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Estatuto do Desarmamento:

uma afronta à principiologia jurídica

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Relutei muito antes de decidir-me a escrever a respeito do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003). Considero-o uma lei de envergadura menor, que não convém seja tratada no campo da dogmática penal. Optei, todavia, por enfrentar tema no tocante a certos aspectos que dizem respeito aos princípios do direito em geral e, em especial, do direito penal. Antes dessa resolução, porém, lembrei-me, mas debalde, do exemplo heróico de SEBASTIAN SOLER que, por anos a fio, preferiu não atualizar sua magnífica obra, Derecho Penal Argentino, permitindo apenas a sua reimpressão, a fim de evitar que tivesse o amargo desgosto de comentar as leis da ditadura peronista que então imperava no país. A lei em epígrafe não provém da ditadura, mas, pelo que nela se contém, seria sensato admitir que tivesse provindo.

2.O estatuto, em última análise, pretende banir, do território nacional, toda posse e porte de armas de fogo por pessoas comuns. Neste momento, compraz-se em dificultar sobremaneira, a ponto de quase tornar impossível, essa posse e esse porte. Custa a crer nesse desiderato da lei, pelo menos quanto à posse, uma vez que, a meu ver, tal propósito em muito se aproxima da imprevisão e da inconseqüência. A lei só poderia privar os homens de bem da posse de armas na ocorrência de uma de duas alternativas:

a) prévio e total desarmamento dos maus, quando, então, tivessem perdido sua capacidade de atacar e lesar bens e interesses jurídicos à mão-armada;

b) garantia absoluta, em todo tempo e em todo espaço, de completa segurança a ser prestada pelo Estado a seus jurisdicionados (como se isso fosse possível).

3.Ao revés e persistindo a vigência de alguns dispositivos desse malsinado estatuto - advirta-se, o Estado passará a responsabilizar-se, de forma incondicional, pelos danos causados aos desarmados cidadãos. Se antes, a responsabilidade do Estado era fundada nos postulados da teoria objetiva, amanhã, após o desarmamento, ninguém se arriscará a negar a aplicabilidade da teoria do risco integral.

4.A arma não é má em si mesma. Mau é quem a usa para cometer maldades. Costuma-se dizer, com alguma propriedade, que a história da humanidade corresponde à história das armas, isso desde os tempos da pedra lascada até os dias de hoje, com o advento da eletrônica, da informática e da robótica. O surgimento das armas, principalmente após a invenção da pólvora, veio, em verdade, ao encontro do princípio da igualdade dos homens, ao evitar que os fortes pudessem continuar a subjugar os fracos. Acabar com as armas – pode-se dizer, redundará no restabelecimento da lei das selvas, onde os fracos e bons serão, na certa, vitimados pelos fortes e maus. Além do mais, diga-se de passagem, os maus, além de fortes, continuarão cada vez mais armados, por não se intimidarem facilmente frente à coerção das leis.

5.Toda e qualquer lei, mormente a que se destine a regrar a conduta humana, há de apresentar-se à obediência de todos munida de certos atributos, que são verdadeiros princípios, para que possa ter a real e irrestrita aplicabilidade. Esses atributos - conquanto sua enumeração e designação não sejam pacíficas, numa ordem lógica, são os seguintes: vigência, legitimidade, validade, eficácia e efetividade. Ocupo-me, a seguir, de cada um desses atributos para conotando-os com o Estatuto do Desarmamento.

5.1.Vigência é um atributo presente no estatuto, embora alguns de seus dispositivos venham sofrendo repetidas dilações que demonstram a falta de previsão temporal do apressado legislador. Em geral, as leis destinam-se a vigorar por tempo indeterminado até que venham a ser revogadas, expressa ou tacitamente. Regulam, em regra, os fatos praticados durante sua vigência, exceto quando se tratar de lei posterior mais benigna, caso em que esta é possui efeito retroativo. Por outro lado, a lei mais benigna, bem como a excepcional ou temporária, são ultra-ativas ao continuarem a reger o fato praticado durante sua vigência, mesmo depois de sua revogação. Note-se, porém, que, em caso de concorrência, a ultra-atividade da lei excepcional ou temporária terá preferência sobre a retroatividade da lei mais benigna.

5.2.Legitimidade é um atributo que o estatuto, a um só tempo, possui e não possui. A lei do desarmamento é dotado de legitimidade extrínseca, uma vez que se origina no Congresso Nacional, órgão dotado de incontestável representação da vontade popular. Todavia, falta a essa lei a legitimidade intrínseca, em razão de apresentar-se como despótica, desarrazoada e injusta. Confesso que, em matéria de Filosofia de Direito, considero-me um eclético, ao haurir verdades oriundas das mais diversas correntes doutrinárias, haja vista as pregações do Intuicionismo, do Normativismo, do Realismo, do Tridimensionalismo e, até, do Jusnaturalismo. E é o Jusnaturalismo que vem a afirmar a ilegitimidade intrínseca do estatuto, ou mais exatamente, é aquela corrente jusnaturalista que propõe que as leis tenham respeito pela natureza humana, ao exigir-lhe o reconhecimento de certos direitos inalienáveis e antecedentes ao aparecimento das legislações, como o direito à vida, à procriação, à integridade físio-físico-psíquica, à propriedade, ao domicílio, etc. Não é senão por isso que alguém, talvez KAUFMANN, já tenha dito que o indivíduo possui direitos que são anteriores à criação do Estado que, por isso, deve respeitá-los. Quando o homem sacrificou parte da sua liberdade para possibilitar a vida em sociedade, ele, em hipótese alguma, renunciou ao seu direito à vida nem aos meios de promover a auto-defesa contra agressões injustas. Desarmá-lo, impedindo que se possa proteger, sem que exista eficiente e pronta proteção estatal, é romper o pacto social e acenar em prol do retorno à barbárie. É, neste tópico, que também deve ser levantada a questão da justiça das leis. Uma lei injusta deve ser obedecida pelos cidadãos? SÓCRATES ensinou que sim, na ocasião em que, condenado a beber cicuta por suposta corrupção da juventude, recusou-se a escapar do mandamento da injusta lei, argumentando que a obediência dos bons a uma lei injusta levaria os maus a se submeterem aos mandamentos das leis justas. Ouso, humildemente, discordar desse posicionamento. Penso que a lei injusta deve ser combatida e contestada com todo o empenho, até para que possa ser extirpada de qualquer ordem jurídica. Penso, mais, que, contra a lei injusta, pode-se chegar até mesmo à desobediência civil. Sem a arma de fogo - diga-se, sem o mínimo intento de pilhéria, o homem poderá defender-se, mas usando, como meio, instrumentos como clava, borduna, alfange, alabarda, arco e flecha, zarabatana, arpão, arbalete e balestra (besta)!

5.3.Validade, segundo sustento, é a conformidade de determinada lei com a Constituição Federal. Sendo assim, alguns dispositivos do Estatuto do Desarmamento, juntamente com normas a ele complementares, são inválidos, por inconstitucionalidade, ao infringirem o princípio da isonomia (art. 5º, caput da CF), o princípio da indenizabilidade das desapropriações (art. 5º, incs. XXII, XXIV e LIV da CF) e o princípio da irretroatividade da lei penal (art. 5º, inc. XI da CF).

5.3.1. Começo por analisar o último caso de invalidade acima indicado.

O Estatuto do Desarmamento revogou expressamente a lei anterior que que as leis tenham respeito pela natureza humana, ao exigir-lhe o reconhecimento de certos direitos pr tratava do assunto, de nº 9.437/97, que concedeu anistia aos que possuíam armas de modo ilegal, permitindo-lhes o registro e a posse delas, incluindo a não imposição de qualquer sanção penal que poderia decorrer da situação anterior de ilegalidade. O estatuto, por sua vez, veio a revogar, assim, uma lei de anistia dotada de efeitos penais, desconhecendo registros efetivados, ao exigir novo registro ou recadastramento para manter a posse das armas, sob pena de imposição de duras sanções penais. Ora, uma lei, na parte em que concede anistia, não é revogável, pelo menos num Estado Democrático de Direito. Ainda mais, ao passar a exigir sucessivos registros, menos para controlar a posse de armas do que para desestimular a manutenção da sua posse em face da exorbitância do valor da taxa a ser paga. Ainda mais porque o registro exigido possui apenas efeitos declaratórios e não constitutivos de direito. Qualquer dia desses, o Estado, em sua gana de cometer arbitrariedades e de arrecadar tributos, determinará aos cidadãos a sucessiva renovação de registros de nascimento, casamento a até de óbito! É preciso reagir contra isso, pelo menos após o estímulo que se pode obter da leitura do precioso livro de VON JHERING, intitulado A Luta pelo Direito.

5.3.2.Outro caso de invalidade é o que decorre da violação do princípio da indenizabilidade das desapropriações ou, em outras palavras, da violação do princípio que assegura o direito de propriedade, do que proíbe o confisco e do que veda a privação dos bens de alguém sem o devido processo legal. A Constituição Federal demonstra tanto desprezo pelo confisco que, em seu art. 150, inc. IV, veio a proibir a utilização de tributo que possua o mesmo efeito dele. Admite, contudo, o confisco ou expropriação que tenha por fonte o próprio texto constitucional, como ocorre nas situações previstas no art. 243 e seu parágrafo único. O Estatuto do Desarmamento, nos arts. 3l e 32, prevê a entrega voluntária de armas possuídas, mediante indenização nos termos do seu regulamento. A entrega, na verdade, será voluntária apenas na aparência, já que a alternativa seria registrar a arma, mediante o pagamento de avultada taxa e sob requisitos e condições praticamente invencíveis, à semelhança das doze tarefas de Hércules. O confisco, entrementes, até a presente fase da análise da peça legislativa, ainda não se verificou uma vez ter sido prevista a indenizabilidade da entrega da arma. Entretanto, o regulamento do estatuto (Dec.nº 5.123/04), silenciou-se sobre os termos dessa indenização, preferindo cometer a referida atribuição ao Ministério da Justiça. O Ministro da Justiça, titular que é daquele ministério, igualmente, não se manifestou sobre a indenização. Finalmente, coube ao Diretor-Geral da Polícia Federal, por meio da Portaria nº 364/04, desincumbir-se da tarefa, mas tão irrefletida e absurdamente que transformou a prevista indenização numa verdadeira falsidade, instituindo, agora sim, o famigerado confisco que, diante da patente inconstitucionalidade, invalida parte substancial do procedimento desarmamentista. A portaria então baixada, em vez de traçar os termos da indenização pela entrega das armas, preferiu extravasar os limites de suas atribuições (se é que as possuía) e arrogou-se no direito de criar um valor fixo e constante para cada um dos três grupos de armas, sem levar em conta sua marca, origem, fabricante, calibre, finalidade, raridade, valor efetivo etc. Ora, indenizar significa tornar isento de prejuízo, atribuindo a um bem o seu real valor. Pagar, v.g., a quantia de R$100,00 pela entrega de uma pistola avaliada em R$5.000,00 não é indenizar, mas simplesmente confiscar, por meio de embuste, dissimulação e contrafação.

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5.3.3.O derradeiro caso de invalidade e, portanto, de inconstitucionalidade surge da violação do princípio da isonomia, consubstanciado na opção de privilegiar os ricos, porque o registro e sua renovação, em cada período de três, terá um custo de R$300,00, por arma, inviabilizando a manutenção dela na posse da pessoa que seja pobre. Por aí se vê que as pessoas não são iguais perante a lei do desarmamento. Por outro lado, veja-se o despropósito gerado pelas normas do desarmamento: para registrar um revólver, a taxa a ser paga é de R$300,00, de três em três anos; para entregá-lo ao Estado, a indenização a receber não passa de R$100,00!

5.4.Eficácia é um atributo estranho ao Estatuto do Desarmamento. Ele só seria eficaz se os seus objetivos sociais fossem realmente alcançados e sem ocasionar as conseqüências anti-sociais decorrentes de sua implementação, que consistem na proibição que alguém possa proteger eficientemente a si, a sua família e a seus bens mediante a posse de arma destinada ao uso defensivo.

5.5.Efetividade, finalmente, é o atributo que mais falta, ou melhor, que mais faltará ao estatuto, pois é bastante duvidoso que as autoridades encarregadas de zelar pela sua obediência, venham aplicá-lo em toda a plenitude, em face da severidade e arbitrariedade contidos em alguns de seus dispositivos, os quais contrastam enormemente com o pensamento de todos os operadores do direito dotados do mínimo de senso jurídico. Estes, fatalmente, procurarão amenizar o rigor excessivo da lei ou optarão por buscar recursos na Hermenêutica a fim de evitar a imposição de sanções tidas como injustas e descabidas. Pode ocorrer, então, aquele fenômeno denominado, por ARISTÓTELES, de Epiquéia, ou seja, aquela forma extremada de eqüidade que consiste na recusa de aplicação de lei que seja demasiadamente injusta. Com muito mais razão, efetividade não existirá se isso depender da atitude dos destinatários finais da lei, que deverão insurgir-se contra os postulados dela que, sem relevante razão de direito, subjugam-nos e contribuem para que possam ser vitimados pelos maus.

6.O Estatuto do Desarmamento não é uma lei somente de natureza administrativa, mas, principalmente de natureza penal. Por isso deveria fundar-se não só nos princípios informadores do direito em geral, mas também naqueles que dizem respeito ao direito penal, quais sejam o princípio da interferência mínima ou do direito penal mínimo, o princípio da alteridade ou da transcendentalidade e o princípio da lesividade ou da ofensividade. Assim, toda e qualquer lei penal só deve prever condutas puníveis quando isso seja imprescindível para a manutenção da vida em sociedade (princípio da interferência mínima), quando a conduta proibida interfira no âmbito de outrem, transcendendo, assim, a própria pessoa do agente (princípio da alteridade) e quando a ação ou omissão infracional seja danosa ou perigosa para bens ou interesses jurídicos (princípio da lesividade). Sem a observância dos citados princípios, a lei penal será arbitrária, desnecessária, desnecesserce destituída de toda finalidade social. O delito que resultar da infração de tal lei só será punido com fundamento em mera desobediência, o que é inegavelmente um abuso legislativo. O Estatuto do Desarmamento contém alguns dispositivos bastante distantes dos princípios norteadores do direito penal, haja vista os seus arts. 12 e 14, onde se punem, respectivamente, a posse e o porte de arma, de acessório e de munição. Se antes já estava firmado o entendimento de que a arma de fogo desmuniciada não era instrumento idôneo a figurar como objeto material da infração penal ligada ao porte, hoje a situação é bem outra, pois, além de punirem-se a posse e o porte da arma, também são punidos a posse e o porte de acessório da arma, bem assim a posse e o porte da munição. Ora, onde está a lesividade, a alteridade e a interferência mínima decorrentes da posse ou porte de arma sem munição, de mero acessório de arma ou de munição sem arma? Custa a crer, principalmente, que a lei se disponha a punir a posse e o porte de simples e irrelevante acessório de arma. Mas em que consiste esse acessório? Certamente, acessório não pode ser confundido com componente ou peça de arma, como cano, gatilho, cão e tambor, embora, ainda que o pudesse ser, a punição continuaria a considerar-se injustificada. Acessório, em verdade, é aquilo que se agrega à arma com vista a melhorar sua posse, porte ou desempenho, como, por exemplo, o coldre, a mira a laser, a luneta, o pro-point, o quebra-chamas, o freio-de-boca, o carregador rápido etc. Ora, que despreparo e mau assessoramento demonstraram os legisladores ao preverem punição para a posse e porte de mero acessório de arma, cuja conduta, por ser socialmente inimportante e inofensiva, não ultrapassa o campo circunscrito e restrito à figura do próprio agente.

7.Ao término das presentes considerações, devo manifestar a esperança de que dias melhores poderão ocorrer no futuro quanto às leis concebidas nos moldes do Estatuto do Desarmamento, graças à ação do Judiciário, especialmente, do Supremo Tribunal Federal, ou mesmo graças à atuação do próprio legislativo que, ciente da inconveniência delas ou de alguns de seus dispositivos, venha a revogá-las ou, pelo menos, alterá-las, a fim de satisfazer os justos anseios e sadias pretensões dos jurisconsultos e dos filósofos do Direito.

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Sobre o autor
Dílio Procópio Drummond de Alvarenga

professor aposentado de Direito Penal na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond Alvarenga. Estatuto do Desarmamento:: uma afronta à principiologia jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 691, 27 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6787. Acesso em: 29 mar. 2024.

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