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Cobrança de dívidas à luz do Código de Defesa do Consumidor

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Visando traçar um panorama histórico, ainda que de forma assaz sucinta, num passado muito distante encontramos resquícios de práticas verdadeiramente desumanas no que tange à cobrança de dívidas. À guisa de exemplo, citamos a escravidão por dívidas, muito comum nas sociedades antigas, como Esparta, Roma e Assíria. Naquela época predominava o direito consuetudinário, por meio de Leis orais baseadas na tradição, salvaguardando, sobremaneira, os patrícios em detrimento da plebe, a qual vivia do cultivo das terras (pequenos agricultores). Estes, no intuito de saldar suas dívidas, vendiam inicialmente seus filhos como escravos no mercado e, por fim, não logrando êxito em satisfazer o valor integral, acabavam por ser escravizados.

Em Roma, as incessantes lutas de classes que se estenderam pelo período republicano culminaram em diversas conquistas políticas-sociais, dentre elas, a partir do ano de 367 a.c., a Lei Licínia proibiu que plebeus endividados fossem escravizados por proprietários rurais. De igual sorte ocorreu em Esparta com a eleição de Sólon, que também aboliu a escravidão por dívidas, dentre outras conquistas relevantes de cunho social.

As práticas relacionadas às cobranças de dívidas se estenderam durante séculos, de maneiras mais amenas do que se via em tempos mais remotos. Todavia, não há olvidar-se que outras formas, ainda consideradas desumanas, se perpetuaram por muito tempo.

Interessante se faz salientar, que não obstante a abolição das práticas desumanas de cobrança de dívidas há muito, ainda nos dias atuais encontramos históricos de práticas que ferem os direitos personalíssimos dos indivíduos, não somente no Brasil como também em países considerados de "primeiro mundo", como Japão e Estados Unidos, dentre outros, ou seja, o credor, no afã de ver a dívida saldada, acaba por desrespeitar outros direitos garantidos nas mais diversas Cartas Políticas, utilizando-se de práticas consideradas abusivas nas cobranças de dívidas.

Na análise das práticas em berlinda, é importante mencionar que com a conseqüente evolução dos ordenamentos jurídicos, o homem passou a ser posicionado como centro do direito e, via regressa, o próprio direito como instrumento hábil à satisfação dos interesses daquele, culminando, portanto, no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito.

Ao tratarmos das práticas relacionadas à cobrança de dívidas, à luz dos artigos 42 e 71 do Código de Defesa do Consumidor, inevitavelmente esbarramos em aparente conflito de normas, uma vez que a possibilidade de cobrar uma dívida, ao menos a primeira vista, aponta para exercício regular de direito. Nesta esteira, importante se torna trazermos à baila os comandos emergentes do inciso I do artigo 188 e 153 do Código Civil de 2002:

"Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;..."

"Art. 153. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial."

(Grifos nossos)

Inobstante o reconhecimento de que cobrar uma dívida constitui exercício regular de um direito e, portanto, ato lícito nos moldes dos artigos colacionados, é cediço que tal exercício "É a utilização do direito sem invadir a esfera do direito de outrem. É não prejudicar o direito de outrem, independentemente de causar dano. Só exerce regularmente seu direito aquele que não prejudica direito de outrem." [1]

Por outro lado, o artigo 187 do Código Civil define que: "...comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."

Nesta linha de raciocínio, como já citado, nossa Carta Magna positiva como fundamento do Estado Democrático de Direito o princípio da "dignidade da pessoa humana". Ademais, no Título II – DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS -, extrai-se, ainda:

"Art.5º Todos....

(...)

III – ninguém será submetido a tortura nem tratamento desumano ou degradante;

(...)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(...)"

Somente à luz dos artigos comentados até aqui, sem adentrarmos ainda propriamente nos ditames do artigo 42 do CDC, podemos concluir que não é necessário muito esforço interpretativo para se inferir que cobrar uma dívida é atividade comum e legítima (exercício regular de direito). Entretanto, deduzimos, também, que no exercício desse direito legalmente reconhecido não poderá o credor exceder os limites impostos pelo fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, bem como não poderá ultrapassar a fronteira das garantias fundamentais estampadas na Constituição Federal, independentemente da relação da qual advêm a dívida (de Consumo, Cível, Comercial, Tributária e etc...).

Diante das conclusões esposadas anteriormente, o artigo 42 do CDC poderia até parecer desnecessário. Todavia, ao nosso ver, o legislador consumerista optou por vedar expressamente o abuso de direito nas práticas relativas à cobrança de dívidas advindas das relações de consumo, afastando, portanto, a necessidade de qualquer interpretação legal de dispositivos esparsos e, de tal sorte, positivou, no caput do artigo 42 do CDC: "Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça."

Segundo ensinamentos de Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, o dispositivo em comento "...sofreu grande influência do projeto do National Consumer Act, na versão do seu First Final Draft, preparado pelo National Consumer Law Center, e da lei norte-americana conhecida por Fair Debt Collection Practices Act, promulgada em 1977" [2]

Interessante citar ainda, segundo o mesmo autor supracitado, os principais pontos que influenciaram o texto brasileiro, senão vejamos:

"Section 7.202 (Threats or Coercion)

No debt collector shall collect or attempt to collect any money alleged to be due and owing by means of any threat, coercion or attempt to coerce.

Section 7.203 (Harassment; Abuse)

No debt collector shall unreasonably oppress, harass, or abuse any person in connection with the collection of or attempt to collect any claim alleged to be due and owing by that person or another.

Section 7.204 (Unreasonable Publication)

No debt collector shall unreasonably publicize information relating to any alleged indebtedness or debtor.

Section 7.205 (Fraudulent, Deceptive or Misleading Representations)

No debt collector shall use any fraudulent, deceptive or misleading representation or means to collect or attempt to collect claims or to obtain information concerning consumers.

Section 7.206 (Unfair or Unconscionable Means)

No debt collector shall use unfair or unconscionable means to collect or attempt to collect any claim." [3]

Tradução livre:

"Seção 7.202 (Ameaças ou Coerção)

Nenhum credor deve cobrar, ou tentar cobrar, qualquer valor alegado devido e exigível, por meio de qualquer ameaça, coerção ou tentativa de coerção.

Seção 7.203 (Perturbação/Abuso)

Nenhum credor deve arbitrariamente oprimir, perturbar ou abusar de qualquer pessoa, conjuntamente com a cobrança, ou tentativa de cobrança, de qualquer demanda alegada devida e exigível por tal pessoa ou por outra.

Seção 7.204 (Publicação arbitrária)

Nenhum credor deve, arbitrariamente, divulgar informação relativa a qualquer dívida ou a seu devedor.

Seção 7.205 (Representações Fraudulentas, Ilusórias ou Enganosas)

Nenhum credor deve usar de representação ou recursos fraudulentos, ilusórios ou enganosos, para cobrar, ou tentar cobrar demandas, ou para obter informações concernentes aos consumidores.

Seção 7.206 (Recursos Injustos ou Exagerados)

Nenhum credor deve usar de recursos injustos ou exagerados para cobrar, ou tentar cobrar qualquer demanda."

Nos Estados Unidos, notou-se a necessidade de se editar tais normas tendo em vista a constatação de inúmeras práticas abusivas utilizadas pelas empresas de cobrança. À guisa de exemplo, citamos os relatos extraídos da decisão judicial Duty v. General Finance Co., 273 S.W.2d 64 (Tex. 1954):

"Segundo o tribunal, os molestamentos praticados pela empresa poderiam ser resumidos da seguinte forma: "longos telefonemas diários para o Sr. e Sra Duty; ameaças de colocá-la na lista negra do Serviço de Proteção ao Crédito; acusações de serem malandros; utilização de tom de voz alto, insinuante e rude; afirmações a seus vizinhos e empregadores de que eram malandros; indagação à Sra. Duty sobre o que estava fazendo com seu dinheiro, sendo esta acusada de gastá-lo de outras maneiras que não com o pagamento do empréstimo; ameaças de provocarem a perda dos seus empregos, a não ser que a dívida fosse saldada; telefonemas aos devedores, diversas vezes ao dia, nos seus ambientes de trabalho; ameaça de penhora dos seus salários; ataques à reputação dos autores junto a seus colegas de trabalho; solicitação aos seus patrões para que fizessem com que a dívida fosse liquidada; telefonemas para seus trabalhos; inundação de sua casa e locais de trabalho com uma imensidão de cartas de cobrança, cartões pardos, cartas com entrega especial e telegramas; envio de cartões com a seguinte abertura: "Caro Cliente: Nós lhe fizemos um empréstimo porque imaginamos que você fosse honesto"; remessa, por volta da meia-noite, de telegramas e cartas com entrega especial, interrompendo seu sono; telefonema a um vizinho dizendo-se ser um irmão doente de um dos autores e, em outra ocasião, um enteado; telefonema interurbano, a cobrar, para o trabalho da mãe da Sra. Duty, em Wichita Falls; colocação de cartões vermelhos na porta de sua residência, com notas de insultos no seu verso e ameaças veladas; telefonema interurbano, a cobrar, para casa do irmão do Sr. Duty, em Albuquerque, no Novo México, com custo de 11 dólares, incomodando-o com discurso sobre o alegado débito dos autores." [4]

Os métodos utilizados pela empresa de cobrança no caso supracitado, indiscutivelmente, ingressam de forma patente na seara de direitos e princípios constitucionais já comentados em outro passo, e, portanto, ao menos sob a égide do nosso ordenamento jurídico - sem ingressarmos no campo das conseqüências - configuraria abuso do exercício legal do direito de cobrar (art.42CDC), e crime contra as relações de consumo (art.71CDC).

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Infelizmente, mesmo com as normas contidas nos artigos 42 e 71 do CDC, assim como outras subsidiárias que já cometamos alhures, no Brasil, apesar de acreditarmos que houve uma redução de tais práticas, não há dúvida que ainda existem abusos nas cobranças de dívidas, e podemos afirmar, ainda, sem qualquer receio de se estar cometendo equívocos, que não são poucas.

Tais práticas ocorrem exatamente na fase extrajudicial, ou seja, antes do fornecedor exercer o direito de cobrar a dívida judicialmente. Este, certo das mazelas e delongas do judiciário, quando não, considerando ainda o custo benefício de uma cobrança judicial, opta por contratar empresa de cobrança ou utiliza setor interno próprio, tudo na tentativa de receber seu crédito sem ter que recorrer ao judiciário.

Compartilhando com a doutrina mais seleta, ao nosso ver o CDC visa regular o mercado de consumo em todas as suas fases (pré-contratual, contratual e pós-contratual), e especialmente em seu artigo 42, apresenta técnica legislativa louvável no sentido de regular o mercado de consumo no que tange a cobrança de dívidas dele advindas (pós-contratual), uma vez que o legislador certamente não visou beneficiar o devedor, mas tão-somente estabelecer limites para que outros direitos não sejam usurpados quando do exercício desse direito.

Condutas proibidas pelo Código de Defesa do Consumidor nas práticas de cobrança de dívidas

Notamos que parte da doutrina, ao comentar o artigo 42 do CDC, preocupa-se em definir quais são, definitivamente, as práticas de cobrança vedadas. Ao nosso ver, as práticas vedadas são todas aquelas que configuram abuso do direito de cobrar, ou seja, quaisquer práticas que não respeitem princípio constitucional (dignidade da pessoa humana), ou interfiram na esfera dos direitos personalíssimos (intimidade, vida privada, honra e imagem), isto porque, expor o consumidor a ridículo ou submete-lo a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça na cobrança de uma dívida, implicará necessariamente na violação de um desses direitos.

A este respeito, cumpre ainda analisar o artigo 71 do CDC, o qual define o tipo penal aplicável, visando justamente assegurar o cumprimento do artigo 42, permitindo-nos extrair o propósito da lei. O dispositivo em comento define, mais especificamente, as condutas proibidas, as quais, uma vez verificadas, configuram crime contra as relações de consumo. Nesta esteira, mister trazer à baila o comando emergente da citada norma:

"Art. 71 – Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer:

Pena – Detenção de três meses a um ano e multa."

Como visto, da leitura dos artigos 42 e 71 do CDC, encontramos de forma expressa as condutas vedadas na prática de cobrança de dívidas, ou seja, o fornecedor não poderá utilizar-se de: a) ameaça; b) coação; c) constrangimento físico ou moral; d) emprego de afirmações falsas, incorretas ou enganosas; e) exposição do consumidor a ridículo; f) interferência no trabalho, descanso ou lazer do consumidor.

a) Ameaça

Salvo a ameaça de, não recebendo o débito, tomar as medidas judiciais cabíveis, ou de envio do nome do consumidor aos cadastros de inadimplentes, práticas consideradas legais em doutrina e jurisprudência, o fornecedor não poderá ameaçar o consumidor em outros sentidos (e.g. ameaçar de comunicar seus familiares, seu empregador, afixar aviso em local de seu convívio social e etc...)

Importante comentar que a ameaça estampada no artigo 42, não exige a aferição da gravidade do mal, ou seja, não há que se perquirir se realmente o consumidor se sentiu ameaçado, haja vista que o legislador visou proteger também o mercado de consumo e, assim sendo, a simples conduta ameaçadora, independentemente de suas conseqüências, aponta para o desrespeito da norma em comento.

No que tange ao crime previsto no artigo 71, a interpretação, ao nosso ver, deve ser a mesma, pois diferentemente do que se verifica no artigo 147 do Código Penal, no qual a pessoa deve sentir a intimidação, naquele a simples conduta exaure o tipo. De tal sorte, entendemos ainda que, mesmo que o consumidor não tenha ciência da ameaça, por exemplo, contida em carta encaminhada erroneamente ao destinatário, o crime está consumado.

Por derradeiro, mister tecermos comentário ao quanto asseverado por Antônio de Herman de Vasconcellos e Benjamin em seus comentários ao artigo em berlinda, quando exara que configurado o puro "blefe" no sentido de exercitar um direito, mesmo que regularmente, o fornecedor incorreria no crime previsto no artigo 71, senão vejamos:

"(...) Assim se o credor avisa o consumidor que em sete dias estará propondo ação de cobrança, aí não há qualquer ameaça, mas, sim, a comunicação de um procedimento acobertado pelo Direito. Claro que, mesmo nesse caso, se houver puro "blefe", caracterizada está a infringência ao preceito, mas sob outro fundamento ("emprego de afirmação falsa, incorretas ou enganosas")." [5]

Quanto a conclusão esposada pelo renomado doutrinador, data maxima venia, permitimo-nos discordar de tal posicionamento, pois acreditamos que a ameaça de tomar as medidas judiciais cabíveis configura exercício regular de direito, ficando a cargo do fornecedor exerce-lo ou não, o que jamais configuraria o crime previsto no artigo 71 do CDC, pois não se trata de afirmação falsa, enganosa ou incorreta, mas de simples aviso informando que poderá buscar guarida no judiciário em determinado lapso de tempo.

De tal sorte, concluir que a ameaça, no sentido de fazer valer um direito, só poderia ocorrer se realmente o fosse exercê-lo em vias de fato, seria tirar do fornecedor a opção de comunicar o consumidor das possíveis conseqüências do seu inadimplemento. Por outro lado, muitas vezes, em um primeiro momento o fornecedor pensa em realmente tomar as providências judiciais cabíveis; todavia, em um segundo momento, verifica que aquela atitude pode ser inócua, por exemplo, diante da constatação de que o devedor não possui bens passíveis de constrição. Se seguirmos o posicionamento do citado autor, mesmo diante desta decisão que ocorreu em um segundo momento, o crime estaria configurado, uma vez que afirmou e não cumpriu, o que se afigura, ao nosso ver, desequilíbrio na relação em detrimento máximo do fornecedor, o que não parece ser a intenção do sistema.

Por derradeiro, entendemos, portanto, que a ameaça de tomar as medidas judiciais cabíveis em tempo determinado, conforme exarado na possível comunicação, fica dentro do campo do exercício regular de direito, não exaurindo o tipo penal do artigo 71.

b) Coação

No que tange a proibição de coagir o consumidor, essa diz respeito à prática que impõe, de forma inadmissível, uma atuação do consumidor contra sua própria vontade, pelo emprego de violência relativa, ou seja, sem a qual o consumidor jamais agiria de determinada forma (vontade absolutamente anulada)

Nesta esteira, interessante trazermos à colação o exemplo citado na obra de Luiz Antônio Rizzatto Nunes:

"(...) O administrador ou seu agente coage o consumidor a assinar uma nota promissória ou a entregar um cheque para o pagamento da dívida, sob pena de não liberá-lo do hospital ou não liberar pessoa de sua família"

c) Constrangimento físico ou moral

No que tange a vedação ao constrangimento físico ou moral, a intenção do legislador foi de vedar o emprego de violência absoluta (grave ameaça), não obstante as duas condutas sejam apenadas da mesma forma (coação ou constrangimento físico ou moral), o que nos parece uma impropriedade.

No constrangimento físico ou moral, o consumidor não tem sua vontade anulada, mas sim viciada, pois aqui o consumidor sofre grave ameaça acerca de sua saúde e integridade física.

Um exemplo seria o emprego de força – capangas contratados exigirem o pagamento sob pena de aplicarem uma surra no consumidor -. Outro exemplo reside no corte de fornecimentos de serviços considerados essenciais ou de urgência (eletricidade, fornecimento de água ou médicos emergenciais), os quais trataremos em momento oportuno detalhadamente.

d) Emprego de afirmações falsas, incorretas ou enganosas

Tal vedação está intimamente relacionada com a correção e clareza das informações que se exige em todas as fazes da relação consumerista (pré-contratual, contratual e pós-contratual). Especialmente no caso sob análise (pós-contratual), o fornecedor também não pode utilizar afirmações: 1) Falsas - que não sejam sustentadas em dados ou fatos reais ; 2) Incorretas - que levem à interpretação desconforme, ainda que parcialmente, ou; 3) Enganosas - que confundam o juízo de verdade do consumidor por meio de ação ou omissão, ou seja, o leve a erro.

Os exemplos muitas vezes vão esbarrar em mais de um dos subtipos de afirmações que não podem ser utilizadas no momento pós-contratual. Nesta linha de raciocínio, concordamos plenamente com o ínclito professor Luiz Antônio Rizzatto Nunes, ao ponderar com muito acerto que: "(...) Por isso, parece correto dizer que as expressões "afirmação falsa", "incorreta" e "enganosa" são tomadas como sinônimas..." e segue com os exemplos:

"É abusiva, por exemplo, a ação do mero cobrador da empresa que, ao telefone, apresenta-se ao devedor como oficial de justiça ou advogado (sem sê-lo).

É abusiva, também, a cobrança que apresenta ao devedor uma conta de valor maior do que ele deve, para, com isso, pressioná-lo e conseguir negociação para o recebimento, oferecendo-lhe um "desconto", com o que se chegará ao débito real (original)." [6]

e) Exposição do consumidor a ridículo

É considerada prática abusiva de cobrança a que expõe o consumidor a ridículo (envergonhá-lo ou humilhá-lo), de modo a afetar o próprio conceito moral que ele tem sobre si, bem como afetar o conceito moral e de honestidade que ele sustenta perante aqueles que fazem parte do seu convívio social.

Citamos, como exemplo, alguns atos que interferem no conceito moral do consumidor, atingindo diretamente seus direitos personalíssimos, quais sejam: afixar lista de devedores em local de acesso público; cobrar o devedor por meio de comunicação que, de qualquer forma, possa ser identificada por terceiros como tal; cobrar o consumidor por meio de ligações telefônicas para terceiros não garantidores do débito; utilizar correio ou telegrama fechados, mas que seu envelope possa ser identificado como de empresa cobradora de dívidas e etc...

Tais práticas são capazes de submeter o consumidor a situações vexatórias e, portanto, são vedadas pelo Código de Defesa do Consumidor, respondendo os responsáveis por tais práticas no âmbito civil (art. 42 CDC) e penal (art. 71 CDC).

Com muito respeito aos posicionamentos contrários, não acreditamos que a proibição em comento seja relativa, mas sim absoluta, ou seja, toda cobrança que exponha o consumidor a ridículo é terminantemente proibida.

Todavia, há quem diga que o legislador fez uso do termo "injustificadamente", o que levaria a conclusão de que, em algumas situações, tais exposições seriam justificadas em via de exceção e, portanto, a proibição seria relativa.

Parece-nos que o termo foi utilizado no sentido de ressalvar situações comuns, que apontam para o exercício regular de direito, ou seja, o simples fato de estar sendo cobrado já não é situação agradável para ninguém, mas é legítimo e justificável. Assim sendo, ao nosso ver, o legislador optou por utilizar o termo para justificar as práticas exercidas dentro dos limites impostos pela Lei, mas que por sua própria natureza já culminam em situações que interferem na moral, descanso e trabalho do devedor (e.g. receber citação por meio de oficial de justiça em condomínio acerca de cobrança judicial; citação por hora certa; o próprio CPC autoriza, em casos excepcionais a citação fora do horário permitido e aos domingos e feriados - § 2º art. 172).

f) Interferir no trabalho, descanso ou lazer do consumidor.

Neste ponto, mister se faz interpretar o dispositivo em comento com muita cautela, haja vista que o fornecedor realmente não pode interferir no trabalho, descanso ou lazer do consumidor, porém isso não culmina em mitigação plena do exercício regular do direito de cobrar.

Nesta linha de raciocínio, pode o fornecedor ligar para o endereço informado pelo consumidor para possível cobrança, o qual pode ser residencial ou comercial, devendo tão-somente atentar aos limites legais, conforme já cometamos em outros passos.

O que se veda, realmente, são as práticas abusivas. Dentre as inúmeras que podemos encontrar no mercado, vamos citar algumas condutas que nos parecem legais e outras que não:

- Ligações para o trabalho do consumidor devedor

Tal prática, ao nosso ver, não apresenta desrespeito à norma contida no artigo 42 do CDC, tampouco no 71, desde que a pessoa não se identifique como cobradora para terceiros, não deixe recado com amigos e, principalmente, não transpareça, de qualquer forma, o assunto a ser tratado.

Entretanto, é importante também, que não se interfira no trabalho do consumidor, por exemplo, com inúmeras ligações diárias, o que certamente ultrapassa os limites do exercício legal de cobrar.

- Interferir no descanso do consumidor

Ligar para casa do consumidor também não é considerada prática abusiva de cobrança, ressalvando, mais uma vez, que o contato deve ser direto com o devedor ou com o possível garante e estritamente pessoal, sem envolver terceiros alheios à dívida.

Todavia, há que se ponderar o número de chamadas telefônicas e os horários em que são realizadas, ou seja, entendemos que um bom limite de horário compreenderia o período das 8:00 às 22:00 horas, período esse em que, normalmente, é possível encontrar o consumidor em casa, após o horário laboral costumeiro, sem interferir no seu descanso ou de sua família.

Ligações após o horário que citamos como referência, ao nosso ver configuram cobrança abusiva e desrespeito aos artigo 42 e 71 do Código de Defesa do Consumidor.

Importante salientar ainda, que mesmo diante de nossa sugestão, a qual concluímos dentro de um parâmetro que nos parece razoável, no caso concreto caberá ao magistrado perquirir acerca da ocorrência de tais hipóteses diante do conjunto probatório, pois se ficar demonstrado que o consumidor labora no período noturno (e.g. vigia de condomínio), fica patente que seu descanso se dá no período diurno. De tal sorte, desde que provada a ciência do fornecedor quanto a tal peculiriadade, teriamos situação oposta em relação ao perído citado anteriormente como razoável no sentido de não interferir no descanso do consumidor, o que só será realmente aferido caso a caso.

Envio de correspondência pessoal também não configura desrespeito aos dispositivos em comento, desde que não contenha qualquer menção externa que possa ser identificada por terceiros como tal (e.g. envelope com tarja indicando "cobrança" ou palavras sinônimas; envelope com indicação do nome social que possa ser identificada de plano como empresa de cobrança; envelope no qual se possa ter acesso aos dizeres internos sem que seja efetivamente aberto pelo consumidor).

Enfim, como já viemos tratando ao longo do texto, o que os artigos 42 e 71 do CDC buscam garantir é o mínimo de dignidade e privacidade ao consumidor inadimplente e regular todo o mercado de consumo, no que tange as práticas pós-contratuais, visando, justamente, obstar verdadeiro retrocesso acerca dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. Conclui-se, portanto, em última análise, que o enfoque dos artigos em comento reside eminentemente no afastamento do abuso de direito, o que jamais pode ser considerado como mitigação plena do exercício legal do direito de cobrar.


Notas

1 NERY, Nelson Junior e NERY, Rosa Maria de Andrade, in: Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados, RT, São Paulo, 2002, p. 112.

2 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7ª Ed., Forense Universitária, pág. 338.

3 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7ª Ed., Forense Universitária, pág. 338 (nota de rodapé 285).

4 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7ª Ed., Forense Universitária, pág. 340 (nota de rodapé 287).

5 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7ª Ed., Forense Universitária, pág. 342.

6 RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Curso de Direito do Consumidor, Ed. Saraiva, São Paulo 2004, pág.542.

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Sobre o autor
Francisco Augusto Caldara de Almeida

Advogado, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP, Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Francisco Augusto Caldara. Cobrança de dívidas à luz do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 719, 24 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6921. Acesso em: 28 mar. 2024.

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