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Responsabilidade civil do Estado na integridade física do preso

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01/08/2019 às 17:00
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A falência da pena de prisão requer mais do que uma mudança no sistema carcerário, requer que se repense todo o sistema punitivo onde a cultura do hiperencarceramento está incrivelmente arraigada, mesmo sendo inegável sua total ineficácia no controle da criminalidade.

RESUMO: O presente trabalho tem por escopo analisar a responsabilidade civil do Estado em relação ao indivíduo preso, custodiado no sistema carcerário brasileiro. Em face das condições sub-humanas às quais a pessoa presa é submetida quando está sob custódia do Estado, tem sido cada vez mais comum o ajuizamento de ações visando indenização do Estado em razão dos danos sofridos pelo período de cárcere. É nesse sentido que o presente trabalho pretende analisar as hipóteses de responsabilidade civil estatal, de forma a compreender o cabimento de indenização paga pelo Estado nos casos de condições de vida degradantes às quais o preso é submetido ou mesmo nos casos de morte do preso. Para isso, o método utilizado é o método dedutivo e a técnica de pesquisa é a pesquisa bibliográfica, por meio da qual será possível concluir quais argumentos contradizem ou legitimam a responsabilidade civil do Estado em relação ao preso.

Palavras-chave: responsabilidade civil do Estado. Sistema carcerário. Direitos humanos.


1  INTRODUÇÃO

Esse estudo possui como tema a responsabilidade civil do Estado na integridade física do preso à luz da Lei de Execução Penal - LEP, da Constituição Federal de 1988 e da jurisprudência pátria.

Tem-se a responsabilização do Estado em virtude da tutela jurisdicional em seu Art. 5°, incs. 35 e 49 da CR/88 que preleciona que o Estado deve manter integridade física e moral do preso, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Mas a realidade carcerária no Brasil, já há bastante tempo demonstra contornos caóticos, visíveis a toda a sociedade. O cumprimento da pena privativa de liberdade falha na tentativa de ressocialização do preso, e o tempo de prisão torna-se um castigo desumano e degradante em flagrantes, rotineiras e pulverizadas violações da dignidade da pessoa humana.

A responsabilidade civil do Estado na integridade física do preso é legitima, necessária e proporcional ao ressarcimento das constantes violações dos direitos dos custodiados e em decorrência das condições de sobrevivência precárias às quais são diariamente submetidos enquanto estão sobre a guarda do Estado, e traz consequências à atuação estatal, possivelmente capazes de alavancar mudanças no sistema carcerário brasileiro que diariamente viola a dignidade de centenas de milhares de indivíduos encarcerados.

Justifica-se o presente estudo em razão da relevância do tema do tratamento concedido aos presos, enquanto assunto de relevância internacional e repercussão social multifacetada, haja vista a estrutura bifronte da análise do tratamento destinado ao preso, enquanto observância dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana enquanto padrão mínimo de existência, bem como a relação da situação carcerária caótica com a dificuldade de diminuição da criminalidade e os altíssimos números de reincidência.

Assim, o objeto do presente trabalho visa apreciar a responsabilidade civil do Estado quanto ao indivíduo que está sobre sua custódia nos presídios brasileiros, enquanto assunto divergente, constante e pulsante na jurisprudência e doutrina atual, que de forma multidisciplinar envolve direito administrativo, constitucional, processual civil e direitos humanos, buscando-se assim demonstrar o quão caótico está o sistema carcerário brasileiro, e as consequências deste cenário degradante para o preso, para o estado e para a sociedade. Para isso, o método utilizado é o método dedutivo e a técnica de pesquisa é a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, por meio da qual será possível concluir quais argumentos fundamentam a responsabilidade civil do Estado em relação ao preso.


2 A responsabilidade civil do Estado: ASPECTOS HISTÓRICOS E JURÍDICOS

De origem concomitante à própria história da humanidade, a responsabilidade civil sempre fez parte das relações humanas e foi gradualmente evoluindo até a conformação do instituto tal como é hoje.

Nas relações mais primitivas, vigorava a ideia de vingança pelo mal causado, contudo, ultrapassada a ideia de vingança, ganha espaço a reparação do dano em dinheiro, tarefa avocada pelo Estado, notadamente pela Lex Aquilia, onde, inclusive, reconheceu-se a necessidade de demonstração da culpa para que se pudesse surgir o direito à indenização, mas foi mesmo no direito francês, com o advento do Código Napoleônico que a responsabilidade civil evolui consideravelmente, regulamentando-se, inclusive, a culpa como pressuposto do dever de indenizar (SILVA, 2003, online).

No direito brasileiro, a responsabilidade civil sempre figurou nos códigos civis, baseada na comprovação do ato ilícito, do dano e do nexo causal, elencando também a culpa como pressuposto do instituto indenizatório.

Assim, a Responsabilidade Civil consubstancia-se no dever jurídico de reparação do dano causado em razão da violação de um dever jurídico (GONÇALVES, 2003, p. 07).

Nesse sentido, se a responsabilidade civil subjetiva encontra suas origens no direito francês, a responsabilidade civil objetiva advém do direito romano, mas também toma forma e evolui no direito francês. Na seara da responsabilização objetiva, dispensa-se a verificação de culpa, sendo necessário apenas o ato, o nexo causal e o dano para fazer nascer o dever de indenizar, calcada nos princípios da boa-fé e da equidade, objetivando uma entrega jurisdicional mais justa.

No que tange à responsabilidade civil do Estado, tem-se que o instituto também passou por constantes mudanças e evoluções no decorrer do tempo. A priori, vigorava a teoria da irresponsabilidade do Estado, em meio a governos autoritários, que não assumiam a hipótese do erro.

Com a evolução social, a responsabilidade do Estado também evolui e passa a admitir a responsabilização estatal em hipóteses específicas e bem esparsas, e mais algum tempo depois surge a teoria da responsabilidade subjetiva do Estado, em que o dever de indenizar do Estado dependia da comprovação de culpa, além da conduta, do dano e do nexo causal.

Posteriormente, o direito caminha no sentido de responsabilidade subjetiva na culpa do serviço, que Helly Lopes Meirelles denomina de “teoria da culpa administrativa”, em que a vítima precisava apenas demonstrar que o serviço não foi prestado como deveria pelo Estado, e não precisaria comprovar que houve dolo ou culpa por parte do agente causador do dano.

Seguindo-se a teoria do risco administrativo, a responsabilidade civil estatal parte do pressuposto que a atividade administrativa gera constantes e pulverizados riscos, e que se o administrador possui prerrogativas no exercício da atividade administrativa, deve também arcar com os ônus advindos dos riscos inerentes à atividade. Admite excludentes de responsabilidade, como nas hipóteses de fato exclusivo da vítima, fato exclusivo de terceiro, caso fortuito ou força maior.

Conforme aduz Sílvio Rodrigues (2002, p. 10):

A teoria do risco é a da responsabilidade objetiva. Segundo essa teoria, aquele que, através de sua atividade, cria risco de dano para terceiros deve ser obrigado a repará-lo, ainda que sua atividade e seu comportamento sejam isentos de culpa. Examina-se a situação, e, se for verificada, objetivamente, a relação de causa e efeito entre o comportamento do agente e o dano experimentado pela vítima, esta tem direito de ser indenizada por aquele.

Nesse mesmo sentido Gonçalves (2003, p. 29):

Uma das teorias que procuram justificar a responsabilidade objetiva é a teoria do risco. Para esta teoria, toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a ideia de risco, ora encarada como ‘risco-proveito’, que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ubi emolumentum, ibi onus).

Dentro da teoria do risco administrativo, há a chamada teoria do risco integral, que segundo Helly Lopes Meirelles é uma modalidade extremada em que a Administração ficaria obrigada a indenizar qualquer dano suportado por terceiros, e embora haja doutrinadores que defendem tal posicionamento, a teoria do risco integral é impraticável na responsabilidade civil do Estado, por tratar-se de um modelo que transformaria o Estado em uma espécie de “seguradora”.

 Por fim, a responsabilidade civil do Estado chega ao patamar objetivo, e passa a exigir somente a comprovação do dano, da conduta e do nexo causal, elidindo a necessidade de comprovação do dolo ou da culpa, podendo derivar de ato lícito ou ilícito. Calcada na teoria do risco administrativo, a responsabilidade civil objetiva do Estado ganha força com o advento da Constituição Federal de 1946, permanecendo nos textos constituicionais desde então.

Assim, a responsabilidade objetiva do Estado baseia-se no princípio da impessoalidade, em que os agentes a serviço da administração agem em nome do próprio Estado, contexto que tende a ampliar-se com o fenômeno da desconcentração administrativa, em que a responsabilidade do Estado explica-se pela teoria do órgão, ou da imputação volitiva, sendo o estado responsável por todos os atos de cada um dos seus agentes.

O princípio que fundamenta a responsabilidade objetiva do Estado é o princípio da repartição dos encargos, que determina que o prejuízo causado a uma pessoa deva ser indenizado por toda a coletividade, deve ser repartido, através dos cofres públicos (CARVALHO FILHO, 2014, p. 556-557).

Na atual Constituição Federal, de 1988, a responsabilidade civil do Estado está prevista no art. 37, §6º, da Constituição Federal. Mas se legislativamente a regra é a responsabilidade objetiva, a doutrina e a jurisprudência relativizam a noção proposta na Constituição Federal para os casos de omissão. Assim, a responsabilidade objetiva estatal se dá em casos comissivos; quanto às omissões, é pacífico o entendimento de que a responsabilidade é subjetiva, a chamada teoria da culpa do serviço, devendo haver comprovação da conduta, do nexo causal, do dano e do descumprimento do dever legal de agir por parte do Estado, para fazer nascer o dever de indenizar.

Contudo, nem toda conduta omissiva do Estado será um descumprimento do dever legal de agir, e nessa hipótese não configurará a responsabilidade estatal. Não basta a mera relação entre dano e a ausência de serviço estatal (MELLO, 2004, p. 447).

Nesse sentido a jurisprudência atual é pacífica:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS - MUNICÍPIO DE MONTES CLAROS - ÓBITO DECORRENTE DE QUEDA DE PALANQUE - PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS - AUSENCIA DE VÍCIO NA ESTRUTURA METÁLICA - CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA - INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 37, §6º, DA CF - DANO NÃO DECORRENTE DE QUALQUER CONDUTA COMISSIVA OU OMISSIVA IMPUTADA AO MUNICÍPIO - DEVER DE INDENIZAR INEXISTENTE - RECURSO DESPROVIDO. Em regra, é objetiva a responsabilidade dos Entes Públicos, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88, porém, tratando-se de fato danoso por omissão, decorrente da "faute du service", é firme o entendimento da doutrina e jurisprudência pátria no sentido de que a teoria a se aplicar será a Teoria da Culpa Administrativa. Necessária, pois, nos casos em que os danos não são causados por conduta comissiva do Estado, a comprovação de que ele se omitiu no cumprimento do dever legal de obstar o ato lesivo, seja pela falta do serviço ou pela sua prestação ineficiente para que reste caracterizado seu dever de reparação. Evidenciada a ocorrência do dano, mas a ausência de qualquer conduta comissiva ou omissiva do Município que tenha conduzido a tal ocorrência, haja vista que esse não agiu ativamente para sua realização, nem tampouco, foi imperito, negligente ou imprudente, cumprindo todas as cautelas na realização do serviço de sua alçada, manifesta é a inexistência do preenchimento dos elementos necessários à caracterização da responsabilidade civil que incorra no dever de indenizar. (TJMG -  Apelação Cível  1.0433.11.003975-0/001, Relator(a): Des.(a) Amauri Pinto Ferreira , 3ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/11/2016, publicação da súmula em 16/12/2016)

Assim, cumpre resumir que a responsabilidade civil do Estado tem natureza extracontratual, pois não advém de uma relação contratual prévia, e que atualmente subsistem a responsabilidade objetiva para as ações e subjetiva para as omissões do Estado. Dessa forma, vê-se que a responsabilidade estatal evoluiu no direito de forma a prestigiar princípios e valores sociais, mais voltada à dignidade da pessoa humana enquanto pilar fundamental da estrutura de um Estado Democrático de Direito.


3 OS DIREITOS DA PESSOA PRESA E A CRISE NO SISTEMA CARCERÁRIO

Ao ser privado da sua liberdade, o indivíduo preso continua sendo um cidadão, sujeito de direitos. Preconiza a Constituição Federal, o art. 3º da Lei nº7. 210/84 e o art. 38 do Código Penal que ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei, deixando claro que a pessoa encarcerada continua sendo sujeito de direitos e que deve ter sua integridade física e moral preservada pelas autoridades que lidam com o preso (art. 38, CP e art. 40 da Lei nº 7.210/84).

Não obstante a previsão no ordenamento jurídico brasileiro, diversos diplomas internacionais demonstram a preocupação com o tratamento da pessoa presa, de forma a assegurar o mínimo de dignidade existencial àquele que está subjugado à custódia estatal, privado de sua liberdade, como as regras de Mandela (Mandela rules), as regras mínimas das nações unidas para o tratamento de presos.

Desde 1955 o documento internacional que regia o tratamento do preso eram as “Regras Mínimas para o Tratamento de Presos”, que em 2015 foi revista e revigorada, prestigiando mais a dignidade da pessoa humana, buscando servir de parâmetro à reestruturação do sistema prisional atual: foram as chamadas “Regras de Mandela”, incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro ainda em 2015.

 Mesmo privado de liberdade, o preso tem direitos como educação, saúde, assistência jurídica, trabalho remunerado e um tratamento digno, livre de qualquer violência. O artigo 5º XLIX da CRFB/88, assegura aos presos o respeito à integridade física e moral, e a Lei de Execuções Penais em seu art. 41 determina que o Estado tem obrigação de prestar ao preso assistência material, médica, jurídica, educacional, social, religiosa e ressocializadora, e que tais direitos se estendem, no que couber, ao preso provisório e ao submetido à medida de segurança, conforme disposição do art. 42 da LEP.

A assistência material, nos termos do art. 41, I da LEP, se consubstancia no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas, devendo alojamento, conforme dispõe o art. 88 ser em cela individual, com dormitório, aparelho sanitário e lavatório, em condições de salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado e área mínima de 6,00 M² (seis metros quadrados).

Contudo, qualquer cidadão de conhecimento médio, mesmo que nunca tenha entrado em um presídio, sabe que isso não condiz com a realidade. A atual situação carcerária conta com uma população de 726.712 presos[1], número demasiadamente superior à capacidade do sistema, o que ocasiona a superlotação dos presídios, tornando-se impossível a manutenção de condições higiênicas da acomodação dos detentos.

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A assistência médica, farmacêutica e odontológica prediz o dever do Estado em fornecer ao preso tratamento necessário à preservação da sua saúde, mas a realidade dos presídios brasileiros é a ausência de profissionais e de materiais para o atendimento aos presos, que não raras vezes tem um quadro de doença agravado devido a demora no atendimento ou ao não atendimento, não sendo incomum a morte de detentos que poderiam ser evitadas com um pronto e eficaz atendimento médico.

A assistência jurídica, disposta no art. 41, VII da LEP, é destinada àqueles que não possuem recursos para contratar um advogado, e em regra é prestada pela Defensoria Pública, e a assistência Educacional consubstancia-se no dever do Estado de fornecer fundamental e profissional, bem como a necessidade de bibliotecas nas unidades prisionais, sendo que na realidade nem todos os estabelecimentos prisionais possuem bibliotecas, e quando as tem, são demasiadamente sucateadas.

A assistência religiosa, também prevista no art. 41, VII da LEP, prevê a liberdade de culto e locais apropriados para as manifestações religiosas dentro dos presídios, bem como a não obrigação ao detento de participar de atividades religiosas, respeitando também o direito de não crença.

Já a assistência social, também referida no inciso VII do art. 41 da LEP, deve amparar o preso e sua família, promover recreação, e prepará-lo para o retorno à vida em sociedade; e a assistência ao egresso deve orientar o processo de ressocialização e reintegração do ex-detento ao convívio social, orientando, concedendo alojamento, alimentação ou auxílio financeiro de forma a auxiliá-lo no processo de readaptação.

O art. 82, § 1° da LEP prevê que a mulher e o maior de sessenta anos, serão recolhidos separadamente dos outros presos, em estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal, direito esse frequentemente desrespeitado no atual sistema carcerário brasileiro.

Mas os direitos do preso não se exaurem nos acima referidos, bem como o presente tópico não intenta esgotá-los, e embora devessem ser incisivamente observados e garantidos, a realidade caminha em uma direção diametralmente oposta.

O crescimento exponencial da população carcerária nos últimos anos e o descaso estatal com a adequação do sistema prisional para comportar o aumento populacional levou à caótica situação atual do sistema carcerário, em que os presídios, os invés de serem espaços de preparação para o retorno à vida em sociedade, acabam se tornando verdadeiras masmorras onde o Estado despeja o indesejável ao convívio social.

Nesse sentido Dassi (2013, online):

No panorama brasileiro, o estado desordenado do sistema carcerário constitui-se mais um dos efeitos da falência dos paradigmas da modernidade. A prisão serve tão-somente para deportar do meio social aqueles indivíduos que representam um risco à sociedade. Na perspectiva foucaultiana, constitui-se um instrumento utópico de ressocialização, criado para atender aos interesses capitalistas. Ela exclui do ângulo de  visibilidade as mazelas sociais, mas não recupera o infrator e não contribui para diminuir as práticas criminosas. Estabelecendo um confronto entre as disposições legais e a realidade, observa-se que os requisitos mínimos da boa condição penitenciária, preconizados pela legislação penal brasileira estão longe de serem cumpridos. Para esta constatação, basta um breve olhar sobre as prisões existentes no país.

A realidade carcerária atual, estampada na mídia diariamente, demonstra o descaso estatal com os indivíduos presos, que resulta em mortes, suicídios, brigas de facções rivais dentro dos estabelecimentos prisionais e constantes rebeliões violentas que culminam na morte de detentos e de reféns inocentes, que implodem perante a inércia do poder público.

Qualquer noção de humanidade em relação à privação da liberdade do indivíduo pelo Estado sucumbe na realidade vivenciada diametralmente oposta aos pressupostos e princípios constitucionais, em especial, a dignidade da pessoa humana. A cultura do hiperencarceramento e a resistência às alternativas penais aliadas às limitações orçamentárias e jogos políticos criam um impasse à humanização das condições carcerárias e integração social, dificultando a reestruturação do sistema e perpetuando sua ineficácia enquanto mecanismo de controle social.

Há muito tempo doutrinadores já vêm defendendo a falência da pena de prisão como instrumento ressocializador e frente à realidade carcerária brasileira é praticamente impossível que o quadro de violação constante e generalizada da dignidade da pessoa humana capacite alguém para voltar ao convício social saudável.

Em seus ensinamentos, Cezar Roberto Bitencourt (2001, p. 15) traz os posicionamentos que divergem quanto à prisão:

Com a notável, exceção de Bernard Shaw, os defensores da reforma penal, em sua maioria, de John Howard em diante, recusaram ver que os males da prisão são inseparáveis da própria prisão. Pelo contrário, presumiram que a prisão é uma instituição indispensável e potencialmente boa e útil. Esta presunção nós contestamos. Acreditamos que pode haver solução realmente civilizada para o problema da prevenção do crime, enquanto sobreviver o sistema de prisão.

A falência da pena de prisão reside exatamente na sua ineficácia, na sua incapacidade de servir como instrumento de pacificação social ou de ressocialização, transformando-se em um nítido espaço de desova dos indesejáveis. O problema, é que esses indivíduos socialmente “indesejáveis” retornam à sociedade, não raras vezes ainda piores.

Quanto à prisão e à vida no cárcere Thompson (2002, p. 58-59):

Confinados contra a vontade, devem viver em condições não criadas por eles que se qualificam como degradantes. (...) Em vista de tais condições, torna-se fácil compreender porque os internos de um estabelecimento carcerário alimentam uma ideologia hostil contra a administração. 

As condições prisionais fazem nascer no indivíduo uma hostilidade, um desprezo pela ordem, pela sociedade e pelo Estado, o que se torna elemento fomentador da criminalidade quando associado à dificuldade em se readaptar a vida em sociedade e a carência de oportunidade, o que inevitavelmente, levará à reincidência.

Nesse sentido Thompson (2002, p. 95-96):

Imaginemos um preso novo, inexperiente da prisão ao nela adentrar. (...) Dentro de algum tempo compreende que ou se adapta à sociedade na qual foi lançado, assumindo um dos papeis sociais disponíveis, ou sofrerá padecimentos insuportáveis. Prizonisar-se será, normalmente a solução. Presonização corresponde à assimilação dos padrões vigorantes na penitenciária, estabelecidos pelos internos mais endurecidos, mais persistentes e menos propensos a melhoras. Adaptar-se à cadeia significa, em regra, adquirir qualificações e atitudes do criminoso habitual. Na prisão. Pois, o interno mais desenvolverá a tendência criminosa que trouxe do lado de fora do que a anulará ou suavizará.

A realidade carcerária demonstra ao preso que se adaptar ao mundo do crime dentro da penitenciária é questão de sobrevivência, estilo de vida que tende a dar continuidade quando retorna ao convívio social.

Por isso, a pena de prisão demonstra-se ineficaz e de finalidade duvidosa Bitencourt (2001, p. 15-16):

A prisão é um castigo; com exceção da pena de morte, é a mais severa sanção de que dispõe a legislação criminal. E castigo, a menos que o dicionário minta, é retribuição. Esses fatos, talvez evidentes sejam por nós proclamados enfaticamente porque existe, entre os penalistas contemporâneos, a tendência de atenuar o primeiro deles a fim de negar o segundo. Contudo, ninguém pode livrar-se de algo inconveniente simplesmente dizendo que não existe. Se retribuição é um eufemismo de vingança ou uma expressão de justa desaprovação, é coisa variável de acordo com as circunstâncias e sempre sujeita a dúvida. Seja qual for o caso, porém, retribuição é sem dúvida uma forma de represália: um pagamento que a sociedade cobra em moeda de sofrimento, grande ou pequeno, seja morte, prisão, multa ou o que quiserem. (...) As sanções criminais são, naturalmente usadas para outras finalidades além de retribuição.

Mas sem embargos das pertinentes críticas à pena prisão, encontrar a solução para o problema do sistema carcerário não é tarefa fácil. Entre a melhoria do sistema carcerário e a extinção das penas de prisão as soluções parecem sempre esbarrar nos limites orçamentários do Estado e na necessidade de passar à sociedade um sentimento falacioso de segurança.

O Direito Penal Brasileiro encontrou então um meio termo nas penas alternativas introduzidas na legislação brasileira, no sistema progressivo de penas e em alguns institutos despenalizadores como a transação penal e a suspensão condicional do processo. Derivados da teoria do etiquetamento (labelling approach), esses institutos visam a desinstitucionalização do delinquente, mas atingem uma pequena parcela da população delinquente, por isso não surtiu efeitos expressivos no Sistema carcerário.

Indagando-se acerca da solução Bitencourt (2001, p. 31-32).

Qual é então a solução? Continuar mantendo o sistema presidiário com “melhoramentos” de fachada, - que envolvem a despesa de milhões de libras em novos edifícios afim de eliminar o evidente mal da superlotação pelo qual é em grande parte responsável uma má orientada política de sentenças – só pode acentuar que a punição por prisão é praticamente ruinosa e não pode alterar o fato de ser ela moralmente errada. Nós estamos convencidos de que se chegar um dia a ser desenvolvida uma política penal construtiva, terá de ser mediante ação legislativa para abolir a prisão como sanção da justiça criminal. (...) estamos inteiramente de acordo com a tese de John Stuart Mill de que “o único propósito para o qual o poder pode ser com razão exercido sobre qualquer membro de uma sociedade civilizada contra sua vontade é impedir dano a outros”.  Sustentamos que nada do que um indivíduo faz deve estar sujeito à interferência da lei criminal a menos que cause, ou seja, capaz de causar dano substancial a outras pessoas individual ou coletivamente.  Consideramos que são essenciais a prevenção do crime outros meios além da dissuasão. Entre eles se inclui eliminação de incentivos ao crime, como fatores ambientais e a assistência e orientação aos infratores individuais em condição de liberdade. Finalmente, reconhecemos que a sociedade deve conservar o direito de privar uma pessoa da liberdade, se, em razão da natureza de seu crime ou de seus antecedentes criminais, for possível considera-la com justiça como uma contínua ameaça ao bem-estar público. Todavia, consideramos que tal pessoa “da mesma maneira que o demente” não deve ser encarada como responsável nem punível e que a sociedade deve assumir a obrigação de fazer tudo a seu alcance para ajustá-la à liberdade.

Uma prova de que o cenário prisional está em situação calamitosa é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal que pede a declaração do “estado de coisa inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro, a fim de tirar da inércia todos os poderes estatais para uma melhoria razoável no quadro caótico evidente que se instalou no sistema carcerário.

Ainda pendente de julgamento, mas já tendo sido manifestado o estado de coisa inconstitucional em sede liminar, fica demonstrado o estado deplorável do sistema carcerário no Brasil, frente à violação constante e generalizada de direitos. A situação requer um conjunto robusto de medidas, e o reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional”, ainda que produza um efeito muito mais simbólico do que efetivo.

Enquanto isso, o resultado do sistema carcerário são mortes constantes e indivíduos que saem do sistema penitenciário desumanizados, desacreditados, e prontos a delinquir novamente, restando ao preso e às famílias, recorrer à justiça para responsabilizar o Estado a indenizar o dano sofrido em um sistema mecânico, cruel e degradante.

3.1 A responsabilidade civil do Estado PELAS CONDIÇÕES DE VIDA DO PRESO

A partir do julgamento do Recurso Extraordinário nº 580252, com a devida repercussão geral reconhecida, o Supremo Tribunal Federal, em 16 de fevereiro de 2017, decidiu que o preso submetido à situação degradante e a superlotação no sistema carcerário tem direito a indenização por danos morais a ser paga pelo Estado, fixando-se o quantum indenizatório, no referido caso, em R$ 2 mil reais.

O referido recurso, interposto pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul (DP-MS), buscava indenização por danos morais em favor de um condenado a 20 anos de reclusão, cumprindo pena no presídio de Corumbá (MS), em razão das condições sub-humanas às quais foi submetido durante o cumprimento de pena.

O relator, Ministro Teori Zavascki, acompanhado pelo plenário, ressaltou em seu voto que a jurisprudência do Supremo reconhece a responsabilidade do Estado pela integridade física e psíquica daqueles que estão sob sua custódia, entendendo pelo dever de indenizar o preso em razão da rotineira violação de seus direitos fundamentais.

Conforme se afere da referida jurisprudência:

Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão Geral. Constitucional. responsabilidade civil do Estado. Art. 37, § 6º. 2. Violação a direitos fundamentais causadora de danos pessoais a detentos em estabelecimentos carcerários. Indenização. Cabimento. O dever de ressarcir danos, inclusive morais, efetivamente causados por ato de agentes estatais ou pela inadequação dos serviços públicos decorre diretamente do art. 37, § 6º, da Constituição, disposição normativa autoaplicável. Ocorrendo o dano e estabelecido o nexo causal com a atuação da Administração ou de seus agentes, nasce a responsabilidade civil do Estado. 3. "Princípio da reserva do possível". Inaplicabilidade. O Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, enquanto permanecerem detidas. É seu dever mantê-las em condições carcerárias com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir danos que daí decorrerem. 4. A violação a direitos fundamentais causadora de danos pessoais a detentos em estabelecimentos carcerários não pode ser simplesmente relevada ao argumento de que a indenização não tem alcance para eliminar o grave problema prisional globalmente considerado, que depende da definição e da implantação de políticas públicas específicas, providências de atribuição legislativa e administrativa, não de provimentos judiciais. Esse argumento, se admitido, acabaria por justificar a perpetuação da desumana situação que se constata em presídios como o de que trata a presente demanda. 5. A garantia mínima de segurança pessoal, física e psíquica, dos detentos, constitui dever estatal que possui amplo lastro não apenas no ordenamento nacional (Constituição Federal, art. 5º, XLVII, “e”; XLVIII; XLIX; Lei 7.210/84 (LEP), arts. 10; 11; 12; 40; 85; 87; 88; Lei 9.455/97 - crime de tortura; Lei 12.874/13 – Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), como, também, em fontes normativas internacionais adotadas pelo Brasil (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966, arts. 2; 7; 10; e 14; Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, arts. 5º; 11; 25; Princípios e Boas Práticas para a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas – Resolução 01/08, aprovada em 13 de março de 2008, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Convenção da ONU contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984; e Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros – adotadas no 1º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção ao Crime e Tratamento de Delinquentes, de 1955). Fixada a tese: “Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento”. 8. Recurso extraordinário provido para restabelecer a condenação do Estado ao pagamento de R$ 2.000,00 (dois mil reais) ao autor, para reparação de danos extrapatrimoniais, nos termos do acórdão proferido no julgamento da apelação. (RE 580252, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 16/02/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017)

Nesse sentido, o STF rechaçou o argumento estatal da reserva do possível: Argumentou o Poder público, que ainda que a situação carcerária no Brasil seja inegavelmente inadequada, a melhoria imediata das condições às quais os presos são submetidos esbara na teoria da reserva do possível.

A partir da referida teoria, entende-se que a aplicabilidade dos direitos possui inúmeros custos de ordem econômica e que deve-se observar a capacidade financeira do Estado em arcar com os custos, não podendo exigir do Poder público uma realização que exorbite seus limites financeiros. Assim, segundo a teoria da reserva do possível, a concretização dos direitos dos indivíduos presos estaria condicionada à capacidade dos cofres públicos.

Mas o entendimento do plenário feriu o argumento da reserva do possível, na medida em que não pode tal teoria ser utilizada quando o que se reclama é o mínimo existencial inerente à dignidade da pessoa humana.

Conforme se afere de trecho do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, que seguiu o argumento do Ministro relator:

Devo dizer, desde já, que adoto integralmente as premissas fixadas no voto do Ministro relator. O Estado tem o dever de indenizar os danos morais causados pelo encarceramento em condições atentatórias aos mínimos padrões de dignidade. Não se pode invocar a teoria da reserva do possível ou outros subterfúgios teóricos para afastar a responsabilidade civil do Estado na hipótese. Isso implicaria negar a uma minoria estigmatizada a titularidade de seus direitos mais elementares à integridade física e moral, a não submissão a tratamento desumano ou degradante e a penas cruéis, em frontal violação à Constituição. Seria, portanto, legitimar uma concepção desigualitária a respeito da dignidade humana, que nega aos presos o seu valor intrínseco, como se não se tratasse de seres humanos. Essa compreensão deve ser amplamente rejeitada por este Supremo Tribunal Federal.

Dessa forma, o plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu imperioso o dever do Estado em indenizar o preso submetido à condições de vida degradantes durante o tempo que esteve sob sua custódia, fixando a tese: “Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento”, entendendo-se pela proteção dos direitos humanos da pessoa presa.

De igual modo, a partir do julgamento do Recurso Extraordinário nº 841526, com repercussão geral reconhecida, o Supremo Tribunal Federal, em 30 de março de 2017 decidiu que o Estado tem responsabilidade sobre morte de detento em estabelecimento penitenciário quando houver inobservância do seu dever específico de proteção.

O referido Recurso Extraordinário fora interposto por família de detento que faleceu na Penitenciária Estadual de Jacuí, no estado do Rio Grande do Sul, em decorrência de asfixia mecânica, não ficando comprovado se em razão de suicídio ou homicídio.

O argumento levantado pelo estado através do Procurador de Justiça Victor Herzer, não seria possível atribuir responsabilidade ao estado tendo em vista que não se sabe se a morte se deu voluntária ou involuntariamente, ou seja, se foi suicídio ou homicídio (BRASIL, 2016).

Contudo, entendeu o relator Luiz Fux, seguido pelos demais ministros, que o estado tem o dever de zelar pela integridade física do preso que está sob sua custódia, independendo, até mesmo, se a morte se deu em decorrência de homicídio ou suicídio, pois ambas as hipóteses insurgem, de alguma forma, a omissão estatal em garantir a integridade física da pessoa presa.

Nesse sentido foi o julgado:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. responsabilidade civil do Estado POR MORTE DE DETENTO. ARTIGOS 5º, XLIX, E 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral. 2. A omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o Poder Público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso. 3. É dever do Estado e direito subjetivo do preso que a execução da pena se dê de forma humanizada, garantindo-se os direitos fundamentais do detento, e o de ter preservada a sua incolumidade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal). 4. O dever constitucional de proteção ao detento somente se considera violado quando possível a atuação estatal no sentido de garantir os seus direitos fundamentais, pressuposto inafastável para a configuração da responsabilidade civil objetiva estatal, na forma do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. 5. Ad impossibilia nemo tenetur, por isso que nos casos em que não é possível ao Estado agir para evitar a morte do detento (que ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causalidade, afastando-se a responsabilidade do Poder Público, sob pena de adotar-se contra legem e a opinio doctorum a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional. 6. A morte do detento pode ocorrer por várias causas, como, v. g., homicídio, suicídio, acidente ou morte natural, sendo que nem sempre será possível ao Estado evitá-la, por mais que adote as precauções exigíveis. 7. A responsabilidade civil estatal resta conjurada nas hipóteses em que o Poder Público comprova causa impeditiva da sua atuação protetiva do detento, rompendo o nexo de causalidade da sua omissão com o resultado danoso. (RE 841526, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 30/03/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-159 DIVULG 29-07-2016 PUBLIC 01-08-2016)

Assim, tem-se que a responsabilidade civil do Estado, nos casos de omissão, é subjetiva, devendo-se comprovar o dano, o nexo de causalidade e a conduta, bem como a violação do dever de agir por parte do agente estatal. Dessa forma, para que se configure a responsabilização estatal por morte do detento, é preciso comprovar que o poder público poderia e deveria ter agido para evitar o dano e não o fez.

A responsabilidade civil do Estado, de modo geral, faz nascer o dever de indenizar por parte do poder público. No caso da pessoa presa, seja pelas condições sub-humanas de existência no cárcere ou por morte do preso durante o tempo em que está sob custódia do Estado, a responsabilidade civil estatal se consubstanciará em compensação pecuniária pelo dano sofrido.

Já é certo e sabido que o dano moral busca uma compensação proporcional ficta, visto que é técnica e logicamente impossível quantificar pecuniariamente a dor, a perda sentimental, o sofrimento, o constrangimento, a humilhação. Mas se a compensação do dano se dá mediante pagamento em dinheiro, ainda assim pode o instituto indenizatório de alguma forma contribuir para a melhoria do sistema carcerário brasileiro e para o sistema de justiça criminal.

A indenização é instituto que busca proporcionalidade, visando equilibrar uma quantia que seja suficiente para compensar o dano sem findar-se em um enriquecimento ilícito por parte da vítima, bem como, por outro lado visa chegar a um valor que não seja excessivamente oneroso ao causador dano, mas que cumpra o efeito dissuasório, de forma a não estimular a reiteração da prática geradora do dano.

Nesse sentido, o pagamento de indenizações através dos cofres públicos, pode compelir o poder público à melhoria das condições de vida no sistema carcerário, de forma a evitar prejuízos ao erário através de múltiplas indenizações. Servirá também de alarme à administração, evidenciando que o descaso com o sistema penitenciário pode gerar prejuízos razoáveis ao Estado, sendo uma possível forma de tirar da inércia os poderes capazes de reestruturar o sistema.

Consequentemente, o efeito dissuasório das indenizações, ao compelir o poder público à melhoria das condições do sistema carcerário, tende a apreciar como consequência uma possível diminuição da criminalidade.

Isso aconteceria, porque, embora a pena privativa de liberdade busque como uma de suas finalidades a ressocialização do preso, muitos condenados voltam a delinquir após a soltura, bem como tendem a evoluir na criminalidade, tendo em vista que as condições de vida dentro do sistema penitenciário consubstanciam-se em um emaranhado de circunstâncias negativas e aprendizado da criminalidade, uma contaminação coletiva, corrompendo ao invés de ressocializar, o que contribui significativamente para a reincidência dos condenados, e consequente para o aumento da criminalidade.

Cabe ressaltar que embora a indenização do Estado por danos causados ao preso possa apresentar efeitos dissuasórios sobre o poder público de forma a estimular a melhoria das condições de vida no cárcere, não é esta a medida ideal.  Se a necessidade de melhorias no sistema carcerário é notória e evidente, cabe ao poder público agir, buscando a melhoria, a reestruturação das políticas carcerárias, pelo que não deveria ser necessária uma quantidade razoável de indenizações para retirar da inércia o Estado.

Mas como o Sistema carcerário brasileiro passa ao largo de qualquer noção de razoabilidade, as referidas indenizações, além de (tentar) reparar o dano sofrido pelo preso, pode ter como efeito secundário um estímulo à melhoria das condições de vida do preso e a observância de sua dignidade enquanto pessoa humana sob custódia integral do Estado.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Whathila Costa Ramos. Responsabilidade civil do Estado na integridade física do preso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5874, 1 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72421. Acesso em: 28 mar. 2024.

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