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Dos navios no direito internacional: sua nacionalidade e a questão do uso da bandeira de conveniência

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14/05/2019 às 11:50
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Abordam-se os principais aspectos relacionados aos navios enquanto embarcação, sua nacionalidade e o uso de bandeiras de conveniência para os Estados, armadores e usuários do transporte marítimo.

RESUMO: Este artigo tem como principal objetivo o estudo acerca dos navios enquanto embarcação, sua nacionalidade e principais impactos do uso de bandeiras de conveniência para os Estados, armadores e usuários do transporte marítimo. Trata-se de tema de extrema importância para a tutela da segurança internacional e de questões de ordem social, trabalhistas e do meio ambiente, o que justifica a relevância desta pesquisa. A hipótese desta pesquisa sustenta que o estudo dos principais meios de combate às fraudes e ilicitudes relacionadas à nacionalidade dos navios é de fundamental importância para um direito marítimo mais equitativo e seguro. O método adotado é o indutivo, a partir de diversas fontes legais e doutrinárias para chegar, intuitivamente, no resultado proposto.

Palavras-chave: navio; nacionalidade de navios; bandeira de conveniência.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; CAPÍTULO 1. DO NAVIO ENQUANTO EMBARCAÇÃO; 1.1 Conceito de navio; 1.2 Classificação dos navios; 1.2.1 Quanto ao fim a que se destinam; 1.2.2 Quanto às aguas em que navegam; 1.2.3 Quanto ao sistema de propulsão; 1.2.4 Quanto ao tipo de construção;1.3 Natureza jurídica dos navios; CAPÍTULO 2. DA INDIVIDUALIZAÇÃO DO NAVIO; 2.1 Nome; 2.2 Classe; 2.3 Inscrição e registro; 2.4 Nacionalidade; 2.4.1 Critérios de aquisição de nacionalidade; 2.4.2 Consequências da nacionalidade; 2.4.3 Alteração e perda da nacionalidade; CAPÍTULO 3. DAS FRAUDES E ILICITUDES RELACIONADAS À NACIONALIDADE DOS NAVIOS; 3.1 Bandeira de conveniência; 3.2 A questão dos navios piratas; CONCLUSÕES; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

Indiscutível a relevância dos navios para a humanidade. Isso porque o mar representa uma importante fonte econômica para diversos setores da economia – como a pesca, transporte e comércio – desde os tempos mais remotos. Muitas sociedades, inclusive, desenvolveram-se a partir dos benefícios que a indústria naval lhes proporcionou.

Os navios não só estiveram presentes, como figuraram como protagonistas em determinados casos, em vários capítulos da história da humanidade, como por exemplo, as grandes navegações (que, para muitos doutrinadores, são consideradas como os primórdios da globalização), as duas grandes guerras e o tráfico de escravos. Episódios estes que, gloriosos ou sombrios, alteraram o curso de nossa história definitivamente.

Estas embarcações evoluíram muito com o decorrer dos séculos, possuindo hoje uma importância ainda mais acentuada em virtude do lazer, frente à proliferação de linhas de cruzeiros de passageiros, e também da indústria shipping. Hoje o transporte marítimo é o que movimenta a maior quantidade de cargas no comércio internacional de mercadorias, representando um percentual significativo da economia de diversos países. Feitas essas observações acerca de sua importância, passemos aos objetivos do presente trabalho.

Em um primeiro momento, estudaremos os navios enquanto espécie do gênero embarcação, trazendo seus conceitos legais e doutrinários, apresentando sua classificação conforme os números critérios apresentados pela doutrina e discorrendo acerca de sua natureza jurídica. Sendo o navio o objeto do presente estudo, importante tecermos estas considerações introdutórias a seu respeito, para depois adentrarmos na questão de sua nacionalidade propriamente dita.

No segundo capítulo deste trabalho, trataremos da individualização do navio, ou seja, apresentaremos os elementos que individualizam os navios e que os tornam únicos. Estes elementos são nome, classe, inscrição/registro e nacionalidade. Conforme se verá em capítulo próprio, existem outros critérios capazes de individualizar o navio, mas fizemos um corte metodológico e abordaremos estes principais. Em relação à nacionalidade dos navios, tema central do presente estudo, abordaremos os critérios de aquisição de nacionalidade, as consequências da nacionalidade e as hipóteses de alteração ou perda da nacionalidade.

Por fim, o terceiro e último capítulo deste trabalho se destina a estudar as fraudes e ilicitudes relacionadas à nacionalidade dos navios. Desta forma, serão objeto da análise o uso de bandeiras de conveniência e a questão dos navios piratas.


1. DO NAVIO ENQUANTO EMBARCAÇÃO

Analisaremos, neste primeiro capítulo, os aspectos fundamentais relacionados ao navio enquanto uma embarcação. Estudaremos seu conceito e sua classificação de acordo com inúmeros critérios e, por fim, trataremos de sua natureza jurídica.

1.1 Conceito de navio

Como objeto central do presente estudo, mister se faz conceituar “navio”. Do latim “navigium”, o navio é um bem de difícil definição, uma vez que os conceitos a ele atribuídos pela doutrina e tratados internacionais são demasiadamente amplos e imprecisos[1].

Até mesmo Celso D. de Albuquerque Mello versa em sua obra que “não é fácil definirmos navio e mesmo as convenções internacionais, como as de Genebra, têm evitado entrar no assunto[2]." Desta forma, abordaremos aqui referida conceituação sem a pretensão de chegarmos a uma definição precisa e incontroversa.

Preliminarmente, cumpre esclarecer que muitas vezes as definições tratam “navio” e “embarcação” como expressões sinônimas, sem fazer a devida distinção entre elas. Tal equivalência, contudo, é feita de maneira equivocada, tendo em vista que estamos diante de dois conceitos distintos. É justamente por isso que muitos doutrinadores afirmam que as definições propostas por internacionalistas não têm merecido aceitação[3].

George Lazaraos pontua bem a diferença existente entre os dois conceitos ao afirmar que o termo “embarcação” designa uma variedade de estruturas marítimas, enquanto o termo “navio” é limitado para poucas espécies do mesmo gênero[4]. Assim sendo, temos que a embarcação é o gênero do qual o navio é espécie[5]. Analisemos, então, as principais definições existentes para o termo que nos propusemos a estudar.

Na seara dos tratados internacionais, o “navio” encontra conceituação bem estável, com apenas pequenas variações entre os vários instrumentos. Ocorre que tal definição nem sempre se faz presente nos documentos mais relevantes aplicáveis ao direito internacional público e privado, ao direito do mar ou ao direito marítimo.

Como exemplo, podemos citar a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, que peca por não trazer uma definição de “navio”, ou sequer de “embarcação”, definindo em seu Artigo 29 apenas o que seria um “navio de guerra”:

"Artigo 29. Definição de Navio de Guerra. Para efeitos da presente Convenção, ‘navio de guerra’ significa qualquer navio pertencente às forças armadas de um Estado, que ostente sinais exteriores próprios de navios de guerra da sua nacionalidade, sob o comando de um oficial devidamente designado pelo Estado cujo nome figure na correspondente lista de oficiais ou seu equivalente e cuja tripulação esteja submetida às regras da disciplina militar.[6]"

   Igualmente ocorreu com a Convenção Internacional para Salvaguarda da Vida Humana no Mar (Convenção SOLAS), de 1974, que permeia o assunto trazendo os conceitos de navio de passageiro, navio de carga, navio-tanque, embarcação de pesca e navio nuclear, mas evitando a definição de “navio” propriamente dita.

Outras convenções, como as que seguem abaixo, apesar de apresentarem uma definição, poderiam tê-lo feito de forma mais clara e precisa. É o caso da Convenção Internacional Relativa à Intervenção em Alto-Mar em Casos de Acidentes com Poluição por Óleo, de 1969, que, em seu Artigo 2º, 2, define navio apenas como “(a) toda embarcação marítima de qualquer tipo, e (b) todo engenho flutuante, à exceção de instalações ou outros dispositivos utilizados para exploração do fundo dos mares, dos oceanos e seus subsolos ou aproveitamento de seus recursos [7]".

A Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios, de 1973 (também conhecida por MARPOL 73), em seu Artigo 2º, 4, versa que:

"Navio significa uma embarcação de qualquer tipo operando no meio ambiente marinho e abrange embarcações do tipo hidrofólio, veículos que se deslocam sobre um colchão de ar, submersíveis, embarcações flutuantes e plataformas fixas ou flutuantes.[8]"

Em sentido análogo, a Convenção sobre Prevenção da Poluição Marinha por Alijamento de Resíduos e Outras Matérias, de 1972, define embarcações e aeronaves em seu Artigo 3º, 2. In verbis:

"Embarcações e aeronaves se entendem os veículos que se movem na água ou no ar, quaisquer que sejam seus tipos. Esta expressão inclui os veículos que se deslocam sobre um colchão de ar e os flutuantes, sejam ou não autopropulsados.[9]"

Também a Convenção Internacional sobre Preparo, Prevenção, Resposta e Cooperação em Caso de Poluição por Óleo, em seu Artigo 2º, 3, apresenta a seguinte definição de navio: “Qualquer embarcação que opere no meio ambiente marinho, incluídos os aerobarcos, os veículos de colchão de ar, os submersíveis e os meios flutuantes de qualquer tipo.”[10] A RIPEAM – Convenção sobre o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar, de 1972, por sua vez, na Parte A, Regra 3, “a”, traz o seguinte conceito:

"A palavra embarcação designa qualquer tipo de embarcação, inclusive embarcações sem calado, naves de voo rasante e hidroaviões utilizados ou capazes de serem utilizados como meio de transporte sobre a água.[11]"

Ainda, a Convenção Internacional sobre Responsabilidade em Danos Causados por Poluição por Óleo – CLC 69, de 1969, em seu Artigo 1º, 1, dispõe que “Navio significa toda embarcação marítima ou engenho marítimo flutuante, qualquer que seja o tipo, que transporte efetivamente óleo a granel como carga.”[12] De maneira mais simples, para a Convenção Internacional sobre Salvamento Marítimo, de 1989, no Capítulo I, Disposições Gerais, Artigo 1º, “b”, “Navio significa qualquer embarcação ou estrutura capaz de navegar.” [13]

Por fim, a Convenção para a Supressão de Atos Ilícitos Contra a Segurança da Navegação Marítima – Convenção SUA, de 1988 – Artigo 1º determina que:

"Navio significa um navio de qualquer tipo, não permanentemente preso ao fundo do mar, inclusive embarcações dinamicamente sustentadas, submersíveis, ou qualquer outra embarcação flutuante.[14]"

Na seara da doutrina, também encontramos definições amplas e incapazes de refletir a complexidade que circunda o universo dos navios. Vejamos abaixo.

Hugo Simas define navio como uma construção que flutua e transporta pessoas ou coisas, trazendo a denominação equivalente encontrada na França, Inglaterra, Alemanha e Espanha:

"De fato, sob essa denominação genérica, correspondente à bâtiment de mer, dos franceses, vessel dos ingleses, fahrzeng dos alemães, embarcación dos espanhóis, tratamos de qualquer construção que, flutuando, sirva para transportar por água, pessoas ou coisas. O caiaque, o bote, a canoa, a draga são embarcações, mas não são navios, reservada como está essa expressão a grandes embarcações destinadas ao transporte de pessoas ou coisas.[15]"

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Para Carla Adriana Comitre Gibertoni, que traz um conceito mais aprofundado, “Navio é toda embarcação de grande porte destinada à navegação marítima, fluvial ou lacustre, dotada ou não de propulsão própria, mas que realize o percurso sobre as águas, transportando para qualquer fim, pessoas e/ou mercadorias”[16].

Já Georges Ripert inova nas definições encontradas ao mencionar que o navio deve ser suscetível de resistir aos perigos do mar. Versa o autor que “navio é uma máquina flutuante destinada à navegação. (...) deve ter certa forma, suscetível de resistir aos perigos do mar e de permitir sua utilização.” [17] Osvaldo Agripino de Castro Junior segue a mesma linha apresentada por Georges Ripert no que diz respeito aos riscos do mar e conceitua navio como:

"Espécie do gênero embarcação, construção flutuante de natureza móvel, destinada a uma navegação que habitualmente o submete aos riscos do mar, sendo necessário que tenha robustez para enfrentar as fortunas das viagens marítimas, personalidade, nacionalidade e nome[18]" (grifos nossos).

José Francisco Rezek[19] não destoa dos demais doutrinadores e afirma que “pode-se definir o navio como todo engenho flutuante dotado de alguma forma de autopropulsão, organizado e guarnecido segundo sua finalidade”.

Independentemente dos conceitos apresentados, evidente que a questão da navegabilidade (seaworthiness) e flutuabilidade (floatation) é comum a todas as definições. Ao examinar no detalhe cada um dos conceitos citados acima, nota-se que as expressões “flutuante”, “navegação”, “sobre as águas” e seus respectivos sinônimos estiveram presentes em quase todos eles.

Para Eliane Maria Octaviano Martins, flutuabilidade é a característica do navio que o torna “um corpo flutuante que possua, mesmo que rudimentarmente, o aspecto de embarcação destinada ao transporte em vias navegáveis”. Diferentemente, mas de modo complementar, a navegabilidade para a autora “enseja condições de navegação, retratada na capacidade de trasladar-se sobre a água”.[20] Seria, este último elemento, a representação dos aspectos técnicos, operacionais e funcionais de um navio.

Desta forma, um navio somente poderá ser considerado como tal se estes dois elementos estiverem presentes. É por isso que, na ausência de qualquer deles, não estaremos diante de um navio. Como exemplo, podemos citar a questão do navio naufragado que, justamente por ter afundado, não navega ou flutua e, portanto, carece dos elementos de navegabilidade e flutuabilidade.

1.2 Classificação dos navios

Os navios podem ser classificados de acordo com numerosos critérios, a depender do foco que se pretenda dar ao estudo deste bem. As principais classificações encontradas na doutrina, e até mesmo em alguns tratados internacionais, pretendem segregar os navios quanto (i) ao fim a que eles se destinam, (ii) às águas em que navegam, (iii) ao seu sistema de propulsão e, ainda, (iv) ao tipo de sua construção. Vejamos abaixo em maiores detalhes cada uma das classificações mencionadas acima.

1.2.1 Quanto ao fim a que se destinam

Esta primeira classificação tem por objetivo dispor os navios em quatro categorias distintas, considerando o fim a que eles destinam. Temos, portanto, os navios (a) de guerra, (b) mercantes, (c) de recreio, (d) de serviços especiais e (d) de apoio portuário.

Os navios de guerra são os navios construídos para fins militares, podendo ser divididos em navios de combate e navios auxiliares. Como já elucidado no item supra, este conceito foi utilizado pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar[21] para designar navios pertencentes às forças armadas de um Estado sob o comando de oficial e cuja tripulação esteja submetida às regras da disciplina militar. Os principais tipos de navios de guerra já utilizados na história são os cruzadores, as fragatas e os porta-aviões.

Os navios mercantes são os navios destinados ao transporte de passageiros ou mercadorias. De acordo com a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar, Capítulo I, Parte A, Regra 2, “f”, navio de passageiro é todo aquele que transporta mais de 12 (doze) passageiros[25]. Por outro lado, navio mercante é o navio destinado ao transporte exclusivo de cargas, podendo ser subclassificado em três categorias: graneleiro, petroleiro/tanque ou porta-containers.

Os navios e embarcações de recreio são aquelas embarcações que têm por principal característica o uso particular pelo próprio dono, sem objetivar fins lucrativos. Como principais exemplos podemos citar os veleiros, lanchas e iates. Os navios de serviços especiais são os navios construídos com uma finalidade específica. Navios de pesca, navios oceanográficos e navios voltados para pesquisas, de um modo geral, são classificados como navios de serviços especiais. Por fim, os navios de apoio portuário são aqueles que apenas percorrem os portos e terminais aquaviários prestando assistência às manobras de atracação e desatracação de navios.

Trata-se da classificação mais comum existente na doutrina e também a adotada pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que divide os navios em quatro classes: os navios de guerra, os navios de estado utilizados para fins não comerciais, os navios de estado utilizados para fins comerciais e os navios mercantes[29].

Vejamos, também, outras classificações que, apesar de serem menos frequentes, possuem sua importância no estudo dos navios.

1.2.2 Quanto às aguas em que navegam

Os navios também podem ser classificados quanto às águas em que navegam. Destarte, temos os navios com navegação de (a) longo curso, correspondente ao tráfego marítimo mercantil entre portos de diferentes países, com distâncias quase sempre vultosas, (b) cabotagem, correspondente à navegação entre portos do mesmo país, ou (c) apoio portuário, correspondente ao deslocamento de navios apenas nos limites de portos e terminais aquaviários, com a finalidade de prestar assistência às manobras de atracação e desatracação de outros navios.

1.2.3 Quanto ao sistema de propulsão

Apesar de pouco utilizado, o presente critério visa classificar os navios quanto ao seu sistema de propulsão, ou seja, em relação à forma pela qual o navio se desloca no meio aquático e à tecnologia empregada para seu movimento. O navio, portanto, pode ser a vela, a remos, por propulsão mecânica, ou até mesmo sem qualquer mecanismo de propulsão.

1.2.4 Quanto ao tipo de construção

Outro critério pouco utilizado é o que consiste em classificar os navios conforme a robustez de sua estrutura. Para tanto, os navios são classificados de acordo com o material de construção – madeira, aço ou ferro –, a forma do casco e o número de pavimentos.

1.3 Natureza jurídica dos navios

Muito se discute acerca da natureza jurídica dos navios: seriam eles bens móveis, móveis especiais ou imóveis? Veremos que a doutrina nem sempre foi pacífica em relação a este tema e apresentaremos os diversos posicionamentos para depois indicar qual julgamos ser o mais apropriado.

Primeiramente deve-se indicar o que se entende por bem móvel ou imóvel. Vejamos as definições do Código Civil. Em seu artigo 79, encontramos a definição de bens imóveis: “São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”. Por outro lado, encontramos no artigo 82 a definição de bens móveis: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”[30].

Por um determinado período da história considerou-se o navio um bem imóvel em função principalmente dos interesses da sociedade então instituída. Como aclara Rafael Muniz[31], durante a Idade Média o navio era a única fonte de comércio e abastecimento de produtos provenientes de terras longínquas, o que concedeu a este bem uma proteção estrita.

Contudo, tal entendimento não mais vigora em nossa sociedade atual, de modo que a doutrina praticamente não diverge ao afirmar que o navio é um bem móvel. Trazemos os ensinamentos de Eliane Maria Octaviano Martins[32], para quem o navio é um bem móvel: “Evidentemente, o navio, pela sua própria função, destinação econômica e estrutura, não pode ser considerado um bem imóvel” (grifos nossos).

E continua:

"No conceito de navio, encontram-se intrínsecos os elementos flutuabilidade e navegabilidade. Destarte, o navio flutua e transporta-se de um lugar para outro, indicando todos os caracteres das coisas móveis" 

Assim sendo, pelo simples fato de flutuar e navegar, diga-se, mover-se de um lugar para outro, o navio não se enquadraria na categoria de bens imóveis para referida autora.

Também para José Candido Sampaio de Lacerda seriam os navios bens móveis. Em suas palavras:

"Nos termos da noção dada pelo direito civil para os bens móveis e atendendo ao conceito de navio supra-indicado, deve o navio figurar entre aqueles bens. E assim tem sido considerado desde o direito romano até os dias presentes, exceto na época medieval, em que o valor do navio, crescendo grandiosamente, fez que se o admitisse imóvel, a fim de melhor explicar a necessidade de aumentar o crédito aos senhores feudais[33]."

Apesar de restar claro ser o navio um bem móvel, e não imóvel, seria ele um bem móvel como os demais ou haveria alguma peculiaridade em seu regime tornando-o um móvel especial (sui generis)? Alguns autores entendem ser o navio um bem móvel especial. São eles: Flávio Tartuce, Carla Adriana Comitre Gibertoni e Daniel Danjon.

Para Flávio Tartuce, os navios são bens móveis especiais porque, apesar de móveis pela essência, são tratados pela lei como bens imóveis. Vejamos seu posicionamento:

"Os navios são bens móveis especiais ou sui generis. Apesar de serem móveis pela natureza ou essência, são tratados pela lei como imóveis, necessitando de registro especial e admitindo hipoteca. Justamente porque pode recair também sobre navios e aviões, pelo seu caráter acessório e pelo princípio de que o acessório deve seguir o principal, a hipoteca, direito real de garantia, pode ser bem móvel ou imóvel.[34]"

Carla Adriana Comitre Gibertoni, ainda que de forma mais sucinta, também discorre sobre o fato dos navios serem bens móveis especiais devido ao seu elevado valor e movimentação de recursos para a atividade marítima:

"Em determinadas situações, o navio, apesar de coisa móvel, precisa estar subordinado ao regime dos bens imóveis, devido ao seu elevado valor e os recursos que são movimentados pela atividade marítima. [35]"

Daniel Danjon, igualmente, versa que os navios são bens com natureza especial, uma vez que em determinadas circunstâncias são tratados como bens móveis e em outras circunstâncias são tratados como bens imóveis[36].

Apesar da existência de posicionamentos neste sentido, este não é o entendimento majoritário. Isso porque o navio continua sendo um bem móvel, mesmo nos casos em que se sujeita ao regime dos bens imóveis por expressa determinação legal. Além disso, essa sujeição ocorre apenas em certos casos, como na hipoteca naval, aquisição/alienação por escritura pública e registro/transferência da propriedade. Juridicamente, o navio continua sendo um bem móvel[37].

Entendemos, portanto, ser o navio um bem móvel, de modo que sua sujeição ao regime dos bens imóveis por expressa determinação legal não se faz suficiente para lhe retirar essa característica de bem móvel propriamente dito.

Concluído esse capítulo introdutório quanto aos aspectos gerais dos navios, passemos ao estudo de sua individualização.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Nicole Miranda. Dos navios no direito internacional: sua nacionalidade e a questão do uso da bandeira de conveniência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5795, 14 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73414. Acesso em: 28 mar. 2024.

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