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A abstrativização do controle de constitucionalidade difuso no Supremo Tribunal Federal e a mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal de 1988

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Identifica-se com precisão o momento histórico e os motivos pelos quais a eficácia geral e o efeito vinculante passam a decorrer do puro e simples julgamento de uma questão pelo Supremo, independentemente de o controle ocorrer na modalidade difusa ou concentrada.

Resumo: Analisam-se as origens, o alcance e o significado da decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto das ADIs 3406 e 3470, que operaram significativa transformação na moldura do controle de constitucionalidade no Brasil.

Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Controle difuso. Abstrativização do controle difuso.

Sumário: Introdução. 1. O modelo original de controle de constitucionalidade previsto na Constituição Federal de 1988. 1.1. Controle difuso. 1.2. Controle concentrado. 1.3 Distinção entre as modalidades de controle constitucionalidade e a atribuição do Senado Federal no controle difuso (art. 52, X, CF/88). 2. O requisito da repercussão geral no recurso extraordinário e o julgamento unificado de recursos especiais e extraordinários repetitivos. 3. A consolidação do sistema de precedentes com o Código de Processo Civil de 2015. 4 A decisão do STF no julgamento conjunto da ADI 3406 e ADI 3470, em 29/11/2017: mutação constitucional e abstrativização do controle difuso. 4.1 Do teor da decisão. 4.2 Importância do caso. 4.3 Acerto do entendimento. Conclusão.


Introdução

No ano de 2008, em workshop realizado no âmbito de congresso jurídico ocorrido na cidade do Recife/PE, do qual tive a oportunidade de participar, recebi em primeira mão a notícia, da parte do então presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, de que se discutia no âmbito da Suprema Corte, ainda de forma embrionária, a mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88. Em decisão recente, datada de 29/11/2017, no julgamento conjunto das ADIs 3406 e 3470, ambas oriundas do Estado do Rio de Janeiro, o Plenário do STF, em julgado da Relatoria da Ministra Rosa Weber, confirmou o entendimento então propugnado, para afastar a exigência de suspensão da execução, pelo Senado, da lei declarada inconstitucional incidentalmente pelo Supremo em controle difuso de constitucionalidade. Operou-se verdadeira fusão entre os sistemas de controle de constitucionalidade no Brasil, com a superação da dicotomia entre o controle concreto e o abstrato no âmbito do STF, evidenciando a força do precedente vinculante na nova sistemática do processo judicial brasileiro, tanto na esfera cível quanto na criminal.

As razões da referida decisão passam pela força vinculante dos precedentes judiciais e as transformações operadas no processo civil brasileiro desde 2004, com a instituição do requisito da repercussão geral em recurso extraordinário e a consequente sistemática de julgamento unificado de recursos extraordinários repetitivos, regulamentada pela Lei n.º 11.418/2006, que incluiu o art. 543-B, ao CPC/73. Com o advento do Novo Código de Processo Civil (CPC/2015), consolidou-se o sistema de precedentes obrigatórios, forçando o STF a uma releitura do seu papel no controle difuso de constitucionalidade.

O controle de constitucionalidade, consistente na aferição da compatibilidade de leis e atos normativos emanados do Poder Público com as prescrições de ordem formal e material da Constituição escrita, é fenômeno próprio do constitucionalismo moderno e contemporâneo, que tem experimentado aumento significativo de importância desde a segunda metade do século passado. O primado da supremacia da Constituição, plasmada nos preceitos internacionais de proteção e garantia dos direitos humanos, que impõe o dever de fiscalização dos atos do Poder Público à luz das normas impositivas de tutela dos direitos fundamentais, aliado a uma substancial mudança no perfil do cenário litigioso (ações coletivas, demandas de massa), bem como, ainda, as rápidas transformações ocorridas nos cenários político, econômico, cultural e tecnológico, nem sempre acompanhadas pelo Legislativo na velocidade necessária, ocasionaram verdadeiro protagonismo do Judiciário na solução de questões inerentes a princípios e valores constitucionais, realçando a importância da jurisdição constitucional e impulsionando o Estado-juiz a uma reestruturação da forma de trabalho e das atribuições de seus membros.

Nesse contexto, ganharam vulto, nas últimas décadas, estratégias de racionalização da jurisdição dos tribunais superiores e de vinculação a precedentes judiciais, como forma de dinamizar a atuação das cortes e de adequar o Judiciário ao modelo da litigiosidade de massa, o que, ademais, propiciou incremento na segurança jurídica e na efetivação do princípio da isonomia. Assim é que, no Brasil, foram instituídos, nesse período, a súmula vinculante, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), o julgamento unificado de recursos especiais e extraordinários repetitivos, a súmula impeditiva de recurso de apelação, e, com o novo Código de Processo Civil, os precedentes vinculantes, tudo sem prejuízo da eficácia geral e do efeito vinculante das decisões em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC).

O fenômeno mais recente desse processo, no Brasil, mostrou ser a transformação operada no sistema de controle de constitucionalidade consistente na abstrativização do controle difuso, por mutação constitucional, fruto de decisão recente do STF, datada de 29/11/2017, objeto da presente consideração. Neste estudo, busca-se examinar as origens, o alcance e o significado dessa modificação, para o que se parte de uma breve consideração em torno do controle de constitucionalidade conforme definido originalmente na Constituição de 1988.


1. O modelo original de controle de constitucionalidade previsto na Constituição Federal de 1988

No Brasil, o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos emanados do Poder Público, de natureza repressiva e de origem jurisdicional, inspirou-se tanto no modelo austríaco (concentrado, em abstrato, em caráter principal) quanto no norte-americano (difuso, em concreto, em caráter incidental), construindo-se, ao final, um modelo misto, a exemplo do que ocorre com o sistema português. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2007, p. 957) Da forma como foi instituído pela CF/88, o controle de constitucionalidade no Brasil ostentava, pois, uma dualidade procedimental, na medida em que as diferentes estratégias de controle se revelavam como modalidades distintas, cujo único ponto de contato era a vinculação da magistratura ordinária às decisões proferidas em sede de controle concentrado (eficácia erga omnes e efeito vinculante).

A fiscalização da constitucionalidade poderia ocorrer, portanto, de duas formas independentes: a) o controle concentrado, efetuado pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas, a serem movidas exclusivamente pelos legitimados por lei para a instauração da instância; b) o controle difuso, efetuado incidentalmente por todos os juízes e tribunais, no exercício normal da atividade jurisdicional, em toda e qualquer ação judicial submetida à apreciação do Poder Judiciário.

1.1 Controle difuso

Primeira forma de controle de constitucionalidade a surgir no Brasil, previsto na Constituição da República, de 1891, o controle difuso inspirou-se na experiência dos Estados Unidos da América, ante a influência exercida pelo direito norte-americano na pessoa de Rui Barbosa, jurista encarregado da formulação do projeto da primeira constituição brasileira da era republicana. Trata-se da fiscalização da constitucionalidade das leis e atos normativos estatais como questão incidental à solução de casos concretos submetidos à apreciação do Poder Judiciário, razão pela qual é também chamado de cotrole “concreto”. A questão constitucional é dita “incidental” quando, no contexto de um conflito específico judicializado, cujo mérito é um bem jurídico diverso, cogita-se do afastamento da aplicação da lei ante o argumento da incompatibilidade formal ou material do ato legislativo em relação à Constituição. A inconstitucionalidade não se revela como questão principal, mas meramente incidental. É denominado de “difuso” porquanto realizado por qualquer juiz ou tribunal do País, não constituindo poder concentrado em um único órgão estatal, mas difundido nos diversos órgãos do Judiciário nacional, incluindo a suprema corte nacional, que, no caso brasileiro, é o Supremo Tribunal Federal.

O modelo norte-americano do controle difuso tem por característica primordial o fato de que a decisão acerca da inconstitucionalidade da lei ou ato normativo vale somente para o caso concreto no qual foi a questão apreciada de forma incidental. Significa dizer que, apesar da declaração de inconstitucionalidade da lei por um órgão do Poder Judiciário nacional, o qual pode afastar, no todo ou em parte, sua aplicação no caso concreto, ou, ainda, conferir interpretação conforme a Constituição ou proceder à declaração de nulidade parcial sem redução de texto, a lei continua válida e aplicável aos demais casos não abrangidos pelo processo.

Ainda que, por força da sucessiva interposição de recursos, o caso venha a ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, no formato tradicional do modelo concreto, a decisão faz coisa julgada somente inter partes, não alcançando sujeitos não integrantes da demanda. Da forma como projetado pelo constituinte originário, no controle concreto de constitucionalidade, a decisão somente alcança as partes do processo, tanto assim que o art. 52, X, da CF/88, assegura ao Senado Federal a possibilidade de “suspender a execução” da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado – evidentemente, como forma de estender os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal, produzindo o resultado prático equivalente ao de atribuição de eficácia erga omnes a uma declaração de inconstitucionalidade cujo efeito era exclusivamente inter partes.

1.2 Controle concentrado

Incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1946, que criou a figura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), o controle concentrado, por sua vez, consiste na fiscalização da constitucionalidade de leis ou atos normativos em tese, por meio de ação direta movida perante o Supremo Tribunal Federal, o qual aprecia a constitucionalidade da lei em abstrato, sem referência a qualquer caso concreto, produzindo decisão com eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário nacional. (BRASIL, 1999, p. 1) Diferentemente do controle difuso, no qual a decisão vincula apenas as partes do processo, no controle concentrado, a decisão alcança, com igual força, também, quem não participou do processo, dado que a lei é declarada inconstitucional em abstrato, ante o mero cotejo do texto legal com a norma constitucional, sem que a decisão se refira a um conflito concreto de interesses. O objeto da ação é a questão constitucional em si, de modo que compreende o próprio mérito do processo.

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A ação voltada ao controle concentrado da constitucionalidade somente pode ser movida pelos legitimados previstos no art. 103, da CF/88. No curso do processo, a defesa do ato impugnado é efetuada pelo Advogado-Geral da União. Admite-se a participação do amicus curiae, consubstanciado na pessoa de sujeitos ou entidades com autoridade no assunto e representatividade adequada, que podem se manifestar a favor ou contra a declaração de inconstitucionalidade. Tal como ocorre no controle difuso, pode a declaração abranger o todo ou parte do ato normativo, sendo técnicas admissíveis a imposição de interpretação conforme a Constituição e a pronúncia de nulidade parcial sem redução de texto. (BRASIL, 1999, p. 1)

No modelo brasileiro, são três as ações diretas que materializam o controle concentrado de constitucionalidade, todas de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal: a) ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade), cujo pedido é a declaração de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos federais ou estaduais, incluindo a inconstitucionalidade por omissão; b) ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade), voltada para a declaração de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, nos casos em que haja comprovação de divergência judicial relevante; e c) ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que, segundo a doutrina, pode ter por objeto lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, direito pré-constitucional, atos do poder público, atos privados e atos jurisdicionais. (BARROSO, 2012, p. 329 -338) ADI e ADC são regulamentados pela Lei 9.868/99, ao passo que a ADPF é objeto da Lei 9.882/99.

1.3 Distinção entre as modalidades de controle constitucionalidade e a atribuição do Senado Federal no controle difuso (art. 52, X, CF/88)

Como se vê, as duas modalidades de controle de constitucionalidade no Brasil foram projetadas, na visão do constituinte originário, de modo autônomo e independente. Somente a decisão em sede de controle concentrado ostentava eficácia geral, ao passo que o controle difuso, reservado à declaração incidental de inconstitucionalidade, operava efeitos apenas inter partes, vinculando unicamente os sujeitos participantes do processo, em cujo bojo havia sido declarada incidentalmente a inconstitucionalidade, ainda que desse julgamento viesse a participar, pela via recursal, o Supremo Tribunal Federal, que detém competência para o controle concentrado de inconstitucionalidade.

Nesse último caso, nos termos do art. 52, X, da Constituição Federal, caberia ao Senado Federal, por decisão política e discricionária, suspender a execução da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, o que se convencionou realizar mediante o ato normativo primário denominado “Resolução”. Consoante se extrai do endereço eletrônico oficial do Senado Federal, em texto divulgado pela assessoria de publicidade, datado de 29/06/1998:

Entre as atribuições do Senado Federal mantidas pela Constituição de 1988, destaca-se a competência privativa de suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF). Para que isso ocorra, é necessária comunicação do presidente do STF, representação do procurador-geral da República e projeto de resolução de iniciativa da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Tanto a comunicação como a representação e o projeto deverão ser instruídos com o texto da lei cuja execução deve ser suspensa, o acórdão do Supremo, o parecer do procurador-geral da República e a versão do registro taquigráfico do julgamento. Depois de lida em plenário, a comunicação ou representação é encaminhada à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), que formulará projeto de resolução suspendendo a execução da lei, no todo ou em parte. Apenas as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre ações de controle indireto são remetidas para apreciação do Senado. Essas ações são aquelas em que uma das partes alega que a lei que está sendo aplicada é inconstitucional e a matéria vai tramitando de instância em instância até chegar ao Supremo. Nos casos de ações diretas, a decisão do Supremo passa a valer para todos os casos. Se o STF decidiu pela inconstitucionalidade, a lei passa automaticamente a ser considerada inconstitucional.Mas o Senado não está obrigado a suspender uma lei considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Quando isso ocorre, e o plenário do Senado assume uma posição contrária à tomada pelo Supremo, a decisão do STF permanece válida apenas para as causas julgadas em última instância pelo próprio Supremo. Apesar de a última palavra ser do Senado nos casos de controle indireto, as decisões do Supremo não são invalidadas, apenas não se tornam regra e a lei não é suspensa. (BRASIL, 2018, p. 1)

Tal entendimento era compartilhado pela doutrina especializada e vigorou na prática jurisprudencial e legislativa pelos primeiros 30 (trinta) anos de vigência da Constituição Federal de 1988. Apenas as decisões do STF em sede de controle concentrado ostentavam eficácia geral; no âmbito do controle difuso, ainda que decidida a questão em única ou última instância pelo Supremo Tribunal Federal, ostentava a decisão eficácia somente em relação aos sujeitos do processo, salvo suspensão da execução por Resolução do Senado Federal, após proposta da Comissão de Constituição e Justiça, na forma do regimento interno.

As transformações operadas no processo judicial brasileiro, contudo, que ocasionaram o fortalecimento da jurisprudência como fonte do Direito e culminaram, com o novo Código de Processo Civil, na criação de precedentes vinculantes no direito brasileiro (cuja força obrigatória, segundo entendimento das cortes superiores, transcende os limites do processo civil, alcançando, inclusive, ações de natureza penal), resultariam em uma mudança no quadro de distribuição de competências, com a racionalização da jurisdição das cortes superiores e, no âmbito do STF, a superação da dualidade entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade. Ante a perspectiva de que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça devem atuar, em nível recursal, primordialmente, como tribunais de teses, cuja manifestação transcende os limites da causa, operando, pela via do precedente, a vinculação da magistratura ordinária à ratio decidendi, iniciou-se um processo de superação do regramento segundo o qual as decisões do STF em controle difuso de constitucionalidade produziriam efeitos apenas inter partes.

A mudança, que aqui se optou por denominar de “abstrativização” do controle difuso de constitucionalidade, iniciou-se com a criação do requisito específico da repercussão geral para os recursos extraordinários e a sistemática do julgamento unificado de recursos especiais e extraordinários repetitivos, e acabou por ser formalmente reconhecida em decisão recente do Supremo Tribunal Federal, datada de 29/11/2017.


2. O requisito da repercussão geral no recurso extraordinário e o julgamento unificado de recursos especiais e extraordinários repetitivos

A Emenda Constitucional n.º 45, de 30 de dezembro de 2004, introduziu um § 3º ao art. 102, da CF/88, o qual restringiu o cabimento do recurso extraordinário para as hipóteses em que fosse demonstrada a “repercussão geral” das questões discutidas no caso concreto. (BRASIL, 1988, p. 1) A norma constitucional relegou à legislação ordinária a definição do que viria a ser o conteúdo do novo requisito de admissibilidade, tendo a matéria sido regulamentada pela Lei n.º 11.418, de 19 de dezembro de 2006, que incluiu o art. 543-A ao CPC/73, segundo o qual, “Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.” (BRASIL, 1973, p. 1) O requisito encontra-se hoje previsto no art. 1.035, § 1º, do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015).

O instituto procedeu a verdadeiro corte na competência do Supremo Tribunal Federal, que deixou de ser instância regular de julgamento para os casos que comportem questão constitucional para, tão somente, admitir controvérsias cujo interesse discutido ultrapasse os limites subjetivos da causa. Passou a ser ônus do recorrente demonstrar, em preliminar do recurso, e para a apreciação exclusiva do STF, a existência da repercussão geral. O encargo se manifesta inclusive sob o aspecto formal: nos termos do art. 327, caput, do Regimento Interno do STF, inexistindo preliminar explícita nas razões do extraordinário sustentando a ocorrência da repercussão geral, o recurso não será conhecido. (BRASIL, 2013, p. 148)

A repercussão geral foi uma estratégia de objetivação da jurisdição superior (WOLKART, 2013, p. 35), fundada na necessidade de desafogar o Supremo Tribunal Federal, o qual, pela abrangência nacional de sua competência territorial, encontrava-se, à época da edição da EC n.º 45/2004, sobrecarregado com um número excessivo de recursos oriundos de todas as regiões do País. A irracionalidade do quadro se mostrava ainda mais evidente quando se considerasse que os recursos que obstruíam a pauta do STF tinham por objeto, no mais das vezes, questões jurídicas já resolvidas em pronunciamentos anteriores da corte, nas denominadas demandas de massa ou repetitivas, a exemplo das questões tributárias, previdenciárias, relativas ao direito do consumidor, a procedimentos administrativos e à competência legislativa de estados e municípios.

Como resultado de diversas transformações ocorridas nos cenários social e econômico, nos últimos anos, ocorreu verdadeira crise material do Judiciário brasileiro, o qual viu aumentar sobremaneira os índices de litigiosidade da população, forçando tribunais e juízos de primeira instância a elevarem a produção e a produtividade, tanto pela ampliação do quadro de pessoal quanto pela adoção de técnicas mais aprimoradas de gestão. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o reflexo dessa elevação drástica na carga de trabalho foi a verdadeira supressão da atividade primordial do pretório excelso, o qual praticamente deixou de exercer o papel de corte constitucional para pronunciar, repetidas vezes, a mesma ratio decidendi, ante a resistência de partes e advogados em deixar de provocar a última instância na forma do recurso extraordinário, apesar de cientes do provável insucesso da pretensão, à luz da jurisprudência dominante da corte.

Tornou-se necessário, pois, limitar o acesso das partes ao Supremo Tribunal Federal, de sorte a permitir um exercício racionalizado da jurisdição da Corte Maior em face dos novos contornos assumidos pelos litígios sociais. O desiderato somente poderia ser alcançado pela instituição de um sistema de precedentes, nos quais as decisões prolatadas pelo Supremo em sede de demandas comprovadamente repetitivas fossem aplicáveis aos demais feitos que tivessem por objeto questão idêntica de direito. Uma solução nesses moldes, para além de promover evidente economia processual, com reflexos na celeridade da prestação jurisdicional, proporcionaria maior previsibilidade e unidade ao direito.

Assim é que, paralelamente à instituição do novo requisito de admissibilidade que foi a repercussão geral, criou-se um regime unificado de julgamento de recursos extraordinários repetitivos e um sistema que favorecia a aplicação do precedente pelas cortes locais, ante a possibilidade de reexame do acórdão prolatado pelos tribunais de segunda instância, de modo a adequá-lo à decisão proferida pelo Supremo. Na nova sistemática, o tribunal local ficou com a incumbência de selecionar um ou mais recursos representativos da questão jurídica e os remeter ao STF, sobrestando os demais na origem até o julgamento definitivo pelo Supremo. Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados consideram-se inadmitidos por expressa disposição legal, em interessante eficácia extraprocessual da decisão relativa à repercussão geral. Caso entenda o STF, contudo, pela satisfação do requisito de admissibilidade, o resultado do juízo de mérito seria publicado para apreciação dos tribunais de segunda instância, os quais, retomando o andamento dos feitos sobrestados, poderiam “declarar prejudicados” os recursos extraordinários (caso de a decisão do STF ser consentânea com o acórdão recorrido) ou “retratar-se” (hipótese de o decidido no julgamento do RE contrariar a decisão do tribunal local), já que essa última situação, ante a vinculação horizontal do precedente sobre a repercussão geral, apontaria para o necessário provimento do extraordinário caso viessem os autos a subir para a apreciação do Supremo. (BRASIL, 1973, p. 1)

A mesma Lei n.º 11.418/2006, que definiu no plano infraconstitucional o significado da repercussão geral, incluiu o art. 543-B, ao CPC/73, estatuindo que, havendo “multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia”, a análise da repercussão geral será efetuada por amostragem, a exemplo do que já ocorria com os recursos do Juizado Especial Federal. Ocorre que não se contentou o legislador com isso, tendo a lei avançado para assegurar a ampliação da eficácia da tese firmada no julgamento do mérito dos recursos representativos da controvérsia para os processos sobrestados, pois, nos termos do art. 3º, do recém criado art. 543-B, do CPC/73, “Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.” (BRASIL, 1973, p. 1)

Isto é: não apenas a existência da repercussão geral para uma determinada questão jurídica seria decidida por amostragem como também o próprio mérito dos recursos extraordinários repetitivos seria julgado de forma unificada e com base nos feitos representativos da controvérsia. A imbricação entre o julgamento unificado do mérito do recurso e o exame por amostragem do requisito da repercussão geral foi tamanha que, tanto na praxe do STF quanto na própria legislação, houve certa confusão terminológica, de modo que a expressão “sistemática da repercussão geral” passou a significar o regime de julgamento por amostragem de recursos repetitivos, com sobrestamento de processos e formação de precedente de alta força persuasiva – ainda que, a rigor, tal opção se mostre tecnicamente incorreta, vez que o requisito de admissibilidade da repercussão geral não se confunde com a metodologia de apreciação por amostragem da existência desse requisito e, muito menos, com o julgamento unificado do mérito dos recursos extraordinários repetitivos que foram técnicas instituídas contemporaneamente à definição infraconstitucional do significado do novo requisito de admissibilidade.

Assim, desde 2006 que o julgamento pelo pleno do STF somente ocorre, diretamente, para os feitos representativos da controvérsia, sendo que os demais processos que versem sobre questão idêntica permanecem sobrestados na origem, aguardando, no caso de concordância do acórdão local com a orientação proclamada pelo Supremo, a aplicação da decisão do STF pelo tribunal de segunda instância, o qual declarará prejudicado o recurso e, em caso de divergência entre o entendimento do tribunal local e o precedente de mérito da Corte Maior, uma forma especial de efeito regressivo do RE, consistente na possibilidade de retratação do acórdão já publicado pelo membros do tribunal a quo. (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 340) Sob a égide desse regime, houve redução significativa no número de processos submetidos ao crivo do STF e maior uniformidade do direito, principais objetivos da reforma.

No âmbito do STJ, dado o sucesso da sistemática de julgamento por amostragem do recurso extraordinário, adotou-se método semelhante para o julgamento de recursos especiais repetitivos. A inovação veio um ano e meio depois da edição da norma infraconstitucional que regulamentou a repercussão geral, na forma da Lei n.º 11.672, de 8 de maio de 2008, que acrescentou o art. 543-C, ao CPC/73, criando procedimento praticamente idêntico ao do julgamento dos recursos extraordinários repetitivos pelo STF. 1

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. A abstrativização do controle de constitucionalidade difuso no Supremo Tribunal Federal e a mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5410, 24 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65652. Acesso em: 28 mar. 2024.

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