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Do tratamento conferido a direitos autorais pela Constituição Federal

25/07/2018 às 15:40
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Defende-se o caráter de direito de propriedade intelectual dos direitos autorais, na forma prevista pela Constituição, e a possibilidade de se impor restrições a esse direito se confrontado com outro direito fundamental, com ênfase ao direito à cultura.

A Constituição dedica oito incisos do seu art. 5º a garantias do direito de propriedade, um dos quais dedica-se a garantir aos direitos autorais caráter de direito fundamental. Para fins de facilitar a análise a ser aqui desenvolvida, vejam-se abaixo as mencionadas disposições constitucionais[1]:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XII - é garantido o direito de propriedade;

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

 XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; (grifo nosso) 

Vê-se, nessa linha, que são três os direitos de autor garantidos expressamente pela constituição: utilização, publicação e reprodução. A Carta Política não fornece, entretanto, as definições de cada um dos termos acima, tarefa que fica a cargo do intérprete.

Buscando delimitações mais claras do texto constitucional, Pedro Mizukami discorre sobre a abrangência de cada um dos termos acima[2]:

a) Utilização parece significar, logo de início, algo diferente do direito de uso referente ao direito de propriedade. Afinal, uma vez publicado um livro, por exemplo, há uma boa parcela de usos que, sem controvérsia alguma, fogem do alcance do autor. Alguns usos de um livro referem-se ao seu suporte físico, e assim é que se pode queimar, rabiscar e usar como encosto de porta um livro, por exemplo. Outros, referem-se a seu conteúdo, como é o caso dos direitos de ler, estudar e memorizar o texto do livro; são estes usos que importam aqui. Havendo direitos de uso específicos do usuário de determinada obra intelectual, há que se considerar que o direito de utilização de uma obra intelectual atribuível ao autor é muito diferente do direito de uso que se insere no plano dos direitos reais. Não há como excluir uma pessoa que tenha comprado um disco de ouvi-lo. Por outro lado, não há como forçar – ao menos em razão de obrigação contratual – um autor a publicar um livro, ou seja, deixá-lo escoar para fora de sua esfera pessoal. Se um autor escreve um livro apenas para utilização própria, é evidente que tem o direito de utilizá-lo como bem entender. Disto decorre que apenas na hipótese em que um autor não publica um livro, há que se considerar a existência de um direito de uso próximo àquele referente à propriedade sobre bens materiais. Uma vez publicada uma obra, o direito adquire uma configuração diferenciada.

b) Publicação, parece indicar a disponibilização de uma determinada obra ao público, seja por intermédio de uma editora/gravadora, ou por qualquer outro meio possível. Em outras palavras, tornar público. A impressão de um poema, por exemplo, e sua distribuição nas ruas implica, nesse contexto, publicação. É o momento inicial em que uma obra deixa de ser de utilização efetivamente exclusiva do autor, e passa a ser entregue a uma potencial utilização pela sociedade;

c) Reprodução é um direito auto-explicativo, e o elemento essencial, por excelência, dos regimes de direitos autorais, desde sua etapa de formação, precedente ao Statute of Anne e à Revolução Francesa (ainda que não assumisse, na época, o formato de um direito, mas sim de um privilégio real ou de uma disposição regulamentar interna corporis). (grifos no original)

É notório, com base nas definições acima, que, no estudo do compartilhamento ilegal de conteúdo na internet abrange basicamente o direito de reprodução, vez que esse tipo de atividade, em tese, somente se pode dar após concretizada a etapa da publicação. O mesmo não se pode dizer, entretanto, quanto às licenças compulsórias, já que o seu espectro de atuação pode vir a alcançar inclusive o direito de publicação.

O que interessa, por ora, é notar a inexistência de menção expressa aos direitos autorais como direito de propriedade ou de qualquer limitação aparente a esses direitos. Com efeito, embora não haja posicionamento pacífico na doutrina quanto à conferência de status de propriedade aos direitos autorais, adere-se ao posicionamento de Pedro Mizukami, para quem a afirmação desse caráter se dá na forma como o texto constitucional é disposto (relevante aqui recordar os ensinamentos de Humberto Ávila, que, ao estabelecer de maneira esclarecedora a diferença entre norma e texto, menciona a possibilidade de existirem normas derivadas da interpretação conjunta de dispositivos diversos, mesmo que inexistente menção expressa a tal norma – cita, como exemplo, o princípio da segurança jurídica[3]), o que defende da seguinte forma[4]:

Cabe conferir se os textos de normas escolhidos permitem que se atribua aos direitos autorais o rótulo “propriedade intelectual”.

É possível uma interpretação nesse sentido: não apenas há referência expressa ao direito de marca como um direito de propriedade, como há proximidade muito grande entre os textos referentes a direitos autorais, patentes e marcas, dos textos referentes ao direito de propriedade. A ordem e local de colocação dos textos não podem ser tomados como únicos argumentos, mas são dados bastante significativos para a interpretação, ainda mais quando há referência expressa às marcas como propriedade. Há uma seqüência lógica entre os textos que não é desprezível, sendo razoável, portanto, interpretar os direitos autorais como uma espécie de propriedade, que se distancia, contudo, da propriedade tradicional do direito civil.

Adere-se, assim, à opinião doutrinária de que, quando a CF/88 menciona “propriedade”, refere-se não apenas ao direito real de propriedade, mas a uma série de outras “propriedades”, cada qual com seu conteúdo específico. (grifo nosso)

Gostar-se-ia de acrescentar, ainda, como elemento de coesão textual da Constituição, que o caput do art. 5º já limita os temas dos seus incisos à “inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]”. Em havendo essa limitação, a Carta Magna não deixa margem para se entender de maneira diversa da que caracteriza direitos de autor como uma faceta do direito de propriedade.

Em uma análise do tema sob uma perspectiva constitucional, a conclusão acima, que é a adotada por este estudo, mostra-se de extrema relevância, isso porque as disposições da CF/88 relativas ao direito de propriedade também serão, igualmente, aplicáveis aos direitos autorais; ou, falando de uma maneira mais direta, vinculam-se os direitos autorais à ideia de função social da propriedade, prevista no inciso XXIII do art. 5º.

O tema desse dever social que a propriedade deve cumprir, como restrição ao outrora absoluto direito sobre seu uso, gozo e disposição, é polêmico o suficiente para se escrever um outro trabalho inteiramente dedicado a debatê-lo. Por uma questão de coerência hermenêutica e metodológica com os pressupostos adotados, e de maneira a simplificar uma discussão que extrapolaria exacerbadamente os limites deste estudo, adotar-se-á o entendimento de que a função social, enquanto restrição ao direito de propriedade, deve cingir-se a limitá-lo somente quando confrontado com direitos que ocupem a mesma hierarquia dentro do ordenamento jurídico.

Em outras palavras, tendo em vista tratar-se o direito de propriedade de um direito fundamental, qualquer restrição imposta a ele somente será válida se for decorrente de outro direito fundamental.

Nessa linha, os ensinamentos de José Afonso da Silva[5] apontam para o reconhecimento do direito à cultura como um direito social, pela interpretação conjunta do art. 6º com o art. 215, ambos da CF/88. A inclusão do direito à cultura nessa categoria advém, então, do seu abarcamento pelo direito à educação, esse, sim, previsto expressamente no rol de direitos sociais do art. 6º.

Dito isso, atente-se para algumas das disposições da Constituição a respeito do direito à cultura:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. 

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II produção, promoção e difusão de bens culturais;

III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; 

IV democratização do acesso aos bens de cultura;

V valorização da diversidade étnica e regional. 

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: 

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

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Dos dispositivos acima, pode-se concluir que o Estado tem dever positivo de garantir o acesso, a difusão e a livre manifestação da cultura, o que deverá ser feito mediante a implantação do Plano Nacional de Cultura, o qual, por sua vez, coloca a difusão de bens culturais e a democratização do acesso a eles como fins almejados. Além disso, o texto é expresso ao dispor que criações científicas, artísticas e tecnológicas – basicamente todo conteúdo protegido por direitos autorais ou de patente – integram o patrimônio cultural nacional.

Fala-se em dever positivo em razão da própria natureza dos direitos sociais como imposições de prestação ao Estado. Sob esse aspecto, há sensível diferença entre os direitos individuais e os direitos sociais. José Afonso da Silva[6], entretanto, faz relevante apontamento a respeito do tema, ressaltando a interligação entre essas duas espécies de direitos fundamentais, a ver:

Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.

O que é acentuado acima, a nosso sentir, é inclusive decorrência lógica da unicidade do ordenamento jurídico e de uma interpretação integrada do texto constitucional: em primeiro lugar, busca-se a coesão entre as garantias trazidas, sob pena de se direitos contraditórios e autoexcludentes, o que comprometeria a sua eficácia e a sua legitimidade; e, em segundo plano, tem-se que a finalidade dos direitos sociais, embora dependente, em tese, de uma prestação positiva, pode ser atingida mediante uma abstenção. Em especial, defende-se esse segundo ponto no que diz respeito à abstenção quanto à repressão do compartilhamento de informações, buscando atingir os fins de direitos sociais – à cultura, à educação etc.

Veja-se, ainda, que as garantias constitucionais relativas à cultura não são as únicas limitações aos direitos autorais previstos pela nossa Carta Política. Apenas a título de exemplo, Pedro Mizukami[7] aponta, também, como limitadores constitucionalmente previstos de direitos autorais, além do direito à cultura, o direito à educação, às liberdades de consciência e de crença, de manifestação do pensamento, de expressão e de informação, e aos princípios e objetivos estatais do desenvolvimento nacional e da justiça social, do fomento à preservação, produção, acesso e difusão de bens culturais, da livre iniciativa, livre concorrência e defesa do consumidor e da desconcentração dos meios de produção e difusão de informação.

Com isso, conclui-se, portanto, que os direitos autorais, sob uma perspectiva constitucional, enquanto direitos de propriedade intelectual, encontram limitações na própria Constituição Federal, as quais, por sua vez, podem se concretizar tanto mediante simples abstenção do Estado quanto por meio de sua intervenção ativa, positiva.


Notas

[1] BRASIL, Constituição Federal.

[2] MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Função social da propriedade intelectual: compartilhamento de arquivos e direitos autorais na CF/88. pp. 418 e 419.

[3] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios.

[4] MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Função social da propriedade intelectual: compartilhamento de arquivos e direitos autorais na CF/88.

[5] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. pp. 316 e 317.

[6] Ob. Cit., pp 288 e 289.

[7] MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Função social da propriedade intelectual: compartilhamento de arquivos e direitos autorais na CF/88. pp. 430 a 444.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Bernardo. Do tratamento conferido a direitos autorais pela Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5502, 25 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62677. Acesso em: 28 mar. 2024.

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