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A judicialização da doença no domínio público e a reserva do impossível:

brevíssimo ensaio sobre direito, orçamento, escassez e escolha

04/07/2019 às 16:30
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Nessa miscelânea de direito, orçamento, escassez e escolha, que postura deverá adotar o juiz?

Impõe-se esclarecer, aqui, nesse exíguo espaço, o título do presente ensaio, considerando, a propósito, o uso intencional de expressões pouco usuais no ambiente jurídico e acadêmico. Isso não significa, certamente, que a nomenclatura adotada seja fruto de excentricidade ou irreverência. Pelo contrário, as palavras que compõem o título foram criteriosamente selecionadas e representam o mundo do ser, isto é, a realidade subjacente às normas que buscam consagrar e disciplinar o direito social à saúde (art. 6º, caput, e art. 196, CF), bem como a sua concretização[1].

Tornar efetivos os direitos sociais é tarefa hercúlea que exige diálogo e cooperação de toda a coletividade. Afinal, de acordo com Oscar Vilhena Vieira (2017, p. 24):

... o papel dos direitos é assegurar esferas de autonomia e dignidade para os kantianos, ou de interesses, para os utilitaristas, que permitam aos seres humanos se relacionarem e conviverem sem que essa liberdade ou que esses interesses se encontrem constantemente ameaçados pelas liberdades e interesses dos demais.

A bem da verdade, o direito social à saúde tem um papel muito mais amplo que aquele retratado nas demandas cotidianamente ajuizadas para o fim de obter determinado fármaco ou tratamento médico do Poder Público, inclusive em caráter liminar.

Um projeto municipal envolvendo a educação e a prática de modalidades esportivas atende, à evidência, diversos direitos sociais constitucionalmente assegurados, incluindo-se, dentre eles, a saúde pública. Decerto, uma população que pratica esportes, cuidará mais da sua saúde, de sorte a reduzir, por exemplo, o índice de doenças relacionadas ao sedentarismo. A ampliação do saneamento básico até os rincões mais carentes do País é outra medida capaz de diminuir exponencialmente estatísticas perversas de doença e mortalidade.

Outro exemplo ou plano de ação é o “Programa de Fortalecimento das Entidades Privadas Filantrópicas e das Entidades sem Fins Lucrativos que atuam na Área da Saúde e que Participam de Forma Complementar do Sistema Único de Saúde – PROSUS” instituído pela Lei nº 12.873/2013. 

Contudo, o que se vê, na prática, é a judicialização da doença e não da saúde. Nesse sentido, é a doença e não a saúde o tema central destas demandas.

Como se percebe com certa facilidade, essa assertiva, ao fim e ao cabo, traz em si uma provocação. Salvo melhor juízo, é evidente que doença e saúde são dois lados da mesma moeda, mas a ênfase das políticas públicas tem se limitado, de maneira geral, ao combate da primeira e não à difusão da segunda. Não é à toa, portanto, que a população brasileira sofre com doenças que, há muito, deveriam estar erradicadas.

Nas palavras de Gustavo Amaral (2010, p. 10-11):

O surgimento da AIDS com características epidêmicas colocou um número cada vez maior de pessoas jovens com uma sentença de morte lenta e degradante, acompanhada de um estigma de reprovação social, já que no imaginário coletivo, de início, a doença era associada à promiscuidade no uso de drogas injetáveis ou em condutas homossexuais. A doença vitimou pessoas de projeção no mundo artístico, inclusive fora do estereótipo, gerando certa comoção e movimentos de pressão não só pela prevenção, mas também para assegurar uma sobrevida digna aos doentes. Essa pressão, como dificilmente poderia deixar de ser, gerou demandas judiciais que se valeram da previsão constitucional inserida no já citado artigo 196.

Nesses casos, os magistrados viam-se na difícil situação de se confrontarem com a possibilidade de negar remédios indispensáveis à sobrevida não de “alguém”, mas de uma pessoa com nome, sobrenome, identidade e inscrição no cadastro de pessoas físicas. Do outro lado, encontrava-se o Poder Público, com recursos sabidamente mal empregados e, algumas vezes, defendido em juízo com argumentos que soavam insignificantes ante uma vida humana determinada, como, por exemplo, tratar-se de matéria incluída na discricionariedade administrativa ou mesmo mais prosaicas, como depender a aquisição do medicamento para a sobrevida do paciente do término de procedimento licitatório ainda em curso.

O surgimento de liminares aqui ou ali empolgou os interessados, sejam doentes, sejam grupos de apoio, a ajuizar demandas, que paulatinamente foram sendo atendidas e, no esteio, portadores de outras moléstias foram sendo atendidos. Evidentemente, é bastante difícil para qualquer pessoa dizer não em um caso sabendo que disso pode resultar a perda de uma vida.

Em complemento, André Karam Trindade e Rafael Tomaz de Oliveira (2017, p. 225) destacam que:

As democracias contemporâneas têm assistido a uma constante e progressiva expansão do Poder Judiciário sobre o campo da política e das relações sociais. Os Tribunais, especialmente aqueles que desempenham uma função estratégica na sedimentação da interpretação da Constituição, mostram-se, cada vez com mais nitidez, como atores políticos, produzindo fortes intervenções no campo das relações interinstitucionais (tanto com injunções no âmbito do Legislativo, como como com decisões que chegam ao limite da ingerência com relação ao Executivo) ou mesmo com interferências decisivas em debates públicos sobre temas comportamentais de grande apelo midiático.

Diante desse quadro, as referidas liminares continuarão a ser deferidas enquanto não houver um grande e profícuo debate sobre a velha celeuma. Entre as suas propostas para enfrentar a problemática, Angélica Carlini (2014, p. 193) sugere a criação de Câmaras Técnicas ou Núcleos de Assessoria Técnica, a fim de que o assunto levado à heterocomposição seja analisado previamente “por médicos especializados ou médicos auditores que encaminharão um relatório ao magistrado que, por sua vez, decidirá a partir da análise de todos os dados existentes no processo e à luz do direito”.

Atento ao gasto anual bilionário do Ministério da Saúde resultante da judicialização da doença pública, o Conselho Nacional de Justiça aprovou em setembro de 2016:

... a Resolução n. 238, determinando regras para a criação e a manutenção de comitês estaduais de saúde, bem como a especialização de varas em comarcas com mais de uma vara de fazenda pública. Entre as atribuições dos comitês está a de auxiliar os tribunais na criação dos Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS), constituídos de profissionais da saúde, para elaborar pareceres acerca da medicina baseada em evidências. (In: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84538-laudo-para-ajudar-juizes-em-causas-de-saudecomeca -a- ser-utilizado-em-maio. Acesso: 11 de dezembro de 2018).

E por que reserva do impossível? Ora, como se sabe, a “reserva do possível” é tese de defesa comumente levantada pelo Poder Público em controvérsias envolvendo a judicialização da saúde e muitas outras que, de um modo ou de outro, afetam o erário.

De um lado, os avanços tecnológicos nas ciências médicas e, de outro, a falta de políticas públicas destinadas à difusão da saúde, a conhecida escassez de recursos, a gestão administrativa ineficiente, a quebra de estados federados e a corrupção institucionalizada[2], conduzem inexoravelmente ao incremento das ações judiciais desse jaez.

Nas palavras de Eduardo Bastos Furtado de Mendonça (2010, p. 294):

No caso da saúde, exemplo dado, já existe uma imensa estrutura física disponível e é notório o déficit de financiamento (o que não quer dizer que o problema se resuma a isso). Não violaria a competência do Poder Executivo que o Congresso desenvolvesse um estudo acerca das dificuldades de caixa experimentadas pelas diferentes unidades de saúde e instituísse dotações orçamentárias para superar ou amenizar o problema. Tudo isso sem criar novos hospitais, promover contratações ou modificar a política remuneratória. Embora essas medidas sejam importantes, há muitas outras necessidades que dependem de recursos, relacionadas à manutenção eficaz da estrutura já existente.

Suprir órgãos públicos com verbas indispensáveis ao desempenho regular de suas funções não seria uma ingerência indevida do Poder Legislativo. Ao contrário, parece uma opção inerente à competência para deliberar sobre o orçamento (e não somente para aprová-lo em bloco, como em outras épocas). Simplesmente não é admissível que o Poder Executivo reivindique um suposto direito de deixar à míngua os órgãos e entidades por ele mesmo criados, muitas vezes para o atendimento de direitos fundamentais. O funcionamento de um hospital público em condições precárias não é uma opção discricionária da Administração. A criação de uma nova unidade talvez seja, assim como o fechamento das já existentes. Mais uma vez que estejam em operação, essas estruturas estão submetidas a diversas normas constitucionais, começando pelo princípio da eficiência.

Nesse contexto, não é crível, realmente, falar em reserva do possível, ao passo em que o Estado carece de recursos financeiros, ou melhor, não os administra honesta ou adequadamente para cumprir com os deveres impostos pelo Poder Judiciário à luz do direito fundamental à saúde.

Com toda certeza, o atual estado da arte é autofágico, exigindo, via de consequência, abordagens inteligentes e inovadoras como aquelas propostas pelo CNJ. Evitar-se-á, assim, um indesejado efeito dominó que esvaziará os cofres e destruirá as finanças do Estado.

Daí a importância da contabilidade pública como ferramenta de estudo, de ajuste das políticas públicas e de investigação do juiz da causa e de seus auxiliares.

Invariavelmente, diz Eduardo Bastos Furtado de Mendonça (op. cit., p. 287), “o orçamento público deve ser tomado como principal instrumento para esse tipo de análise”, já que “no momento de extensão dos deveres estatais, os magistrados terão de levar em consideração as possibilidades financeiras e, sobretudo, as políticas públicas já em desenvolvimento”.

Observe-se, ademais, que o disposto no art. 20 do DL 4.657/1942, proíbe o juiz de decidir “com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”.

O sopesamento de possíveis consequências ruinosas capazes de contribuir para a bancarrota do Estado em sede de juízo de cognição sumária não é utopia. Os Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS) auxiliarão o juiz a atender o propósito do já citado art. 20.

E mesmo numa análise perfunctória do pleito judicial, o acesso às informações relativas às finanças públicas é assegurado pela LC 131/2009, em seu art. 48, II. Inegável, por assim dizer, a possibilidade concreta de avaliação de dados objetivos que integrarão, necessariamente, as razões de decidir, relevando, também, as diretrizes uniformes, estáveis, íntegras e coerentes da jurisprudência (art. 926, CPC).

À guisa de conclusão, nessa miscelânea de direito, orçamento, escassez e escolha, o ativismo judicial jamais poderá se traduzir num ato solitário do órgão julgador. Ao revés, deverá refletir uma decisão justa e efetiva (art. 6º, CPC): síntese dialógica e compartilhada entre os sujeitos processuais, núcleos de apoio técnico do Judiciário, os Poderes Executivo, Legislativo e a própria comunidade civil que, unindo esforços, encontrarão soluções refletidas e eficientes para solucionar a “judicialização da doença pública”.


REFERÊNCIAS

AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez & Escolha. Critérios jurídicos para Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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CARLINI, Angélica. Judicialização da Saúde Pública e Privada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

LOPES, José Mouraz. O espectro da corrupção. Coimbra: Almedina, 2011.

MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. A constitucionalização das finanças públicas no Brasil: devido processo orçamentário e democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 40. ed., rev. e atual./ até a Emenda Constitucional n. 95, de 15.12.2016. São Paulo: Malheiros, 2017.

TRINDADE, André Karam e OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Os impactos do ativismo judicial no sistema político: notas sobre a relação entre o Judiciário e os demais Poderes em tempos de crise política. In: Crise dos Poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. George Salomão Leite, Lenio Streck e Nelson Nery Junior (coordenadores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais: uma releitura da jurisprudência do STF. Colaboração de Flávia Scabin e Marina Feferbaum; pesquisadores da obra Eloisa Machado [et al]. – 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017.


Notas

[1] Na lição de José Afonso da Silva (2016, p. 288-289): “...podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito da igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade”.

[2] Sobre a corrupção como patologia do sistema, José Mouraz Lopes, juiz português, esclarece que (2011, p 27-28): “O amplo discurso social, político e jurídico do combate à corrupção ultrapassa a dimensão do objecto de investigação criminal, nomeadamente o número de casos que são investigados e julgados envolvendo crimes contra os interesses do Estado, onde se encontra a corrupção. Pode dizer-se, sem qualquer dúvida, que o discurso jurídico sobre a corrupção ultrapassa, actualmente, as barreiras do Código Penal. Constata-se um transvase da matéria da corrupção para domínios que vão muito para além do domínio jurídico-penal, que, como se sabe, assume sempre a forma de ultima ratio no âmbito das políticas de repressão dos fenómenos ou acções indevidas”.

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Sobre o autor
José Jorge Tannus Neto

Advogado, professor universitário e autor de artigos e livros jurídicos. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (2008) pela PUC-Campinas. Especialista em Direito Processual Civil (2009) e em Gestão Empresarial (2012) pela mesma universidade, além de especialista em Direito Contratual (2010) pela Faculdade INESP e em Direito Constitucional (2017) pela Damásio Educacional. Mestre em Derecho Empresario pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales de Buenos Aires (2018). Mestre em Direito dos Negócios pela Fundação Getúlio Vargas (2020) com a dissertação Convenções processuais em matéria de ressarcimento ao SUS: propostas de "arquitetura contratual litigiosa" entre a ANS e as operadoras de planos de saúde. Pós-graduando em Direito Constitucional Aplicado pela UNICAMP (2020-2021). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares da UniEduk. Parecerista da Intellectus Revista Acadêmica Digital. Doutorando em Educação pelo PPG Educação da PUC-Campinas. Membro do grupo de pesquisa Política e Fundamentos da Educação (CNPq/PUC-Campinas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TANNUS NETO, José Jorge. A judicialização da doença no domínio público e a reserva do impossível:: brevíssimo ensaio sobre direito, orçamento, escassez e escolha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5846, 4 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72920. Acesso em: 28 mar. 2024.

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