Artigo Destaque dos editores

Precedente, provisão judicial e segurança jurídica: a defesa da previsibilidade

Exibindo página 1 de 2
14/04/2019 às 10:10
Leia nesta página:

Com a promulgação do novo Código de Processo Civil, houve relativização do sistema codificado. A lei deixa de ser o único paradigma obrigatório que vincula a decisão do julgador.

Introdução

O direito certo, estável e, portanto previsível deve ser objeto de todo o ordenamento jurídico, em face da crescente massificação nas demandas judiciais.

Contemporaneamente, não há como subsistir um sistema que de soluções diversas a casos semelhantes, provocando instabilidades e entraves ao aperfeiçoamento do regime democrático do Estado de Direito.

O sistema codificado vigente vem se mostrando insuficiente no ato primordial de pacificação social das contendas.

Portanto, mostra-se bastante louvável a introdução do novo sistema de precedentes trazida pelo novel Código de Processo Civil.

Apesar de ser ainda incipiente, poderemos alcançar em médio e longo prazo uma melhora no que tange a segurança jurídica proporcionada por uma maior previsibilidade das decisões judiciais, em especial, no âmbito das empresas, que poderão, a partir daí, provisionar melhor os riscos judiciais e assim, liberar maiores recursos a seus investimentos, com o acréscimo de riquezas.

Atento a esse propósito, e, em defesa da inovação, o sistema de precedentes introduzidos pelo novel código de ritos, busca garantir no plano material a segurança jurídica, a igualdade e a eficiência das decisões judiciais, conforme veremos adiante.


Segurança jurídica

Conceito

Tarefa árdua é definir o seu conceito. Para começarmos, segurança jurídica é antes de tudo um princípio.

Sob este contexto, princípio, nos dizeres de Miguel Reale [1]:

“são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, a aplicação e integração ou mesmo para a elaboração de novas normas. São verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis”

E do doutrinador Mauricio Godinho Delgado [2]:

“princípio traduz, de maneira geral, a noção de proposições fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a partir de certa realidade, e que, após formadas, direcionam-se à compreensão, reprodução ou recriação dessa realidade”

A constituição federal no caput do artigo 5º consagrou expressamente o princípio da segurança jurídica.

Contudo, tradicionalmente, mediante a interpretação do inciso XXXVI do artigo 5º da norma ápice, este princípio é compreendido pela tríplice composição: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada.

Não temos o intuito de se discutir aqui o seu conceito doutrinário e sim o seu substrato de acordo com o tema proposto, qual seja, a ideia intrínseca a segurança.

A busca pela segurança sempre esteve incutida na vida das pessoas, como uma aspiração contínua de ter seu cotidiano e seus negócios inseridos em ambientes propícios, sólidos e favoráveis ao regular desenvolvimento de sua atividade econômica, sem instabilidades repentinas.

Sob este contexto, a segurança é fato, dotado de valor pelos indivíduos, porquanto como bem assevera o jurista Canotilho [3] o “homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida”.

Assim sendo, a segurança, enquanto valor, como um ideal a ser alcançado, passa ser na perspectiva tridimensional do Direito (fato, valor e norma) um princípio jurídico que deve nortear a atuação da administração pública e do Estado-juiz.

Partindo-se do raciocínio teórico da teoria tridimensional do Direito [4], a segurança como fato dotado de valor, deve ser tida como norma, como um todo indissociável de forma una e concreta.

Forma-se, então, a noção de segurança jurídica, delineado por Ávila [5] como a:

“prescrição, dirigida aos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, que determina a busca de um estado de confiabilidade e de calculabilidade do ordenamento jurídico com base na sua cognoscibilidade”

Realça-se aqui a acepção da segurança jurídica, como verdadeira norma-principio, e relegando a segundo plano a discussão doutrinária, quanto ao seu conceito preferimos destacar aqui o seu substrato, consubstanciado na possibilidade de os indivíduos e empresas preverem, concretamente, os efeitos jurídicos decorrentes de fatos ou comportamentos.

A segurança jurídica, uma quimera, ideal, um norte, um parâmetro, ou na visão de um realista esperançoso, pode ser concebido como um objetivo a ser alcançado, na qual nos perfilamos.

Em resumo, a ideia inerente a sua concepção pode ser entendida como uma estabilidade duradoura/permanente de normas jurídicas certas, estáveis, previsíveis calculáveis e, ao mesmo tempo coercitivas, de modo a incutir na sociedade os deveres de convivência que devem ser observados.

Deste modo, o exercício continuado e eficiente da jurisdição proporcionará um clima generalizado de confiança no Poder judiciário, qual seja de segurança social e insatisfações eliminadas.


Princípio da isonomia

É a igualdade legal para todos, conforme apregoa o artigo 5º da Constituição Federal, em virtude do que, indistintamente e em igualdade de condições, todos serão submetidos às mesmas regras jurídicas.

Celso Antonio Bandeira de Mello [6] em sua famosa obra “Conteúdo Jurídico do princípio da igualdade” disserta acerca do objetivo do principio nos seguintes dizeres:

“com efeito, por via do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas”

A lei, portanto, deve ser uniforme para todos. A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrímen adotado, com a devida pertinência logica da matéria tratada.

Portanto, as decisões judiciais devem ser motivadas e uniformes a todos os jurisdicionados de causas semelhantes (objeto, causa de pedir e pedido), não podendo ser objeto de capricho ou convicção pessoal dos julgadores.


Principio da eficiência

O principio da eficiência é um conceito jurídico indeterminado, porém, podem ser elencados como seus atributos: a racionalização, economicidade e celeridade.

A sociedade de massas é caracterizada pela dinâmica de suas relações negociais, marcada, portanto, suas atividades pela agilidade e rapidez, cuja característica demanda também uma maior agilidade do judiciário na solução do conflito de interesse.

Em metrópoles e até mesmo nas pequenas cidades, com o incremento de novas atividades comerciais derivadas da tecnologia, há uma crescente demanda judicial que só pode ser controlada, de forma a manter uma coesão social, se houver uma mecanismo de solução, ágil e confiável, no mesmo ritmo das infindáveis aspirações humanas.

Deste modo, clama-se por uma prestação jurisdicional, coesa, e célere as demandas para garantir a uniformidade e previsibilidade no tratamento dispensado aos jurisdicionados.

A sensação de descrédito e de crise institucional muitas vezes é oriunda de um tratamento diverso para pessoas que estejam na mesmíssima situação de fato.

Acerca desta temática, conclui Oliveira [7]:

“qualquer que seja a norma que tomemos em consideração (justa ou injusta, válida ou inválida, de direito material ou de direito processual etc), sua aplicação só será justa na medida em que for uniforme. Isso ocorrerá somente se a consequência prescrita pela norma for imposta a todos os indivíduos que se enquadrarem no modelo de conduta por ela prescrito e, cumulativamente, se não for imposta a nenhum dos indivíduos que naquele modelo não se enquadrarem”

Portanto, compreende-se por eficiência uma prestação jurisdicional, com qualidade, entenda-se: uniforme e efetiva para a solução do conflito de interesse instaurado, com celeridade.

Em outras apalavras, almejam-se mais sentenças, rápidas e definitivas e uma maior uniformidade nas decisões acompanhado de um uso mais racional dos recursos, evitando-se o uso predatório do sistema.


Civil law x Common law

Há duas escolas de sistemas de normas que vigoram atualmente: o Civil Law e o Commom Law.

O Brasil filiou-se a escola do Civil Law, que se se caracteriza essencialmente em outorgar a Lei como uma fonte imediata do ordenamento jurídico, onde os litígios judiciais são dirimidos por meio da subsunção do caso a norma constante da lei.

Pode ser definido este instituto nas seguintes palavras:

“Já nos ordenamentos de origem românica, caberia à lei a função de protagonizar a manifestação do direito, incumbindo-se às decisões judiciais papel meramente acessório e mediato, como fonte explicitadora e declaradora do significado do ordenamento positivo. Assim, a determinação da solução aplicável a uma demanda específica dar-se-ia pelo mecanismo da subsunção das situações de fato na regra geral legislada, cujo significado seria revelado através da atividade interpretativa” [8]

“O Sistema Jurídico do Civil Law caracteriza-se pelo fato de as leis serem a pedra primal da igualdade e da liberdade, posto que objetivava proibir o juiz de lançar interpretação sobre a letra da lei, fornecendo, para tanto, o que se considerava como sendo uma legislação clara e completa; onde, ao magistrado, caberia apenas proceder à subsunção da norma” [9]

Como demonstração deste sistema codificado vigente, onde o princípio da legalidade é manifesto no ordenamento jurídico o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal da República Federativa do Brasil assevera que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

A atividade judicial no seu mister demanda a interpretação das fontes do direito para a composição dos conflitos em cada caso concreto.

O artigo 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro dispõe:

“Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”

Partindo deste pressuposto, no sistema positivado onde a Lei é fonte imediata há uma vasta margem interpretativa conferida aos julgadores em face do caráter abstrato da matéria prima denominada lei.

Desta forma, não é incomum verificar a existência de decisões dispares, em demandas comuns, que deveriam receber o mesmo tratamento.

Em ordem inversa, o sistema do Common Law a preocupação foi assegurar a previsibilidade do direito, expurgando decisões contraditórias, com fundamento em precedentes judiciais, onde a lei tem papel secundário.

Este instituto pode ser definido como:

“Segundo entendimento convencional, o common law, modelo comum aos países de colonização inglesa, trataria as decisões judiciais como o principal elemento irradiador de normas, conferindo-lhes efeitos vinculantes e gerais e atribuindo à lei papel secundário. Neste sistema, a partir das soluções proferidas em cada caso, buscar-se-ia, por indução, formular as regras aplicáveis a situações análogas. O desenvolvimento do direito, por isso, ocorreria na medida em que associações e distinções entre casos ensejassem a aplicação de resultados idênticos ou provocassem a criação de novos precedentes”[10]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Como observado, neste sistema os precedentes judiciais são a principal fonte do direito, podendo conferir maior uniformidade as decisões judiciais que versem sobre a mesma matéria, o que acaba garantindo maior estabilidade e previsibilidade às decisões judiciais e, consequentemente, dar concretude ao princípio da segurança jurídica.


O sistema de precedentes do novo código de processo civil

Com a promulgação do novo Código de Processo Civil houve a relativização do sistema codificado. A lei deixa de ser o único paradigma obrigatório que vincula a decisão do julgador.

O novo CPC estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixar de seguir precedente ou jurisprudência invocada pela parte, sem mostrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Dispõe a redação do artigo 489, § 1º, VI, do CPC:

“Art. 489. (…).

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

(…)

VI deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”

Sobre o assunto, o Ministro Barroso [11] destaca que:

“Um precedente só deve ser aplicado quando o caso subsequente versar sobre a mesma questão de direito tratada no primeiro e desde que os fundamentos utilizados para decidi-lo sejam aplicáveis à nova demanda. Do contrário, deve-se proceder à distinção entre os casos, tal como ocorre no common law (art. 966, §5º, 985, §2º, c/c art. 966, §§ 9º e 12)”

Este dispositivo foi introduzido com o objetivo de dar concretude à uniformização das decisões judiciais, e, por conseguinte a segurança jurídica, de modo que sejam tomadas com coerência e integridade em casos análogos, como forma de dar maior estabilidade as relações sociais.

Este novo panorama é observado também nos seguintes dispositivos:

“Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade;

II os enunciados de súmula vinculante;

III os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV os enunciados das súmulas do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria infraconstitucional;

V a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

§ 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo.

§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”

Sob este contexto, o artigo 988 do novo Código prevê a possibilidade de utilização da reclamação para cassar decisões divergentes de todos os entendimentos e precedentes indicados como obrigatórios pelo art. 927, ressalvados apenas as hipóteses de descumprimento de súmulas simples e de orientações firmadas pelo pleno e pelos órgãos especiais dos tribunais.

De forma a ilustrar essa transformação o Ministro Barroso [12], leciona:

“Durante a vigência do CPC/1973 predominaram, no Brasil, os precedentes com eficácia persuasiva e com eficácia intermediária. Apenas as súmulas vinculantes e os julgados proferidos em controle concentrado da constitucionalidade produziam efeitos normativos em sentido forte.

O CPC/2015 alterou esse quadro, estabelecendo como precedentes com eficácia normativa em sentido forte: as súmulas vinculantes, os julgados produzidos em controle concentrado da constitucionalidade, os acórdãos proferidos em julgamento com repercussão geral ou em recurso extraordinário ou especial repetitivo, as orientações oriundas do julgamento de incidente de resolução de demanda repetitiva e de incidente de assunção de competência. O desrespeito a estes precedentes enseja a cassação da decisão divergente, por meio de reclamação”

Para a aplicação dos precedentes é necessário à compreensão de três conceitos: ratio decidendi ou holding, obiter dictum e distinção entre casos (distinguishing).

De forma didática, explica o Ministro Barroso [13]:

“São categorias fundamentais para a operação com precedentes vinculantes, a partir da literatura comparada, os conceitos de i) ratio decidendi ou holding, i i ) obiter dictum e de iii) distinção entre casos (distinguishing). São fundamentais, ainda, para a adequada compreensão de cada caso levado a exame judicial a análise dos seus fatos relevantes, da questão de direito posta pelo caso e dos fundamentos que conduziram a determinada decisão.

A ratio decidendi ou o holding de uma decisão corresponde a uma descrição do entendimento adotado pela corte como a premissa necessária ou adequada para decidir o caso concreto, à luz das razões invocadas pela maioria. Este é o teor que vinculará o julgamento de casos futuros semelhantes. Sua identificação pressupõe a avaliação dos fatos relevantes da ação, da questão jurídica posta em juízo, dos fundamentos da decisão e da solução determinada pela corte.

Os obiter dicta equivalem aos argumentos não acolhidos pela maioria da corte como justificativa para a solução dada a uma demanda, aos fundamentos não determinantes da decisão ou, ainda, a entendimentos ou comentários não diretamente necessários à solução do caso concreto. Esses elementos não se prestam a compor a ratio decidendi e não produzem efeitos vinculantes para o julgamento de casos futuros.

A distinção entre casos (distinguishing) deve ocorrer sempre que se demonstrar que a nova demanda apresenta peculiaridades de fato, suscita questão jurídica distinta e/ou não é perfeitamente solucionável com base nos fundamentos que justificaram a decisão do precedente. Em caso de distinção, não se aplicará a solução preconizada pelo precedente vinculante à nova demanda”

Examinados os elementos que compõem a estrutura de um precedente judicial, observa-se que a tarefa de identificá-los é complexa, o que demanda uma análise minuciosa e cautelosa acerca do seu conteúdo [14].

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Alexandre Assaf Filho

Pós-Graduado em Direito Societário - Instituto Insper (SP). Especialização em Processo Civil (Lato Sensu) - FAAP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSAF FILHO, Alexandre. Precedente, provisão judicial e segurança jurídica: a defesa da previsibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5765, 14 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73282. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos