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Floriano Peixoto e o Supremo Tribunal Federal

19/05/2019 às 22:05
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Reflexões sobre o governo de Floriano Peixoto, que, agindo como ditador, não tinha pelo Judiciário o entendimento de um Poder independente.

Segundo é registrado, o marechal Floriano encarnava uma visão da República não identificada com as forças econômicas dominantes. Pensava construir um governo estável, centralizado, nacionalista, baseado sobretudo no exército e na mocidade das escolas civis e militares ("República da Espada"). Essa visão chocava-se com a da chamada "República dos Fazendeiros", liberal e descentralizada, que via com suspeitas o reforço do Exército e as manifestações da população urbana do Rio de Janeiro. Mas, ao contrário do que se poderia prever, houve na presidência de Floriano um acordo tácito entre o presidente e o PRP (Partido Republicano Paulista). As razões básicas para isso foram os riscos, alguns reais, outros imaginários, que corria o regime republicano.

A elite política de São Paulo via na figura de Floriano a possibilidade mais segura de garantir a sobrevivência da República, a partir do poder central. Floriano, por sua vez, percebia que sem o PRP não teria base política para governar. Seu governo teve grande oposição de setores conservadores, como a publicação do Manifesto dos 13 generais. A alcunha de "Marechal de Ferro" devia-se à sua atuação enérgica e ditatorial, pois agiu com determinação ao debelar as sucessivas rebeliões que marcaram os primeiros anos da República do Brasil. Recebeu também o título de "Consolidador da República".

Floriano Peixoto, que em seu governo agiu como ditador, não tinha pelo Judiciário o entendimento de vê-lo um Poder independente.

O episódio da recusa de indicações de ministros pelo Senado Federal foi, talvez, o mais significativo.

Em 128 anos, só cinco indicados pelo presidente para ocupar vaga de ministro do STF foram barrados pelos parlamentares, de acordo com o Senado. E todas as rejeições ocorreram em 1894, no governo do marechal Floriano Peixoto.

O caso mais emblemático é o de Cândido Barata Ribeiro, médico-cirurgião e professor de Medicina no Rio. Ele tinha grande influência na política de época, atuou no movimento pelo fim da escravidão e da monarquia, chegou a atuar como ministro do STF (naquela época, o escolhido podia começar os trabalhos antes dos senadores votarem a indicação) e foi reprovado depois de dez meses de trabalho. O motivo foi que ele não tinha formação jurídica.

Depois do caso de Barata Ribeiro, Floriano indicou outros onze nomes para o STF. Quatro foram rejeitados: o general do Exército Ewerton Quadros e o então diretor-geral dos Correios Demóstenes Lobo, ambos também por não terem formação jurídica. Também foram recusados o general Galvão de Queiróz e o subprocurador da República Antônio Seve Navarro - os dois eram formados em Direito, mas não foram considerados "expoentes do mundo jurídico", de acordo com o Senado.

Em decreto de 23 de outubro de 1893, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, preenchendo a vaga ocorrida com o falecimento do Barão de Sobral; tomou posse em 25 de novembro seguinte.

Submetida a nomeação ao Senado da República, este, em sessão secreta de 24 de setembro de 1894, negou a aprovação, com base em Parecer da Comissão de Justiça e Legislação, que considerou desatendido o requisito de “notável saber jurídico” (DCN de 25 de setembro de 1894, p. 1156). Em consequência, Barata Ribeiro deixou o exercício do cargo de Ministro em 24 do referido mês de setembro.

Essa foi a rejeição mais famosa, mas outras ocorreram também.

Floriano Peixoto havia feito a nomeação aproveitando-se de uma brecha na lei. A Constituição de 1891 exigia dos ministros do STF “notável saber” — sem especificar o tipo de saber.

O Arquivo do Senado, em Brasília, guarda o histórico parecer emitido pelos senadores no Palácio Conde dos Arcos, a sede da Casa, em setembro de 1894. Diz o documento:

“Mentiria a instituição [STF] a seus fins se entendesse que o sentido daquela expressão ‘notável saber’, referindo-se a outros ramos de conhecimentos humanos, independesse dos que dizem respeito à ciência jurídica, pois que isso daria cabimento ao absurdo de compor-se um tribunal judiciário de astrônomos, químicos, arquitetos”.

Em outro ponto do parecer, os senadores foram ainda mais duros e escreveram que, na qualidade de prefeito do Distrito Federal, ele havia demonstrado “não só ignorância do direito, mas até uma grande falta de senso jurídico”. De fato, Barata Ribeiro várias vezes agiu com truculência e governou passando por cima do Conselho Municipal (a atual Câmara Municipal).

No total, até o momento, ocorreram 5 rejeições de nomes indicados para o STF, contemplando os seguintes nomes: (1) Barata Ribeiro; (2) Innocêncio Galvão de Queiroz; (3) Ewerton Quadros; (4) Antônio Sève Navarro; e (5) Demosthenes da Silveira Lobo.

Para Barata Ribeiro, o “não” dos senadores não foi novidade. Em 1893, ele havia passado por um constrangimento parecido. Após meses governando a capital, nomeado por Floriano, o médico foi defenestrado porque os senadores não lhe deram a aprovação. Naquele tempo, também o prefeito do Rio precisava do crivo do Senado.

A recusa dos senadores não foi exclusivamente técnica. Houve razões políticas. Nem o Senado nem o STF viam Floriano com simpatia. O segundo presidente, que governou de 1891 a 1894, protagonizou episódios de desrespeito às leis e de violência — daí a alcunha Marechal de Ferro.

Depois de Barata Ribeiro, Floriano indicou onze nomes para o STF. O Senado rejeitou quatro. Dois deles também não tinham formação em direito: Ewerton Quadros, general que havia sido decisivo para o fim da Revolução Federalista, e Demóstenes Lobo, diretor-geral dos Correios.

Os outros recusados eram graduados em direito, mas não chegavam a ser expoentes do mundo jurídico: o general Galvão de Queiroz e o subprocurador da República Antônio Seve Navarro. De qualquer forma, nunca se souberam os motivos exatos que levaram o Senado a não aceitar as indicações. As sessões eram secretas, e as atas se perderam. A divulgação do parecer sobre Barata Ribeiro foi exceção.

Sem ter detalhes sobre as sessões do Senado, o jornal O Paiz precisou se desculpar com os leitores: “Não entram cronistas nem repórteres no recinto, os empregados mais familiares da Casa são banidos do local e as próprias paredes pouco ouvem”.

Diz a servidora do STF Maria Ângela Oliveira, autora de um estudo sobre as cinco nomeações recusadas em 1894:

— Apesar dos problemas, não se pode dizer que o método de escolha dos ministros era ruim. Antes, o imperador escolhia livremente os conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça [antecessor do STF]. Depois, a indicação do Executivo para o Judiciário passou a depender do aval do Legislativo. Isso tornou a escolha dos ministros democrática e fortaleceu a independência dos três Poderes.

Constatada a lacuna da Constituição de 1891, todas as Constituições posteriores deixaram claro que os ministros do STF precisariam ter notável saber “jurídico”. O processo no Senado foi aperfeiçoado. As sessões se tornaram públicas, e o indicado passou a ser sabatinado pelos senadores.

Barata Ribeiro era uma personalidade poderosa. A perda dos cargos de prefeito e ministro não lhe abalou o prestígio político. Poucas semanas depois de ser retirado do STF, ele fundaria o Partido Republicano Constitucional. Cinco anos mais tarde, ironicamente, seria eleito senador e passaria a ser colega de muitos dos políticos que lhe haviam negado a prefeitura e o Supremo Tribunal Federal.

A título de exemplo, alguns juristas declinaram dessa indicação do presidente da República: Afonso Pena (na presidência de Prudente de Morais), Francisco Mendes Pimentel (convidado por Wenceslau Braz e Getúlio Vargas), Clóvis Beviláqua (convidado por Hermes da Fonseca e Washington Luís), Milton Campos (convidado por Castello Branco e Emílio Garrastazu Médici); Hely Lopes Meirelles (convidado por Ernesto Geisel) e Sobral Pinto (convidado por Juscelino Kubistchek).

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Já nos EUA, o Senado rejeitou mais de uma dezena de nomeações para a Suprema Corte, sendo que várias vezes o chefe de Estado decidiu retirar a indicação do candidato por ele escolhido, quando percebeu que não teria a aprovação senatorial.

Volta-se ao embate de Floriano Peixoto com o Judiciário e suas razões.

As guerras civis ocorridas durante o mandato presidencial de Floriano Peixoto forçaram uma definição maior de certos aspectos da recente legalidade institucional republicana no tocante à situação dos militares em face das leis. A Carta de 1891 tornara constitucional a questão do direito castrense – até então situado na linha de comando militar –, dispondo que os militares de terra e mar teriam direito a foro especial nos delitos militares, foro esse que deveria ser composto de um Supremo Tribunal Militar e dos conselhos necessários para a formação da culpa e julgamento dos crimes, ficando a organização e a definição de atribuições do tribunal a serem reguladas por lei ordinária.

A Justiça Militar foi, aliás, a única justiça especializada reconhecida pela Constituição, ainda que mantida fora do poder Judiciário. Assim, ainda em 1890, o governo provisório instituíra o Código Disciplinar da Armada (21/6), abolira a pena de galés e reduzira para 30 anos as penas perpétuas (20/9). Em 5 de novembro, baixara o Código Penal da Armada (CPA), que, no entanto, seguiria uma trajetória tortuosa, resultante das polêmicas que despertou. Reformado a partir de autorização concedida ao Ministério da Marinha por decreto de 14 de fevereiro de 1891, em 7 de março o CPA recebeu sua versão definitiva. No entanto, seria considerado inconstitucional pela primeira legislatura ordinária republicana e, em 1893, nulo, pelo STF.

A ação repressiva de Floriano durante a revolta no Sul colocou, pela primeira vez na República, o foro militar em questão, em duas situações distintas, mas ambas de natureza política. A primeira, em 25 de julho de 1893, referiu-se ao enquadramento do contra-almirante Eduardo Wandenkolk, então senador e um dos líderes da revolta. O que prevaleceria na definição da instância adequada para julgá-lo: a condição de parlamentar, com direito a foro civil, ou a de militar, que o enquadrava no Código Penal da Armada? A segunda situação foi a tentativa de também enquadrar na legislação penal militar civis presos durante a revolta e reclusos em unidades militares.

Vários argumentos contra o enquadramento no CPA foram, então, usados. Um deles apelava ao artigo 60 da Constituição, que determinava o julgamento de crimes políticos por juízes e tribunais federais civis; como a revolta se enquadrava nesse caso, não havia por que submeter os envolvidos ao foro militar. Outro argumento lembrava que a origem do CPA era uma autorização concedida pelo governo provisório, ditatorial, utilizada indevidamente já no período constitucional. Quando o STF declarou a nulidade do CPA em 1893, Floriano Peixoto, em represália, passou a obstar o funcionamento do tribunal, deixando, por meses, de preencher as vagas que se abriam e recusando-se a empossar o presidente eleito pela casa, função que lhe cabia por determinação legal. A questão só seria resolvida em 1899, quando o Congresso legalizou o CPA, determinando sua extensão ao Exército.

Em abril de 1892, o  Supremo Tribunal Federal se reuniu para julgar o famoso habeas corpus n° 300, considerado a primeira decisão do tribunal num caso político de grande repercussão. A decisão de não concessão da ordem é considerada, pelos que valorizam o controle judicial de normas e atos do poder público, uma capitulação do Tribunal à pressão do Vice-Presidente em exercício o Marechal Floriano Peixoto. Nesta ocasião, Floriano teria afirmado algo como: “se o Supremo Tribunal conceder o habeas corpus, eu não sei quem concederá a ordem para os seus ministros, que dela necessitarão”.

Rui Barbosa impetra habeas corpus no STF, com base na doutrina da supremacia judicial, defendendo que o Judiciário poderia conhecer os atos de decretação do estado de sítio e apreciar as medidas tomadas mesmo durante a sua vigência. Ele aponta, entre outros pontos, falhas procedimentais, ilegalidades nas detenções e a extensão indevida das medidas. Afirmava-se que Rui Barbosa, ele próprio rompido com Floriano desde a deposição do governo da Bahia que apoiou o golpe de Deodoro, e seus aliados davam apoio velado aos golpistas.

No dia 27, o STF denega a ordem de habeas corpus, por considerar que não cabia ao Judiciário intervir em casos de sítio, que os efeitos deste se mantinham depois do fim de sua vigência etc.  Afirma-se que a pressão política teria sido determinante para a decisão, mas a orientação do Tribunal foi mantida, com variações, ao longo da Primeira República. Ou seja, se a pressão.

A perseguição foi grande durante aquele governo. Rui Barbosa foi obrigado a se exilar na Inglaterra.

Por muito tempo, Floriano Peixoto foi considerado persona non grata no meio jurídico.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Floriano Peixoto e o Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5800, 19 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73981. Acesso em: 28 mar. 2024.

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