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Violação da intimidade como violência doméstica contra a mulher e o novo crime de registro não autorizado da intimidade sexual

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22/01/2019 às 11:59
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Houve a criação, na lei Maria da Penha de mais uma modalidade expressa de violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa nova modalidade se estabeleceu como forma de violência psicológica, consistindo na violação da intimidade.

1-INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo o estudo das alterações promovidas pela Lei 13.772/18 na Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) e no Código Penal Brasileiro.

A primeira mudança a ser tratada diz respeito a uma nova modalidade de violência doméstica e familiar contra a mulher que foi incluída no artigo 7º., da Lei 11.340/06. Em seguida passar-se-á ao estudo do novo crime, cujo “nomen juris” é “registro não autorizado da intimidade sexual” (artigo 216–B, CP).

Ao final serão retomadas as principais ideias expostas ao longo do texto e indicadas as conclusões respectivas.


2-A NOVA MODALIDADE DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

É sabido que a Lei 11.340/06 arrola em seu artigo 7º., incisos I a V, as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Note-se que o rol ali previsto não é taxativo, pois que o “caput” do artigo 7º., ora em estudo afirma que aquelas são as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, “entre outras”, expressão esta que permite o uso da chamada “interpretação analógica”, ampliando o que ali está casuisticamente descrito para abranger situações similares não expressas.

São cinco as espécies de violência contra a mulher previstas no dispositivo, a saber: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Destaque-se que a depender do caso concreto, na prática de um único ato a mulher poderá ser atingida por mais de uma espécie de violência, de forma que as modalidades não são entre si excludentes, mas complementares e passíveis de concomitância.

Outro ponto importante é que a Lei 11.340/06 não prevê nenhum crime específico contra a mulher. [1] As formas de violência dispostas no artigo 7º., sob comento não são descrições de condutas criminosas (preceitos primários) e respectivas sanções penais (preceitos secundários). Aliás, não há nem descrição alguma de conduta, mas apenas menção de espécies de violência, bem como não há previsão de penas. A responsabilização criminal de agressores se dará por meio da legislação penal comum codificada e esparsa, servindo o artigo 5º., da Lei 11.340/06 para estabelecer as circunstâncias e o artigo 7º., as espécies de violência doméstica e familiar contra a mulher, a fim de que as normas mais rigorosas da Lei Maria da Penha possam ser aplicadas aos infratores, de acordo com as infrações penais que venham a cometer.

Nesse quadro, a Lei 13.772/18 inclui no artigo 7º., inciso II, da Lei 11.340/06 uma nova forma de violência doméstica e familiar contra a mulher, qual seja, a “violação de sua intimidade”. Esta, portanto, passa a ser mais uma forma de “violência psicológica” contra a mulher.

Seria então essa mudança legal uma espécie de “novatio legis in pejus” ou ainda uma espécie de “novatio legis” incriminadora?

É evidente que não se trata de uma “novatio legis” incriminadora, eis que, como já visto, o artigo 7º., da Lei Maria da Penha somente arrola espécies de violência doméstica contra a mulher, devendo o infrator responder nos crimes já existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Não se trata da criação de uma nova conduta criminosa.

Também não se pode dizer que seja uma “novatio legis in pejus” ou mesmo “in mellius”. Na verdade o legislador apenas deixa mais explícito que a “violação da intimidade” da mulher, em circunstâncias de violência doméstica e familiar (artigo 5º., I a III, da Lei 11.340/06), contará com a tutela dos institutos dessa legislação mais rigorosa. Mas, será que não ocorre uma contradição quando se afirma que o novo dispositivo explicita a aplicação de legislação mais rigorosa e a alegação de que não há “novatio legis in pejus”? A resposta é negativa. As aparências enganam. É preciso lembrar do que aqui já foi dito. O artigo 7º., da Lei Maria da Penha não é taxativo, seu “caput” admite, em sua parte final, “outras” formas de violência. Portanto, a “violação da intimidade” de uma mulher no âmbito doméstico e/ou familiar, desde que configurado algum tipo penal existente em nosso ordenamento, sempre foi passível de ser reconhecida como uma forma de violência doméstica e familiar contra a mulher. A Lei 13.772/18 apenas torna o que seria alcançável mediante a chamada “interpretação analógica”, possível de ser concretizado por referência a uma previsão legal expressa. Além disso, há outras figuras no próprio artigo 7º., inciso II da Lei 11.340/06 que poderiam abrigar a violação da intimidade como forma de violência psicológica, conforme se verá com mais detalhes adiante. Dessa maneira, é viável afirmar que a nova disposição pode perfeitamente ser aplicada a casos de violência doméstica, com atingimento da intimidade da mulher, ocorridos preteritamente à publicação da Lei 13.772/18.

Ponto relevante ressaltado oportuna e originalmente por Leitão e Oliveira, diz respeito à amplitude do termo “violação da intimidade”. Os autores sobreditos questionam se essa “intimidade” seria adstrita somente ao aspecto “sexual” ou comportaria uma interpretação mais ampla, abrangendo qualquer violação de intimidade no “seio familiar” e doméstico, como, por exemplo, a exposição de altercações, situações ridículas, humilhações de toda sorte, vexames etc. Concluem em seu trabalho que a “intimidade” ali mencionada deve se referir somente ao “campo da intimidade sexual”. Baseiam-se em uma interpretação sistemática da Lei 13.772/19, a qual, em seguida, cria o novo crime de “registro de imagem não autorizada de intimidade sexual” (grifo nosso). Entendem, portanto, que a “mens legis” está voltada ao aspecto sexual e não a outras situações. [2]

Considerando que o entendimento esposado por Leitão e Oliveira acima exposto venha a prosperar, isso não significa que eventuais violações da intimidade de uma mulher no âmbito doméstico e/ou familiar deixem de poder ser classificadas como formas de violência, nos termos do artigo 7º., da Lei Maria da Penha, seja em seu “caput”, que, como já visto, abre a possibilidade de interpretação analógica, seja, conforme o caso, nos incisos que o seguem. O próprio inciso II pode abranger casos de violação da intimidade não sexual quando trata da violência psicológica que cause “dano emocional”, “diminuição da autoestima”, degradação, perturbação do pleno desenvolvimento, “humilhação”, “constrangimento”, “isolamento” etc. É visível que mesmo reduzindo a “violação da intimidade” ao aspecto sexual, isso não significa jamais o afastamento de outras violações à intimidade como forma de violência doméstica e familiar, seja na abertura do “caput” (“entre outras”), seja em previsões expressas do próprio artigo 7º., inciso II que trata da mesma violência psicológica. Isso sem falar no inciso V, que trata da “violência moral”, desde que haja prática de algum crime contra a honra da mulher no respectivo contexto.

Por outro lado, os mesmos autores supra mencionados indicam a possibilidade de interpretação diversa mais ampla. Seria o caso de se considerar que a “violação da intimidade” não seria reduzida ao seu aspecto sexual, mas abrangeria qualquer espécie de ataque à intimidade da mulher no âmbito doméstico ou familiar. Essa interpretação mais ampla teria por fundamento o entendimento de que as normas que designam as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher devem ter uma interpretação de longo alcance, visando à maior amplitude protetiva possível. Outro argumento seria o de que a “violência sexual” já teria previsão no inciso III, do próprio artigo 7º., da Lei 11.340/06. Assim sendo, a interpretação reduzida ao aspecto sexual violaria à regra de hermenêutica segundo a qual a lei não traz em si dispositivos ou palavras inúteis. [3]

Ambas as posições acerca do alcance da expressão “violação da intimidade” acrescida ao dispositivo sob comento contam com bons argumentos. Como visto, seja qual for o posicionamento adotado, a mulher não perderá a tutela da Lei Maria da Penha por falta de previsão de uma forma de violência doméstica e familiar. O rol do artigo 7º., não é taxativo e há possibilidade de enquadramento no próprio inciso II, seja da intimidade sexual ou de outras violações da intimidade.

Ao que nos parece, inobstante a elasticidade da legislação pertinente, a não causar prejuízo à mulher vitimizada, considerando, como fizeram Leitão e Oliveira, uma interpretação sistemática da Lei 13.772/18 que, afinal de contas, foi a responsável pela inclusão do termo em discussão no inciso II, do artigo 7º., da Lei 11.340/06, parece mais plausível que a “mens legis” é de atingir à intimidade de cunho sexual, ficando as demais violações passíveis de subsunção ao próprio inciso II nas outras figuras, conforme o caso ou mesmo, em última análise, por meio de interpretação analógica de acordo com a expressão “entre outras” que consta do artigo 7º., “caput”, da Lei 11.340/06. Isso porque a Lei 13.772/18 nitidamente tem por objeto imediato claro e evidente a tutela específica da intimidade sexual e não de outras naturezas, pois em seu bojo traz a lume exatamente um novo tipo penal para punir o “registro não autorizado da intimidade sexual” (grifo nosso). A essa mesma conclusão se pode chegar ao analisar o teor da ementa da referida lei que trata da violência doméstica ligada à intimidade da mulher conjuntamente com a tutela da intimidade e privacidade sexual, libidinosa e da situação de nudez das pessoas.

Nas lições especializadas de hermenêutica jurídica se encontra o seguinte ensinamento a corroborar esta tese:

“Consiste o Processo Sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto. (...). Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio”. [4]  

Os argumentos de uma interpretação mais ampla possível e da previsão da “violência sexual” no inciso III do mesmo dispositivo enfocado não parecem ter força de convicção suficiente.

Não há necessidade alguma de elastério de expressões nos incisos, tendo em vista o fato exposto neste texto de que não se trata de rol taxativo, mas exemplificativo e passível de “interpretação analógica”. Portanto, qualquer promoção de expansão interpretativa das casuísticas expressas é absolutamente dispensável.

Também não procede o recurso à alegação de que a “violência sexual” já estaria prevista no inciso III do artigo 7º., da Lei Maria da Penha. O leitor que perscrutar o referido inciso III, verá que ali nada consta que se possa ligar a uma simples violação da intimidade no aspecto sexual. São previstos casos mais gravosos ainda de violência sexual mediante constrangimentos, relações sexuais forçadas, comércio e utilização induzidos da sexualidade, impedimentos à contracepção, matrimônio forçado, aborto sem consentimento, prostituição forçada, coação, chantagem, suborno ou manipulação e finalmente limitação ou anulação do exercício de direitos sexuais e reprodutivos. Ora, não há previsão, como dito antes, da específica “violação da intimidade” de caráter sexual e sim outras formas de violência que envolvem a sexualidade de forma mais direta e contundente. Ou seja, o inciso III do artigo 7º., não serve para colmatar a lacuna de uma previsão expressa da “violação da intimidade” de cunho sexual. Essa previsão expressa é feita pela inclusão do termo no inciso II do mesmo artigo pela Lei 13.772/18. Antes disso, seria possível a configuração de violência doméstica e familiar contra a mulher mediante violação de sua intimidade, seja sexual ou de outra natureza, por aplicação de outras figuras, não do inciso III, mas do próprio inciso II (“violência psicológica”) ou então, lançando mão da expressão “entre outras” constante da parte final do “caput” do artigo 7º., por interpretação analógica.

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Uma indagação ainda ficaria. Se realmente o intento do legislador era a previsão da “violação da intimidade” sob o estrito aspecto sexual, tendo em vista o conteúdo geral da Lei 13.772/18, por que então não incluiu a nova forma de violência no inciso III, que trata exatamente da “violência sexual” e sim no inciso II, que trata da “violência psicológica”? Essa escolha legislativa não estaria a indicar que a expressão “violação da intimidade” teria um sentido amplo e não restrito à questão sexual?

A resposta a essa indagação é negativa. Ocorre que a “violação da intimidade”, ainda que seja a sexual, se coaduna muito mais com o conceito de “violência psicológica” do que sexual. Note-se, como já foi exposto, que os casos previstos no inciso III são muito mais diretos e graves no que tange às violações sexuais propriamente ditas. É claro que a exposição da intimidade sexual, também tem reflexos sobre a dignidade sexual da mulher ou de qualquer pessoa. Mas, o dano é claramente muito mais psicológico e próximo ao que trata o inciso II, inclusive em outras figuras que falam de “humilhação”, “dano emocional”, atingimento da “autoestima” etc. A proximidade da “violação da intimidade” à “violência psicológica” é sensivelmente maior do que à da “violência sexual”, ao menos de acordo com as redações dadas aos incisos II e III do artigo 7º., da Lei 11.340/06. É evidente que a violação da intimidade sexual atinge também a dignidade sexual, tanto é fato que isso permite que a mesma Lei 13.772/18 crie o novo tipo penal do artigo 216 –B, CP e o Capítulo I – A no Código Penal Brasileiro, como integrante do Título “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual”. Isso, entretanto, não afasta, antes confirma, o fato de que a Lei 13.772/18 é voltada para o aspecto da intimidade sexual, impondo sua interpretação sistemática neste sentido, assim como não altera a configuração mais contundente, visceral mesmo da “violência sexual” prevista no inciso III do artigo 7º., da Lei Maria da Penha, e a conformação de violações mais sentimentais, emocionais, abstratas na “violência psicológica” delineada no inciso II do mesmo dispositivo.

Por derradeiro, em pesquisa no site do Congresso Nacional é possível acessar à proposição que originou a Lei 13.772/18, qual seja, o Projeto de Lei 555/13 do Deputado Federal João Arruda. Ali se constata que desde a “Justificação” do referido Deputado Federal, passando por 24 pareceres e alterações diversas na conformação original do projeto, grande destaque é dado à intimidade em seu aspecto sexual, havendo sempre e invariavelmente uma ligação entre a previsão da “violação da intimidade” como forma de violência doméstica e familiar contra a mulher e as condutas que ferem essa intimidade com coleta ou exposição de fotos, filmagens, imagens, vídeos etc. de cunho sexual. Os assuntos são tratados em todas as manifestações do Processo Legislativo de forma conjunta, deixando bastante claro que o intento do legislador era realmente a tutela da “intimidade sexual” da mulher no âmbito doméstico. [5]

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Violação da intimidade como violência doméstica contra a mulher e o novo crime de registro não autorizado da intimidade sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5683, 22 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71486. Acesso em: 29 mar. 2024.

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