadãos, a integridade do seu direito fundamental à liberdade religiosa”, destacou, ao acompanhar integralmente o relator da ação direta.

Para o ministro Marco Aurélio, no mesmo julgamento citado,  a laicidade estatal “não implica o menosprezo nem a marginalização da religião na vida da comunidade, mas, sim, afasta o dirigismo estatal no tocante à crença de cada qual”. “O Estado laico não incentiva o ceticismo, tampouco o aniquilamento da religião, limitando-se a viabilizar a convivência pacífica entre as diversas cosmovisões, inclusive aquelas que pressupõem a inexistência de algo além do plano físico”, ressaltou, acrescentando que não cabe ao Estado incentivar o avanço de correntes religiosas específicas, mas, sim, assegurar campo saudável e desimpedido ao desenvolvimento das diversas cosmovisões.


II - O CRIME CONTRA A LIBERDADE RELIGIOSA

No Brasil, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997,considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões.

Trata-se de crime de perigo, que exige dolo como elemento subjetivo.

Em tal lei, são considerados crimes de discriminação ou preconceito contra religiões as práticas prescritas nos seguintes artigos: art 3º (“Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos”), art. 4º (“Negar ou obstar emprego em empresa privada”), art. 5º (“Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador”), art. 6º (“Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau”), art. 7º (“Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar”), art. 8º (“Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público”), art. 9º (“Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público”), art. 10º (“Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades”), art. 11º (“Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos”), art. 12 (“Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido”), art. 13 (“Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas”), art. 14 (“Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social”), art. 20 (“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”), e, art 20, § 1º, (“Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”).

Isso não significa que essas sejam as únicas condutas criminosas previstas na legislação brasileiras em relação a intolerância e perseguição religiosa. Punição a incitações a violência, como agressões ou até mesmo homicídios, por motivos religiosos ou não, estão previstos no Código Penal brasileiro.


III - AS LIBERDADES ESPIRITUAIS E A LIBERDADE DE CRENÇA

A liberdade religiosa se inclui entre as liberdades espirituais. Sua exteriorização é forma de manifestação de pensamento.

A liberdade de crença não se confunde com a liberdade de consciência.

Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, L.V, 119) ensinava que "o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele juridicamente tal direito", assim como a liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter crença".

A Constituição do Império não conhecia a liberdade de culto com essa extensão, que é própria do Estado democrático de direito. Só a reconhecia para a religião católica, que, então, era a religião oficial do Estado. A outras eram toleradas apenas "com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de tempo (artigo 5º).

A República, com a Constituição de 1891, estabeleceu a liberdade religiosa com a separação da Igreja do Estado. Isso principiou com o Decreto 119 - A, 7 de janeiro de 1890, da lavra de Rui Barbosa. 

A primeira Constituição republicana consolidou essa separação e os princípios básicos da liberdade religiosa.

Na liberdade de crença entra na liberdade de escolha de uma religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade(ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a uma religião alguma, como disse Jacques Robert(Liberté Réligieuse et le Régime des Cultes, 1977, pág. 8, 9, 101), assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de aderir ao agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença.

Na lição de Pontes de Miranda(obra citada, pág. 129), "compreendem-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios da manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso.

Determina o artigo 5º inciso VI, que é assegurada, na forma da lei, proteção aos locais de culto e às suas liturgias. Há uma verdadeira garantia constitucional que assegura a liberdade de exercício dos cultos religiosos, sem condicionamentos, e protege os locais de culto e suas liturgias, na forma da lei. A lei poderá definir os locais de culto.

De acordo com o artigo 19, I, da Constituição é vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o exercício ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Na matéria ainda ensinou Pontes de Miranda(obra citada, tomo II/185):

"Estabelecer cultos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou qualquer postos de prática religiosa ou propaganda. Subvencionar cultos religiosos está no sentido de concorrer, com dinheiro, ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça a atividade religiosa. Embaraçar o exercício dos cultos religiosos significa vedar ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso. Há, em relação a isso, o imperativo constitucional da imunidade de impostos com relação a templos de qualquer culto(artigo 150, VI, "b" da Constituição). Não se admitem relações de dependência ou de aliança com qualquer culto, aliança com qualquer culto, igreja ou seus representantes, não impedindo que existam relações diplomáticas do Brasil com países como o Vaticano.

É assegurada, nos termos da lei, a prestação de serviços de assistência religiosa, nas entidades civis e militares de internação coletiva.

Quanto ao ensino religioso, o Supremo Tribunal Federal, interpretou, recentemente,  o artigo 210, §º da Constituição, na ADin 4.439, já referenciada. 

A Procuradoria-Geral da República questionava trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação sobre o assunto, assim como acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé (Decreto 7.107/2010). Para a maioria dos ministros, matrículas facultativas respeitam a laicidade do Estado e a liberdade de crença da população. Objetivava-se dar plena efetividade à norma constitucional citada.

O ministro Alexandre de Moraes afirma que quem optar por cursar a disciplina poderá escolher a crença preferida, e a escola deverá ter professores vinculados a essa religião para dar aula sobre o tema.


IV - O CASAMENTO RELIGIOSO COM EFEITOS CIVIS 

Quanto ao casamento religioso tem-se que o casamento válido juridicamente é o civil, mas o casamento religioso terá efeito civil, nos termos da Lei(artigo 226, §§1º e 2º). A Constituição de 1988 preferiu remeter a regulamentação da validade civil do casamento para a lei, ao contrário das constituições anteriores que já estabeleciam as condições e requisitos para a equiparação, sendo normas de eficácia plena. A norma prevista na Constituição de 1988 é de eficácia limitada, pois dependerá de lei para a sua aplicação.

O procedimento que, atualmente, é disciplinado parte na Lei n. 1.110/50 e parte na Lei n. 6.015/73, passará a ser regulado nos arts. 1.515 e 1.516 do novo Código Civil. 

O deslocamento das normas regulamentadoras do casamento religioso com efeitos civis da Lei n. 1.110/50 e Lei n. 6.05/73 para o corpo do novo Código Civil demonstra sua valorização pelo legislador. Aqui, será, obrigatoriamente, visto por todos que se depararem com o Direito de Família, já que está, topograficamente, logo nos primeiros artigos no Livro IV.

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O art. 1.516 no § 1º do cuida da habilitação prévia e no 2º da habilitação posterior.

No casamento religioso com efeitos civis mediante habilitação prévia, constata-se que o prazo para o registro foi dilatado de 30 para 90 dias. Os legitimados para o requerê-lo continuam os mesmos do art. 3º, da Lei n. 1.110/50 e art. 73 da lei n. 6.015/73, ou seja, a autoridade religiosa celebrante ou qualquer interessado.

Transcorridos os noventa dias sem qualquer manifestação das partes legitimadas a requerer o registro, bastará submissão a nova habilitação para que o casamento religioso seja registrado.

Ao disciplinar a habilitação posterior, o Código Civil de 2002, deixou a desejar; sua aprovação com a redação atual significará um retrocesso em face da legislação vigente. 

O art. 1.516 no § 1º do cuida da habilitação prévia e no 2º da habilitação posterior.

No casamento religioso com efeitos civis mediante habilitação prévia, constata-se que o prazo para o registro foi dilatado de 30 para 90 dias. Os legitimados para o requerê-lo continuam os mesmos do art. 3º, da Lei n. 1.110/50 e art. 73 da lei n. 6.015/73, ou seja, a autoridade religiosa celebrante ou qualquer interessado.

Transcorridos os noventa dias sem qualquer manifestação das partes legitimadas a requerer o registro, bastará submissão a nova habilitação para que o casamento religioso seja registrado.

A Lei n. 1.110/50 foi criticada por não estabelecer o rol das religiões idôneas à celebração e o novo Código Civil vai nesse trilhar. 

A Constituição não faz e nem pode fazer discriminações. 

Não se coaduna com a Constituição de 1988, entendimento, no passado, do Tribunal de Justiça do ex-Estado da Guanabara(RF 232;172) onde se dizia: 

"Não sendo considerado religião, o espiritismo, é insuscetível de registro civil a união conjugal realizada em qualquer de seus centros". Tal entendimento não foi recepcionado pela Constituição de 1988. 

Candomblé e Umbanda são  religiões afro-brasileiras mais conhecidas do país, além de outras. 

Espiritismo, Doutrina espírita, Kardecismo ou Espiritismo kardecista é uma doutrina religiosa e filosófica mediúnica ou moderno espiritualista. 

Como ensinou Maria Helena Diniz(Curso de direito civil brasileiro, 24ª edição, direito de família, pág. 114). o casamento é civil, mas é pefeitamente válido que os nubentes se casem no religioso, atribuindo-lhes efeitos civis desde que haja habilitação prévia ou não. O casamento religioso terá efeito civil  se observados os impedimentos, as causas suspensivas(CC, artigos 1.521 a 1.524), a capacidade matrimonial(CC, artigo 1.516) e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contando que seja o ato inscrito no registro público.O casamento religioso celebrado sem as formalidades exigidas pelo Código Civil terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for inscrito no registro público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente, como dita o artigo 226, § 2º). 

A Lei n. 1.150/50(ratificada pelo Decreto-lei n. 1.000/69 e Lei n. 6.015/73, artigos 71 a 75), que primeiro disciplinou o reconhecimento dos efeitos civis do matrimõnio religioso distinguiu as hipóteses de habilitação prévia e habilitação posterior. A matéria é contemplada no artigo 1.516, § 1º a 3. Ali se lê: 

Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil.

§ 1o O registro civil do casamento religioso deverá ser promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao ofício competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido homologada previamente a habilitação regulada neste Código. Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação.

§ 2o O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532.

§ 3o Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes dele, qualquer dos consorciados houver contraído com outrem casamento civil. 

Tem-se duas modalidades de casamento religioso com efeito civil: 

a) casamento religioso precedido de habilitação civil(Lei n. 6.016/73, artigo 71, ora revogado pelo artigo 1.516, § 1º, do Còdigo Civil, caso em que os nubentes processam a habilitação matrimonial perante o oficial do Registro Civil, observando os artigos 1.525, 1.526, 1.527 e 1.531 do Código Civil, pedindo-lhe que lhes forneça a respectiva certidão, para se casarem perante o ministro religioso, nela mencionando o prazo legal de validade da habilitação, de 90 dias(artigo 1.532 do Código Civil). O oficial expedirá certidão, dela fazendo constar seu fim específico e entregará a um dos contraentes, mediante recibo que ficará nos autos de habilitação. Essa certidão será entregue à autoridade religiosa, que o arquivará, realizando o ato nupcial. Dentro de outro prazo decadencial de 90 dias, contado da celebração do casament, o ministro religioso ou qualquer interessado deverá requerer seu assento no Registro Civil(artigo 1.516, § 1º, do Código Civil). No ensinamento de Walter Ceneviva(Lei dos registros públicos comentada, 1979, pág. 169), esgotado aquele prazo de 90 dias sme que se tenha provido tal registro, é sinal de que os nubentes desinteressaram-se pela produtividade de efeitos civis desse matrimônio, de maneira que os pretendentes, se o quiserem, terão de se habilitar novamente e, querendo casar-se, cumprir todas as formalidades civis, porque o oficial não poderá registrar o anterior; 

b) casamento religioso não precedido de habilitação civil perante o oficial do Registro CIvil poderá ser registrado a qualquer tempo, desde que os nubentes, juntamente com o requerimento de registro, apresentem a prova do ato religioso e os documentos exigidos pelo artigo 1.525 do Código Civil de 2002 e supram, à requisição do oficial, eventual falta de requisitos ou termo da celebração religiosa. Processada a habilitação com a publicação dos editais, certificando-se o oficial da ausência de impedimentos matrimoniais e de causas suspensivas, fará o registro do casamento religioso observando o prazo do artigo 1.532 do Código Civil e de acordo com a prova do ato e os dados constantes do processo, como disciplina o artigo 1.516, § 2º. 

Determina o artigo 1.515 do Código Civil: 

Art. 1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.

Ensinou ainda Walter Ceneviva(obra citada, pág. 172): 

"Não é que o registro produza efeitos a contar da celebração. Os fins do registro são alcançados a contar da data em que o assentamento é formalizado, o que, por sua vez, faz retornar os efeitos jurídicos do casamento à data da celebração. Omitido o registro, o matrimônio é só religioso. A relação entre os nubentes é, para efeitos civis, concubinária, sendo seu estado civil até o registro aquele que tinham antes de se consorciarem. Feito o registro, o estado civil pasa a ser de casados, desde a data da solenidade religiosa."

O registro não é meramente probatório, constituindo ato essencial para a atribuição de efeitos civs e penais, pois sem ele ter-se-á, tão somente, um ato religioso, daí poder o casado, no religioso, contrair o casamento civil válido, sob os efeitos complacentes do direito, sem cometer o crime de bigamia que é previsto no Código Penal. 

O direito penal tutela o casamento definindo crimes contra ele, sendo o primeiro deles a bigamia(artigo 235 do Código Penal). Protege-se a instituição casamento, por via da qual se forma a família. Tem-se a conduta em tela:

Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.

§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.

Com a punição à bigamia, tutela-se a ordem jurídica matrimonial  constituída no casamento monogâmico, na sanção constituída pelo antigo artigo 183, VI, do Código Civil revogado.

Na lei anterior o crime tomava o nome de poligamia.

O crime do artigo 235 do Código Penal, como explicou Magalhães Noronha(Direito Penal, volume III, 10ª edição, pág. 303), é bilateral ou de encontro, exigindo a intervenção de duas pessoas embora uma não seja imputável ou não tenha impedimento para casar. Sujeito ativo é a pessoa casada que contrai novo casamento. Por sua vez, pratica o crime previsto no § 1º aquele que, solteiro,viúvo ou divorciado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essas circunstância.  Sujeito passivo é o Estado, sendo ainda ofendido o cônjuge do primeiro casamento, e, caso esteja de boa fé, aquele que contrai matrimônio com pessoa casada. Como crime de encontro é mister que dele participem duas pessoas embora uma delas possa estar de boa-fé, como acentuou Fabbrini Mirabete(Manual de Direito Penal, volume III, 22ª edição, pág. 4), quer porque não sabe que o outro contraente é casado, quer porque supõe por erro, que seu casamento anterior foi anulado ou que já está divorciado.

Bento de Faria(Código Penal brasileiro comentado, volume III,  1959, pág. 144) entendeu que incidem igualmente na sanção penal, como participes, as testemunhas que afirmam a inexistência do impedimento(casamento anterior), sabendo ou devendo saber de sua existência, situação que não se confunde com a previsão do artigo 342 do Código Penal.

Fabbrini Mirabete(obra citada, pág. 4) expõe: “Decidiu-se, aliás, que, sabendo a testemunha do referido impedimento, participa ela da formalização do contrato matrimonial, respondendo pelo crime de bigamia(RT 547/290, 566/290). Há, porém, entendimento diverso na jurisprudência. Afirma-se que, não havendo colaboração das testemunhas para a realização do tipo penal, em uma execução como a contida na descrição legal, não há falar em responsabilidade criminal pelo delito de bigamia. Nessa hipótese haveria colaboração nos atos preparatórios, sendo possível reconhecer um crime de falsidade ideológica(RT 352/61, 526/334)”. Como bem disse ainda Fabbrini Mirabete(obra citada, pág. 4) esse fundamento é improcedente, pois quem participa do ato preparatório responde pelo crime tentado ou consumado(artigos 13, 29 e 30).

A conduta típica prevista no artigo 235, caput, é de contrair matrimônio, já sendo o agente casado, quando ainda está vigente o primeiro casamento. Mas a morte do primeiro cônjuge, o divórcio e a anulação do casamento anterior não podem ser presumidos, pois devem ser comprovados pelo réu, especialmente quando se declarou solteiro por ocasião do segundo casamento, evidenciado uma consciência dolosa(RT 178/353, dentre outros).

O casamento religioso não serve de pressuposto nem configura o crime quando o agente já é casado civilmente. No entanto, se efetivado na forma do artigo 226, § 2º da Constituição, torna-se impedimento para outro matrimõnio(RT 463/331 – 2; RF 249/292 – 3). Lembre-se que o casamento religioso é equiparado ao casamento civil se atender aos mesmos requisitos de validade deste e for registrado no Ofício Competente no prazo de 90 dias(artigos 1.515 e 1.516, § 1º), e se ainda não cumpridas as formalidades legais, for registrado a requerimento do casal, a qualquer tempo, observada sempre a prévia habilitação(artigo 1.516, parágrafo segundo). Em síntese: quanto ao casamento religioso, que não produz efeitos civis, não será pressuposto do crime de bigamia. Entretanto, o efetuado dentro do preceituado na Constituição – em dispositivo autoexecutório – será impedimento para outro matrimônio. O casamento religioso(salvo o que produz efeitos civis) não serve de pressuposto para o crime.

O pressuposto do crime de bigamia é a vigência de um casamento civil anterior. Já se entendeu que a lei atende apenas à existência formal do casamento, ou seja, à sua vigência, não à sua validade(RT 601/319). Assim somente não haverá bigamia na hipótese de casamento civil juridicamente inexistente, quando não houver declaração perante autoridade competente.

Logo, como ensinou Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, volume VII, § 767, pág. 230), não  constitui  antes da inscrição, impedimento para a celebração de casamento civil, nem para a aquisição dos efeitos civis por parte de um segundo casamento religioso. 

Veja-se, no entanto, o Decreto n. 53.154/63, artigo 2º, § 1º, que considera, para efeito de qualificação de dependentes, o vínculo resultante de matrimõnio religioso, isto para efeitos previdenciários. 

Disse ainda Maria Helena Diniz(obra citada, pág. 117) que não há nenhuma substituição do direito canônico ao direito civil matrimonial, que permanece íntegro, tendo-se, tão-somente, um reconhecimento do matrimônio eclesiástico para produzir efeitos juridicos idênticos aos do casamento civil, sendo necessário que: a) o ato nupcial celebrado por ministro religioso seja válido de acordo com as normas canônicas; b) os nubentes possam constituir vínculo matrimonial civil conforme o ordenamento jurídico brasileiro; c) os pretendentes queiram, além de selar sua união com a benção divina, tornar-se marido e mulher de acordo com o valor atribuído a essas expressões pelo Código Civil; d) a vontade dos nubentes tenha sido manifestada no momento da celebração do casamento pelo ritual religioso obedeça as prescrições equivalentes da legislação civil no que concerne à habilitação, à capacidade matrimonial, às causas suspensivas da celebração de núpcias, aos impedimentos e sua oposição(artigos 1.525 a 1.532); à celebração(intervenção do celebrante local, presença dos nubentes e testemunhas ao ato nupcial); às provas do casamento e à inscrição do casamento no Registro Civil, como ainda observou Antônio Chaves(Casamento religioso, pág. 441 e 442). 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A liberdade de crença. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5208, 4 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60988. Acesso em: 29 mar. 2024.

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