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Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo

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A tônica empreendida neste texto foi a de destacar a contradição entre a ideologia da defesa social e a prática concreta do sistema punitivo.

SUMÁRIO: Apresentação e ilustração inicial: Relatório do Ilanud sobre o Massacre do Carandiru1; 1. INTRODUÇÃO; 2. a nova ordem latino americana; 3. CONSTRUÇÃO histórica DA PUNIÇÃO;3.1 O Brasil Colônia ; 3.2 Do Brasil Império à Independência; 4. a questão criminológica; 4.1 o Debate Criminológico; 4.2 A Gênese Moderna do Pensamento Criminológico; 4.3 A Ideologia da Defesa Social; 4.4 Teorias que Negam os Príncípios da Ideologia da Defesa Social; 4.5 A Criminologia Crítica; 5. APONTAMENTOS SOBRE A REPRODUÇÃO SOCIAL DA DESIGUALDADE PELO SISTEMA PUNITIVO; 5.1 O Sistema Punitivo para além da legalidade; 5.2 A Inevitável Contradição; 5.3 Condicionamentos Históricos para a Reprodução Social da Desigualdade pelo Sistema Punitivo ; 6. CONCLUSÃO; 7. Bibliografia


APRESENTAÇÃO E ILUSTRAÇÃO INICIAL

            Massacre no Carandiru nt

            O Massacre do Carandiru é um acontecimento que permite, em primeiro lugar, escancarar os impasses no processo de institucionalização democrática que temos sofrido desde a volta ao sistema democrático, uma vez que a efetividade do Estado Democrático de Direito depende, em boa parte, do grau de controle judicial sobre a atividade dos agentes públicos e na capacidade de responsabilizá-los por crimes praticados ou danos injustos causados a terceiros.

            O relatório abaixo informa os persistentes obstáculos criados e recriados para não submeter adequadamente o aparelho repressivo do estado – a Polícia Militar, mais particularmente seus oficiais – ao império da lei a ser aplicado igualmente a todos.

            O episódio, em si, e seus desdobramentos, colocam em questão a consolidação da democracia ao permitir que a violação do mais básico dos direitos individuais, assegurado pela Constituição Federal, o direito à vida, não tenha até agora, passados 9 anos, gerado sanções adequadas aos seus infratores. Agravado pela responsabilidade legal que determina caber ao Estado assegurar a integridade física daqueles que se encontram tutelados pelo mesmo ao cumprir pena nos estabelecimentos fechados.

            Reconstruindo a História

            No dia 2 de outubro de 1992, a rebelião dos presidiários do pavilhão 9, da Casa de Detenção do Carandiru, foi reprimida pela invasão de tropas da Polícia Militar e resultou na maior chacina da história das penitenciárias brasileiras: a morte de 111 detentos. Na manhã do dia 2 de outubro de 1992 os presidiários jogavam futebol. Durante o jogo entre o time da turma da alimentação e o time dos encarregados da faxina, ocorreu um desentendimento entre dois detentos causado pela disputa de espaço no varal do segundo pavimento do pavilhão 9. "Barba" pendurava sua roupa no varal quando foi provocado verbalmente por "Coelho". "Barba" acertou um soco em "Coelho" que utilizou um pau, que escorava a corda do varal, atingindo "Barba" na cabeça, que foi socorrido por agentes penitenciários, sendo levado para enfermaria. "Coelho" é agredido por agentes penitenciários e é levado embora. O portão que dá acesso ao segundo pavimento foi trancado pelos guardas, fato que causa a reação dos presos, que quebram a fechadura e iniciam o tumulto. Um amigo de "Barba" considera a agressão covarde e desafia um comparsa de "Coelho" para brigar. Um agente penitenciário tenta apartar, mas é ameaçado por outros detentos, que querem que a briga continue. O tumulto cresce. O sentinela PM Leal vê o agente penitenciário no meio do grupo e, mirando o fuzil, ordena que soltem o Carcereiro. Um outro agente penitenciário grita para que o alarme seja acionado. O alarme soa. Pelo telefone da guarita, o PM Leal comunica o Batalhão da Guarda alertando que há rebelião no Pavilhão 9. Às 13h50, carcereiros tentam sem sucesso conter as brigas entre os presidiários. Não há possibilidade de fugas dos detentos, não há reféns e tão pouco reivindicações por parte dos presos (negrito nosso). Às 14h00, os carcereiros haviam abandonado o local. O pavilhão 9 estava controlado pelos presos para o acerto de contas entre eles. Na gíria carcerária, "a casa virou".

            O Coronel Ubiratan Guimarães, Comandante do Policiamento Metropolitano tomou conhecimento dos acontecimentos na Casa de Detenção por meio do rádio do Comando de Policiamento (Copom), que havia sido avisado pelo Dr. Ismael Pedrosa, Diretor da Casa de detenção. Dirigiu-se ao local e foi informado sobre a situação, pede auxilio ao Comando do Policiamento de Choque de São Paulo, Tenente Coronel PM Luiz Nakaharada, que envia reforço. O Cel.Ubiratan Guimarães se reúne também com os juizes Ivo de Almeida e Fernando Antônio Torres Garcia para avaliar a situação. Cel Ubiratan Guimarães conversa por telefone com o então Secretário de Segurança Pública, Dr. Pedro Franco Campos, que entra em contato com o Governador do Estado de São Paulo, Luis Antônio Fleury Filho. Às 14h51, avalia-se que a situação é grave e é oficializada a passagem do comando da decisão para a Polícia Militar. Autoridades superiores ao Cel. Ubiratan avaliam a necessidade de uma invasão a Casa de Detenção. Às 15h30, a tropa de choque, sob o comando do Cel. Ubiratan, estaciona do lado de fora da muralha. De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público, apesar do grande tumulto e de sinais de fogo, não havia perigo de fuga. Com a chegada da Polícia Militar, os presos começaram a jogar estiletes e facas para fora, demonstrando que não resistiriam à invasão. Alguns colocam faixas nas janelas, indicando um pedido de trégua. As autoridades reunidas decidem que, antes da invasão do pavilhão 9, o diretor da Casa de Detenção, com um megafone, iria tentar uma última negociação. Entretanto, soldados do Grupo de Ações Táticas Especiais quebram o cadeado e correntes do portão do pavilhão 9, enquanto o Cel Ubiratan se reúne com os comandantes dos 1º, 2º e 3 º Batalhões do Choque da Polícia Militar. Não houve negociação alguma. As tropas da Polícia Militar afastaram do caminho o Dr. Pedrosa e invadiram o pavilhão 9 sob o comando e instrução do Cel Ubiratan Guimarães, às 16h30, ação que seguiu até às 18h30. Trezentos e vinte cinco policiais militares ingressaram no pavilhão 9 sem as respectivas insígnias e crachás de identificação. Depois da tomada do térreo, sem resistência ou reação com armas de fogo por parte dos presos, segundo o depoimento dos próprios policiais envolvidos na ação, exceto o depoimento do Cel. Ubiratan, os policiais partiram para os andares superiores. Não foi permitida a presença de autoridades civis durante a invasão. A maioria dos presos refugiouse nas suas celas, onde muitos deles foram mortos. Os PMs dispararam contra os presos com metralhadoras, fuzis e pistolas automáticas, visando principalmente a cabeça e o tórax. Na operação também foram usados cachorros para atacar os detentos feridos. Ao final do confronto foram encontrados 111 detentos mortos: 103 vítimas de disparos (515 tiros ao todo) e 8 morreram devido a ferimentos promovidos por objetos cortantes. Não houve policiais mortos. Houve ainda 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais militares.

            O Cenário Político

            Ao situarmos o contexto histórico e político em que ocorreu o Massacre do Carandiru ficam evidentes os diversos paradoxos e as ações continuadas que interferiram, seja na produção de provas para o processo jurídico, seja na formação da opinião pública. Á época os acontecimentos nacionais sugeriam a expansão política e a consolidação dos direitos políticos e instituições democráticas. Os meses de agosto e setembro tinham sido marcados por debates públicos e mobilizações populares sobre a "ética na política". A invasão da Casa de Detenção ocorreu na véspera das eleições municipais. A prefeita da cidade de São Paulo na época era Luiza Erundina, do Partido dos Trabalhadores. Já era previsível que a oposição liderada por Paulo Maluf venceria as eleições. Mais uma vez a tendência política se inclinava para as forças sociais politicamente conservadoras. O governador do Estado de São Paulo era Luiz Antônio Fleury Filho, do PMDB, ex-secretário de Segurança do governador Orestes Quércia. O governador Fleury não havia adotado uma política de segurança pública que viesse a coibir a violência policial ilegal. Essa tendência é verificada pelos números de civis mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, ascendentes de 1990 a 1992. Em 1990, foram 585 civis mortos pela PM-SP. Em 1991, foram 1140. Em 1992, 1359.

            A conjuntura eleitoral na qual ocorreu a invasão da Casa de Detenção provavelmente motivou o retardamento na divulgação das informações, e no encobrimento das reais dimensões dos fatos ocorridos. O governador Fleury, e o Secretário de Segurança Pública Pedro Franco Campos, somente concederam informações completas sobre o número de mortos 24 horas depois do evento, no dia 3 de outubro, por volta das 17 horas, quase no final da votação. Dessa maneira, o conflito na Casa de Detenção que ocorreu antes das urnas fecharem não pode afetar a disputa eleitoral municipal, nem prejudicar o desempenho do candidato do PMDB, Aloysio Nunes Ferreira Filho. O Caso do Carandiru foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação, obteve a atenção e o acompanhamento diário por parte da imprensa. Várias pesquisas de opinião pública foram realizadas para conhecer a posição da sociedade em relação ao massacre. O Datafolha realizou 1079 entrevistas com habitantes da cidade de São Paulo, 98% dos Em revistados sabiam do acontecimento. É importante frisar que a concordância com o massacre do Carandiru foi sempre uma opinião minoritária entre os paulistanos. Entre os entrevistados, 53% discordava da ação da PM, 18% estavam indecisos e 29% concordavam com a ação. A pesquisa foi feita quando não se sabia ao certo quais eram os fatos, devido à censura do governo e do encobrimento e sonegação de informações da PM de São Paulo. Confrontava-se duas versões opostas sobre os acontecimentos. Uma considerava o ocorrido uma chacina desnecessária, fruto de uma ação policial arbitrária e criminosa e a outra versão sustentava o episódio como resultado de um confronto entre os policiais e os detentos. Ainda nesta questão 53% dos entrevistados não concordaram com a ação da PM e 52% não acreditavam na versão do confronto, os que acreditam nesta versão representaram 39%.

            O Perfil dos Presos Mortos

            Um levantamento das vítimas mostrou que 80% ainda esperavam por uma sentença definitiva da Justiça, ou seja ainda não haviam sido condenados. Só 9 presos tinham recebido penas acima de 20 anos. Quase a metade dos mortos – 51 presos – tinha menos de 25 anos e 35 presos tinha entre 29 e 30 anos. No dia 2 de outubro de 92, 66% dos detentos recolhidos na Casa de Detenção eram condenados por assalto. Os casos de homicídios representavam 8%.

            A Cena do Crime

            Imediatamente após o massacre, os policiais militares modificaram a "cena do crime", destruindo provas valiosas que teriam possibilitado a atribuição de responsabilidade pelas mortes a indivíduos específicos. O acesso de civis aos andares superior do Pavilhão 9 ficou impedido, enquanto a PM dava ordens aos detentos para que removessem os corpos dos corredores e celas a fim de empilhá-los no 1° andar. As atividades da perícia foram dificultadas pela quantidade de cadáveres, e pela faxina feita no presídio pelos policiais militares e a remoção ilegal dos corpos ordenada pelos oficiais. A perícia policial chegou ao local às 21h30 do dia 2 de outubro e procedeu ao exame técnico do térreo e do 1° andar, tendo observado indícios de fogo e uma barricada no andar térreo. No 1° andar, encontrou de 80 a 85 corpos empilhados no corredor. Os corpos não foram fotografados individualmente. A perícia só voltou ao local do crime uma semana depois.

            A perícia concluiu que só 26 detentos foram mortos fora de suas celas. Os presos mortos foram atingidos na parte superior do corpo, nas regiões letais como cabeça e coração. Os exames de balística informam que os alvos sugerem a intenção premeditada de matar. Um detento tinha 15 perfurações de disparos de arma de fogo no corpo. No total entre os 103 mortos, a cabeça foi alvo de 126 balas, o pescoço alvo de 31, e as nádegas levaram 17 balas. Os troncos tiveram 223 tiros. Os laudos periciais concluíram que vários detentos mortos estavam ajoelhados, ou mesmo deitados, quando foram atingidos. Diante de tamanha violência, muitos detentos se jogaram sobre os corpos que estavam no chão, fingindo-se de mortos para conseguir sobreviver.

            A Polícia Militar afirmou que os detentos tinham armas e apresentou dezenas de armas brancas e 13 armas de fogo. O informe balístico informa que "todas as armas apresentam em suas superfícies sinais de oxidação normalmente encontrados em condições de armazenagem em ambientes inadequados". Essas informações levam a creditar que as armas foram "plantadas". A tese de que houve confronto armado entre policias militares e detentos não é sustentada pelas provas dos autos do processo. A legitima defesa alegada pela cúpula da Polícia Militar não tem fundamento nos fatos. O laudo do Instituto de Criminalística concluiu: "Em todas as celas examinadas, as trajetórias dos projéteis disparados indicavam atirador(es) posicionado(s) na soleira das celas, apontando sua arma para os fundos ou laterais (...) Não se observou quaisquer vestígios que pudessem denotar disparos de armas de fogo realizados de dentro para fora das celas, indicando confronto entre as vítimas-alvo e os atiradores postados na parte anterior da cela". O relatório de criminalística termina com a afirmação de que não fora possível elaborar conclusões mais profundas porque "(...) o local dava nítidas demonstrações de que fora violado, tornando-o inidôneo para a perícia".

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1. INtrodução

            No dia 02 de outubro de 1992, quando ocorreu a invasão da Casa de Detenção do Carandiru e a Polícia Militar do Estado de São Paulo promoveu a chacina de 111 homens, o Brasil estava por completar quatro anos de reabertura democrática e de promulgação da Constituição da República.

            De um lado, havia a esperança de construção de novas bases para a participação democrática, seja pelo clima favorável que as primeiras eleições diretas e universais para Presidente da República provocaram, seja por, a partir daquele momento, haver o amparo de um texto constitucional comprometido com esta mesma participação popular, pois a considera como seu eixo central na efetivação do Estado Democrático de Direito.

            De outro, o assassinato daquelas 111 pessoas demonstrou a fragilidade de nossa democracia, absolutamente carente das condições materiais essenciais para seu crescimento e fortalecimento, e colocou um questionamento essencial. Que sociedade é esta que produziu o fuzilamento de homens encurralados dentro de celas, feito bichos raivosos que precisam ser executados para que não causem mal a mais ninguém? E tudo que ocorreu no desenrolar dos acontecimentos daí oriundos demonstra o quão frágil realmente é nossa democracia. E, talvez, seja preciso arriscar que nunca conseguimos uma real democracia, na melhor acepção que esta palavra possa traduzir, com toda a carga histórica que traz em si.

            E não é o caso de nos contentarmos com o fato de que não mais se corre o risco de ser preso, torturado e morto, por questionar o sistema político, econômico e social, como aconteceu por mais de vinte anos no Brasil e em outros países, especialmente nossos vizinhos, como Chile e Argentina. Realmente foram avanços que não se pode desmerecer, pois trazem em si a história da própria sociedade brasileira e de seus filhos que foram mortos por lutarem por uma sociedade mais justa e igualitária.

            As experiências por que passam um povo nunca poderão ser inteiramente sentidas pelas novas gerações, que terão a seu favor apenas a atualidade – o que em si mesmo já é uma imensa responsabilidade – como a maior demonstração do que deve ser feito para se construir o futuro. O presente é o resultado histórico do passado e as potencialidades do futuro. E, por isto mesmo, para que as potencialidades se transformem em força material de mudança, alguns questionamentos não podem deixar de serem feitos, principalmente para que toda uma geração não se perca em um vazio histórico que apenas legitima a ordem vigente. É preciso construir um sentido histórico, reconhecendo avanços alcançados, mas nunca limitando o impossível ao possível.

            Neste sentido, cabe perguntar: será mesmo possível a construção de uma democracia nos moldes econômicos, políticos e sociais nos quais está estruturada nossa sociedade? Será mesmo possível a construção de uma democracia desarticulada de suas condições materiais indispensáveis, representadas por toda uma gama de direitos fundamentais, individuais e sociais, consagrados na Constituição da República e em declarações internacionais de direitos, tais como a Declaração de Direitos do Homem das Nações Unidas ou o Pacto de São José da Costa Rica? Será mesmo possível a concretização de anseios democráticos no sistema capitalista de produção, principalmente na sua atual conformação, neoliberal por excelência, dentro das especificidades brasileiras de capitalismo periférico?

            Poder-se-ia argumentar que o aporte normativo nascido e adotado pelos constituintes com a promulgação da Constituição da República de 1988 trouxe inserto um novo paradigma, o do Estado Democrático de Direito, a ser construído por uma prática sócio-jurídica engajada, que admita a desigualdade da ordem econômica e estabeleça, pela ordem jurídica – daí o caráter "de Direito" desta nova concepção de Estado – novas responsabilidades para com o desenvolvimento da igualdade, que já não poderá encerrar-se na mera igualdade jurídico-formal, mas deverá, sobretudo – daí seu caráter "Democrático" – propiciar uma igualdade substancial.

            Porém, as mudanças sociais somente virão quando a própria sociedade conseguir superar os limites decorrentes da diversidade de fatores que lhe condiciona à manutenção das condições econômicas, políticas, sociais e culturais postas. E isto vai de encontro à superação dos limites impostos pela própria estrutura jurídica, enquanto realidade que permite conformar as relações sociais ao que interessa para a manutenção de índices concretos de desigualdade.

            É preciso reconhecer que a ordem jurídica tanto pode oprimir como emancipar, o que dependerá fundamentalmente do modo como estão dadas as condições materiais de existência da população, pois será a partir das contradições geradas por tais condições materiais que retirar-se-á o caminho para a sua superação.

            Por mais que a concepção de Estado Democrático de Direito tente nos alertar para a necessidade de construção de bases sólidas de participação democrática para além de sua perspectiva formal, o critério da contradição social – a partir da qual abrem-se potencialidades para avanços ou recuos1 – ao qualificar a estrutura jurídica com toda a carga de questionamentos que lhe são próprios, insita esta estrutura jurídica a se manifestar com toda sua força repressora, desocultando seu caráter opressor e trazendo à tona a necessidade de novas bases de legitimidade.

            As contradições da ordem jurídica são inevitáveis, sendo preciso desenvolvê-las ao máximo, alcançando um ponto limite, após o qual a própria sociedade não a reconheça mais como sua, e construa novas formas de poder 2.

            A superação desta ordem jurídica pela exploração de suas contradições passa, necessariamente, pela superação do complexo de estruturas que tornam real a faceta opressora da ordem jurídica. Pois, por mais que haja uma construção filosófica de justificação para o Direito, naquilo a que se propõe a concepção de Estado Democrático de Direito, o Direito real será aquele produzido pelo complexo de estruturas que se encarregam de aplicá-lo.

            E, no mais das vezes, a história brasileira está aí para demonstrar, a ordem jurídica vem sendo utilizada reiteradamente para oprimir setores sociais específicos que, a par de não vislumbrarem alternativas, imediatas e muito menos mediatas, têm em suas mãos os motivos para tomar para si a tarefa de construção daquelas novas formas de poder a que nos referimos acima.

            E, neste ponto, trazemos à tona a questão do sistema punitivo, complexo de instituições encarregadas de aplicar o Direito Penal – a partir da dinâmica imposta por um conjunto de normas de natureza instrumental – que, a par de pretender ser o reflexo de anseios por paz social, possui uma prática perversa que, agindo sobre pontos frágeis da dinâmica social, retira daí o substrato material apto a reproduzir ideologicamente o entendimento de que o crime representa um desvio daquilo que a sociedade, pretensamente um todo coeso, considera como moral e eticamente desejável.

            E não se pode contentar com a fundamentação segundo a qual as concepções penais do Estado Democrático de Direito funcionam como limite à atuação estatal frente ao indivíduo. Reconheça-se a força desses princípios na defesa da liberdade humana, mas admita-se que são insuficientes quando um conflito sócio-penal desenrola-se sem as devidas condições materiais que propiciem a efetivação destes princípios. Dentro da ordem de questionamentos a que este trabalho se propõe, é, no mínimo curioso, para não dizer ultrajante, o aporte financeiro direcionado pelo Estado brasileiro – em sentido lato – para o Ministério Público, em detrimento da Defensoria Pública. Levando-se em conta as funções político-jurídicas de cada qual, nota-se o compromisso deste Estado em alcançar níveis adequados de proteção da pessoa humana. A função punitiva sobressai-se, em muito.

            Que o fenômeno do crime pode ser percebido em qualquer sociedade é uma constatação a que se chega por leituras de documentos históricos dos diversos países. E que é necessário a constituição de uma estrutura preparada para lidar com tais fatos também não se questiona. Porém, constatar o fenômeno do crime em sociedades diversas e admitir que é necessária uma estrutura para lidar com este fenômeno não quer dizer absolutamente que isto signifique que setores sociais dominantes devam aproveitar-se dele para confirmar e reproduzir a desigualdade que os mantêm como dominantes.

            Este desvirtuamento pela prática do sistema punitivo dos princípios constitucionais que fundamentam nosso Estado Democrático de Direito não é sintomático da falta de compromisso para com princípios éticos de efetivação deste mesmo Estado Democrático de Direito.

            Este desvirtuamento é, antes de tudo, condição essencial para o desenvolvimento deste aparelho repressivo, pois, enquanto aparelho repressivo que é, antes de buscar a paz social a que pretende a ideologia oficial, sua função é reproduzir as contradições que não permitem que esta paz social exista, transmitindo apenas a sensação de que há alguma segurança. Sensação de segurança, aliás, somente para setores sociais que detêm o poder de Estado.

            A consideração do crime como condutas potencialmente aptas a assim tornarem-se sobreleva o aspecto histórico do que seja "crime", destacando-se que não interessa a conduta em si, mas, além disto, interessam as contradições que lhe dá origem. Assim, sociedades cujos fundamentos sejam contraditórios e, principalmente, estejam conformadas a um padrão histórico de exploração econômica, social e política, terá a criminalidade como fenômeno social que lhe delimita o caráter. Diante disto, a mera constatação a criminalidade passa a não ser o essencial.

            O essencial é destacar o processo de criminalização pois, quaisquer que sejam as condutas abstratamente tidas como passíveis de criminalização, o sistema punitivo construído sobre a exploração do trabalho as ultrapassará, e atingirá a dinâmica social, imprimindo aos segmentos sociais materialmente mais fracos, e subjetivamente frágeis – pois simplesmente submetem-se à ideologia oficial, sem questioná-la e, muito menos, construir seu próprio senso de realidade – o estigma criminalizante, que em última análise traz inserto toda a carga histórica que perpetua a desigualdade que assim as determinou.

            Ou seja, gera-se um círculo vicioso do qual não se pode sair senão por mudanças estruturais na sociedade, ainda que isto possa parecer utópico. Do contrário, seria melhor esquecer-se toda ordem de argumentações em prol da pessoa humana, pois tudo não passaria de mero discurso e, como tal, potencialmente apto a perpetuar as condições estruturais opressoras.

            É um risco que se corre, necessário, aliás, pois segundo Roberto Lira Filho3:

            Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Mas até a injustiça como também o Antidireito (isto é, a constituição de normas ilegítimas e sua imposição em sociedades mal organizadas) fazem parte do processo, pois nem a sociedade justa, nem a Justiça corretamente vista, nem o Direito mesmo, o legítimo, nascem dum berço metafísico ou são presente generoso dos deuses: eles brotam nas oposições, no conflito, no caminho penoso do progresso, com avanços e recuos, momentos solares e terríveis eclipses.

            Destaca-se o massacre do Carandiru como exemplo emblemático do que é nosso sistema punitivo por dois motivos.

            Primeiro, o perfil dos presos mortos na chacina, que, sem medo de errar, pode-se admitir como uma amostra de quem é preferencialmente punido pelo sistema punitivo brasileiro.

            Pelo relatório elaborado pelo ILANUD, 80% dos presos mortos ainda aguardavam julgamento, ou seja, o pressuposto essencial da punição, a responsabilidade penal, não havia sido sequer confirmada e os efeitos maléficos do sistema punitivo já se mostravam em todas as suas possibilidades de deterioração do ser humano. No mesmo sentido, 66% dos presos – da totalidade dos presos, e não apenas dos presos mortos – alí estavam por terem cometido o crime de roubo, contra o patrimônio, contra a propriedade privada.

            Em segundo lugar, o que não pode ser considerado simples coincidência, a Casa de Detenção do Carandiru era4 o maior complexo penitenciário da cidade de São Paulo, maior centro industrial da América Latina, síntese das mazelas sociais típicas do capitalismo periférico subdesenvolvido.

            O objetivo desta monografia é oferecer alguns elementos para uma análise crítica do sistema punitivo, naquilo que ele propicia para a reprodução social da desigualdade material decorrente do modo de produção capitalista, especificamente num país como o Brasil, de capitalismo tardio e dependente.

            O trabalho está estruturado a partir do desenvolvimento histórico brasileiro. Evidente que não se pretende aprofundar em temas históricos, porém, consideramos que, ainda que superficialmente, é necessária uma vinculação histórica, principalmente ao período colonial, quando foram estruturadas as bases do sistema punitivo brasileiro.

            Assim, o segundo capítulo cuida da contextualização histórica dos tempos atuais, desde fins da segunda guerra mundial, quando começou a se formar o que viria, hoje, a ser denominado de neoliberalismo.

            O terceiro capítulo traz uma digressão histórica, voltando-se os olhos para a formação colonial brasileira, passando pelos idos da proclamação da República, e da posterior inserção brasileira no sistema capitalista na sua condição de país de capitalismo periférico. Destes períodos e momentos históricos se extrairá a base cultural do senso de punição que orienta o sistema punitivo brasileiro.

            No quarto capítulo inserimos o debate criminológico, com a apresentação das diversas teorias criminológicas construídas, desde as primeiras incursões neste campo, pela Escola Clássica do Direito Penal, ainda que sem uma proposta propriamente criminológica, passando pelo positivismo criminológico, a primeira tentativa. Estas duas são apresentadas como a síntese do que posteriormente veio a ser denominado por Alessandro Baratta de Ideologia da Defesa Social. Ainda, teceremos alguns comentários sobre outras várias teorias criminológicas que, ainda com Alessandro Baratta, representam a negação de cada um dos princípios da Ideologia da Defesa Social.

            No quinto capítulo procederemos a uma conjugação das conclusões a que chegamos sobre a origem histórica do sistema punitivo brasileiro, ou seja, de que a base social sobre a qual ergueu-se nosso sistema punitivo constitui-se da miséria, da escravidão, da conscientização política e militarização, esta última como a resposta oferecida pelo Estado penal.

            Confrontando estes elementos com alguns dados da realidade atual, tentaremos alguns apontamentos acerca da reprodução social da desigualdade pelo sistema punitivo.

            No que respeita à miséria, utilizamos como ponto de partida dados sobre as ocorrências registradas na Polícia Civil no ano de 2005 quanto aos crimes de roubo e furto, comparando-os às ocorrências de homicídio doloso e lesão corporal, para destacar que o sistema punitivo age preferencialmente sobre condutas passíveis de criminalização que estão diretamente ligadas à contradições sociais estruturais, sem as quais o modo de produção capitaslista não se mantém.

            Quando à escravidão, focaremos principalmente as suas consequências para a construção de uma subjetividade que identifica no negro o estereótipo do criminoso, próprio e adequado para uma atuação direcionada do sistema punitivo.

            Sobre a conscientização política, destacamos o Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra e o Movimento do Sem Teto, cuja postura política construída a partir de questões específicas tem sido reiteradamente criminalizadas.

            Por fim, a militarização se apresenta como a resposta ideológica e material oferecida pelo sistema punitivo, na medida em que constrói-se um clima de terror na população, utilizado para fundamentar uma verdadeira construção de um Estado Penal, em detrimento de um Estado Social.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, André Luiz Corrêa. Pressupostos para uma análise crítica do sistema punitivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 872, 22 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7612. Acesso em: 29 mar. 2024.

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