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Fisco e contribuintes: saindo de uma relação conflituosa para uma relação de cooperação

05/12/2018 às 12:00
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A adimplência tributária cooperativa está em curso em vários países desenvolvidos e em desenvolvimento e é pautada na boa-fé e na transparência, através de uma atitude colaborativa entre a administração tributária e os contribuintes.

Nas empresas e na mídia muito se fala de “compliance”. E o que vem a ser esse termo em inglês? Em essência, é o ato de obedecer uma ordem ou uma regra. Em termos legais, é o fato de obedecer a determinada lei ou norma, ou de agir conforme foi estabelecido. Assim, o termo pode ser traduzido em português como “conformidade”, “aderência” ou mesmo “adimplência”.

O “compliance” vem ganhando projeção significativa no Brasil desde a publicação da lei de integridade empresarial (Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013), que visa o combate à corrupção e todo e qualquer ato lesivo contra a Administração Pública, principalmente pela responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

Dessa forma, muitas empresas têm se preocupado em promover uma cultura de integridade organizacional. Como benefício, há o fortalecimento da imagem da empresa no mercado perante seus acionistas ou investidores, fornecedores e consumidores ou clientes. Adicionalmente, propicia a prevenção de desvios e consequentes punições, inclusive as de ordens financeiras, melhoria nas relações internas e externas, aumento de eficiência e dos níveis de governança corporativa.

No âmbito tributário, a adimplência, ou seja, o cumprimento das obrigações tributárias, divide-se em dois tipos, principal e acessória, conforme o art. 113 do Código Tributário Nacional (CTN):

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

No entanto, o cumprimento desses dois tipos de obrigações chega a ser extremamente complexo para a maioria dos contribuintes, em especial, os maiores. Há uma imensa quantidade de legislações dos tributos (estes mesmos não são poucos) e de obrigações acessórias. Como exemplo, no âmbito federal, há pelo menos 24 declarações de informações ou de constituição de débitos que o contribuinte pode estar sujeito. Somando-se as legislações tributárias estaduais e municipais torna-se praticamente impossível ser completamente adimplente.

O recente estudo do Banco Mundial “Doing Business 2019” estima que no Brasil gasta-se 1.958 horas por ano dedicadas no cumprimento de obrigações tributárias, o que representaria o maior tempo no mundo. Entre 190 países, o Brasil está na posição 184º no item pagamento de tributos. Assim, o custo de todo o sistema tributário e de sua administração recai pesadamente sobre os contribuintes, sobretudo nos grandes negócios.

Não raramente, há situações de dúvidas na interpretação e aplicação da legislação tributária, que leva a autuação fiscal e ao inevitável e longo contencioso administrativo ou judicial. Isso acaba deteriorando a relação entre os contribuintes e a administração tributária, que se enxergam em polos opostos.

Por outro lado, há a ocorrência de planejamento tributário abusivo e de sonegação, com efeitos diretos na livre concorrência, no qual uns se beneficiam ao não pagar ou reduzir o tributo devido, enquanto o contribuinte adimplente se sente prejudicado ao se comportar de forma aderente. Importante destacar que a sonegação afeta a sociedade como um todo, uma vez que a sua incidência implica insuficiência de recursos financeiros para as políticas públicas.

Diante de tal cenário, há a necessidade urgente de restaurar a credibilidade e a confiança na relação entre os contribuintes e a administração tributária no Brasil. É o que esse modelo de programa de adimplência tributária cooperativa se propõe.

O primeiro país a introduzir um modelo formal de adimplência cooperativa foi a Austrália em 2001. Com o passar dos anos, vários países, incluindo África do Sul, Estados Unidos da América, Reino Unido e Holanda adotaram suas versões de programas de adimplência cooperativa. Em 2013, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotou o termo “co-operative compliance”, ou seja, adimplência cooperativa, para indicar a abordagem baseada na cooperação entre a administração tributária e o contribuinte com o propósito de assegurar o seu cumprimento, entendido como o pagamento na quantia certa e no momento correto.

Importante destacar o modelo PARE (Prevent, Assist, Recover & Enforce – Prevenir, Assistir, Recuperar e Obrigar) da administração tributária da Nova Zelândia, que aborda medidas gradativas conforme o comportamento do contribuinte quanto ao seu desejo de estar adimplente. Nesse modelo, para os contribuintes que desejam ser totalmente adimplentes, a administração tributária deve facilitar seu cumprimento. Para os que tentam cumprir, mas não conseguem, a administração deve promover a assistência para que possa haver o cumprimento. Para os que não desejam ser aderentes, deve-se iniciar a aplicação de instrumentos para dissuadi-lo de seu não adimplemento. Finalmente, para os contribuintes decididos em não cumprirem com as suas obrigações tributárias, deve-se utilizar toda a força da lei. Nessa visão, o ideal é a administração tributária criar pressão para os contribuintes se ajustarem aos níveis de maior adimplência.

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A adimplência cooperativa pode ser descrita como um relacionamento incrementado voluntariamente entre a administração tributária e os contribuintes, baseado em uma crescente transparência mútua e na boa-fé, acompanhada de cooperação e de colaboração conjuntas. Procura-se mudar a natureza do diálogo entre a administração tributária e os contribuintes, onde estes últimos notificam proativamente a primeira sobre as questões com a possibilidade ou significativo risco fiscal e divulgam todos os fatos e circunstâncias relacionadas a essas questões para acelerar o processo de auditoria e validar, de forma mais célere, posições adotas na apuração dos tributos e nas demais obrigações tributárias que possam provocar incertezas.

Em contrapartida, os contribuintes permitem que a administração tributária tenha acesso aos seus sistemas de controle responsáveis por gerenciar os riscos tributários com a premissa de que se a administração tributária está satisfeita com eles, então não haveria necessidade de realizar auditoria tradicional aprofundada e consequente contencioso tributário em caso de desconformidade. Assim, baseando-se na transparência voluntária e no acesso a esse sistema de controle, a administração tributária aplica um regime de cumprimento menos severo para contribuintes elegíveis. Este oferecimento de solução do tipo “ganha-ganha” incentiva os contribuintes a serem aderentes e permite a administração tributária focar seus recursos limitados em um pequeno grupo de contribuintes potencialmente menos aderentes, efetivamente aumentando a arrecadação tributária com mais eficiência.

Com a adimplência cooperativa, as questões sobre interpretações tributárias complexas também requerem um diálogo aberto e construtivo entre os atores (contribuinte e administração tributária), explorando interpretações alternativas da legislação quanto às transações em questão. Essa abordagem mais aberta e transparente é tipicamente acompanhada de um programa de solução prévia ao envio de informações obrigatórias e um sistema de resolução de litígios mais eficiente.

A adimplência cooperativa não garante que não haverá disputa. Entretanto, quando esta surge, a relação cooperativa ajudará a assegurar que as partes lidem com o contencioso de maneira mais eficiente possível. Abertura e transparência são essenciais sobre essa questão, pois somente é possível ter uma discussão efetiva sobre a interpretação da legislação tributária se todos os fatos são claros e aceitos por ambas as partes. Na Holanda, por exemplo, é admitido que as partes “concordem em discordar”. Esse princípio permite a possibilidade de se ir ao poder judiciário sem comprometer a relação, de tal forma que a administração tributária e o contribuinte apresentam juntos o caso perante a justiça. Isso assegura que não há discussão sobre matéria de fato, mas somente sobre a interpretação da legislação. O resultado dessa abordagem é uma resolução de disputa mais rápida e mais efetiva.

Como vantagens para os contribuintes dessa abordagem cooperativa, a OCDE destaca: a melhora na relação entre os contribuintes e a administração tributária; boa reputação da empresa perante o mercado e a sociedade; habilidade de melhor lidar com riscos tributários, acompanhada da capacidade de prever com razoável confiança qual a posição a administração tributária terá em relação à questões e posições que possam suscitar dúvida; reconhecimento da distinção entre as decisões orientadas pelo negócio e pela tributação; redução do custo do adimplemento tributário, com consequente redução dos custos gerais da empresa; e menos auditorias aprofundadas e invasivas da administração tributária.

Há benefícios identificados pela OCDE também para a administração tributária, além da melhora da relação com os contribuintes, tais como o aumento e atualização do conhecimento de práticas comerciais pelos servidores da administração tributária, favorecendo uma atuação profissional e especializada; habilidade de lidar com riscos emergentes no menor tempo possível; prevenção de litigância; redução de custos administrativos, com aplicação mais eficiente dos recursos focando nos casos de maior risco e de melhor retorno; e aumento na confiança no sistema tributário e na administração tributária.

O que se observa é que esse enfoque cooperativo é uma tendência tanto nas maiores economias, quantos nos países emergentes. As vantagens são grandes para os contribuintes e para a administração tributária. Essa mudança de atitude, que busca aproximar a administração tributária e os contribuintes, está em contínua marcha, do qual o Brasil não pode ficar de fora.

O conteúdo desse artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião da RFB.

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Sobre o autor
Márcio Gonçalves

Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Márcio. Fisco e contribuintes: saindo de uma relação conflituosa para uma relação de cooperação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5635, 5 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70577. Acesso em: 28 mar. 2024.

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