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Direito Internacional Privado.

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Como podem tais normas ser valoradas segundo a perspectiva da Constituição?

Antes de mais, o DIP Actual está muito distante da concepção clássica, segundo a qual ele seria, na verdade, um direito exclusivamente formal, indiferente ao conteúdo das normas substanciais concorrentes e aos critérios e valores da justiça material.

O DIP de hoje, diferentemente do que outrora, se mostra aberto a certos juízos de valor jurídico-materiais. Sendo assim, como admitir que lhe seja lícito ignorar princípios que, exactamente por estarem ancorados na Constituição, figuram, por certo, no quadro dos valores fundamentais do ordenamento jurídico do Estado?

Conclui-se, pois, do exposto, que as regras de conflitos, mesmo aquelas que procedem à escolha da lei independentemente do resultado (e são a grande maioria), são susceptíveis de colidir com os princípios constitucionais, e de serem, assim, objecto de um juízo de inconstitucionalidade.

Com a reforma de 1977 do Código Civil português, foram objecto de alteração aqueles preceitos, de entre os do Capítulo relativo ao direito de conflitos, tidos por contrários à Constituição de 1976.

Relativamente à segunda questão suscitada neste número, devemos dizer que a Constituição da República Portuguesa (CRP.) consagra princípios com grande relevância em matéria de direito privado (v.g.: proibição de qualquer tipo de discriminação contra os filhos nascidos fora do casamento ― cfr. o artigo. 36º, n.º 4 da CRP).

Mas daqui não resulta a radical impossibilidade de se dar efeito entre nós a um direito estrangeiro que consagre ainda aquela distinção.

Os preceitos da lei estrangeira designada pela norma de conflitos que se não coadunem com os direitos fundamentais consagrados na legislação portuguesa são seguramente inaplicáveis, porque contrários à ordem pública internacional do Estado português. Só que, para tanto, será indispensável que, no caso, se encontrem verificados os pressupostos de relevância da ordem pública.


Pressupostos de relevância da ordem pública

- Deve tratar-se de valores da máxima importância do ordenamento do foro; e

- Deve existir uma conexão significativa da espécie a julgar com aquele ordenamento.

Assim, à norma da lei estrangeira designada como aplicável ao caso pela regra de conflitos da «lex fori» seria dada, em princípio, aplicação, independentemente de ela colidir com um preceito constitucional sobre direitos fundamentais.

É esta a solução para a qual devemos nos inclinar, não obstante devamos também contemperar esta solução pela forçosa intervenção da cláusula geral da ordem pública internacional.

Por fim, relativamente ao último dos problemas suscitados neste número, a questão que se coloca é a de saber se, no momento de aplicar a lei estrangeira designada como competente pela norma de conflitos da «lex fori», não deverá o juiz do foro tomar em consideração o facto de dado preceito ou grupo de preceitos não ser válido ― e por tal razão não ser aplicável ― no âmbito da «lex causae», em função da relação de incompatibilidade existente entre ele e a respectiva Constituição.

A resposta a este problema deve situar-se no plano dos critérios gerais que hão-de orientar o juiz na aplicação do direito estrangeiro. A este respeito, estabelece o artigo. 23º, n.º 1 do Código Civil que «a lei estrangeira é interpretada dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele fixadas». Assim, se em determinado sistema estrangeiro um certo preceito não é aplicado pelos tribunais ordinários por colidir com normas da respectiva Constituição, cabe ao juiz português dar a tal circunstância o devido valor e abster-se, do mesmo modo, de observá-lo.

Dito isto, conclui-se que: não cabendo ao julgador do foro sindicar a compatibilidade constitucional de preceitos da lei estrangeira, incumbe-lhe aplicar a mesma lei tal como ela seria aplicada pelo juiz do respectivo sistema jurídico. Aqui, portanto, assume relevância o facto de certa norma da «lex causae» considerada inconstitucional não ter aplicação nesse sistema. Do ponto de vista do foro, a referida relevância tem lugar, não por a norma em causa ser inconstitucional, mas por ela não ser aplicável no sistema a que pertence.

1.13. Âmbito do DIP

Até o momento, fizemos referência apenas ao problema do conflito de leis. Mas pergunta-se: residirá apenas em tal questão todo o objecto do DIP.?

Quanto a esta questão deparam-se-nos diversas orientações.

1.13.1. Doutrina alemã e italiana

A doutrina alemã, adoptada também em Itália, restringe o âmbito do DIP ao problema do conflitos de leis.

Apesar de, para os autores germânicos, o DIP ser tão somente um «Kollisionsrecht», os tratados dedicados ao DIP também se ocupam das matérias do direito processual civil internacional, com especial destaque para as que dizem respeito ao reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras.

1.13.2. Doutrina anglo-saxónica

A doutrina anglo-saxónica inclui no âmbito do DIP («Private International Law, Conflict of Laws») o estudo de 3 (três) questões:

a) a da lei competente («choice of law»);

b) a da jurisdição competente («choice of jurisdiction»); e

c) a do reconhecimento das sentenças estrangeiras.

1.13.3. Doutrina francesa:

A doutrina francesa engloba no âmbito do DIP o estudo das seguintes questões:

a) a nacionalidade;

b) a condição dos estrangeiros;

c) o conflito de leis; e

d) o conflito de jurisdições.

Alguns representantes desta escola, entre os quais PILLET, apontavam para a existência, a par da questão do conflito de leis, de um problema autónomo, qual seja, o do reconhecimento dos direitos adquiridos em país estrangeiro. Foi esta a orientação seguida, entre nós, por MACHADO VILLELA.

Não obstante, apesar da grande relevância do princípio do reconhecimento dos direitos adquiridos, não nos parece justificável a referida autonomização relativamente ao problema do direito de conflitos, pois o reconhecimento de um suposto direito adquirido não prescinde da averiguação de se o alegado direito efectivamente existe segundo os preceitos de uma lei que se possa considerar competente segundo os preceitos de DIP do Estado do foro, isso porque não basta que o alegado direito adquirido seja como tal reconhecido por um qualquer sistema jurídico, sendo indispensável que o seja pelo sistema tido por competente para regular o caso concreto.

Assim, a determinação da lei competente constitui um «prius» relativamente ao reconhecimento de um suposto direito adquirido. A mais, em princípio, as regras de conflitos aplicam-se quer às relações a constituir em Portugal, quer às situações já constituídas no estrangeiro.

Uma vez determinada a lei aplicável à situação litigiosa, não há senão que proceder à aplicação das normas dessa lei que, precisamente, se referem aos factos considerados: é esta lei competente que dirá se, no caso concreto, há ou não um direito adquirido a respeitar.

Em suma, se o reconhecimento de um direito como legitimamente adquirido decorre sem mais do reconhecimento da competência da lei que presidiu à constituição do mesmo direito, e se não é pelo facto de ser um direito constituído no estrangeiro que a questão da determinação da lei aplicável se coloca em face das regras de conflitos da «lex fori», então podemos legitimamente concluir que o reconhecimento de direitos adquiridos no estrangeiro não deve ser considerado um problema autónomo face ao problema do conflito de leis.

Qual destas doutrinas devemos adoptar?

A doutrina francesa coloca o acento tónico no ponto de partida; assim, para esta corrente doutrinária, a atitude correcta a adoptar seria reduzir o problema do DIP ao conflito de leis e jurisdições. Ao DIP competiria indicar por qual legislação se resolvem as questões emergentes das relações privadas internacionais e, outrossim, as regras sobre competência internacional dos tribunais e o reconhecimento de sentenças estrangeiras. Assim, trata-se de princípios jurídicos de uma natureza muito especial, pois são princípios que, em regra, nada dizem sobre o sentido da composição dos conflitos de interesses, nem sobre os direitos e deveres dos indivíduos.

As demais doutrinas optam por imprimir um conteúdo homogéneo às normas de DIP., considerando que fazem parte do DIP os domínios que inscrevem normas de DIP.

Segundo FERRER CORREIA, incluímos no âmbito do DIP 3 (três) ordens de questões:

1. conflitos de leis; e

2. duas questões de direito processual civil internacional:

a) competência internacional; e

b) reconhecimento de sentenças estrangeiras.

Mas o que fazer com os outros domínios?

São questões que podem ser levantadas numa situação privada de direito internacional; são domínios afins do DIP e, como tal, temos que os referenciar nos aspectos em que eles ajudam a resolver questões de DIP Mas não são autonomizáveis.

Assim sendo, diante do problema da delimitação do âmbito do DIP.:

- Em primeiro lugar: devemos fazer consistir o seu objecto numa matéria forte / homogénea, núcleo de questões da mesma natureza e a resolver por métodos idênticos.

Ideias tradicionais:

- É correcto reduzir o problema do DIP ao problema do conflito de leis (escolha da lei aplicável). Ao DIP., assim, competirá unicamente indicar por qual legislação se resolvem as questões emergentes das relações internacionais privadas.

- Direito de conflitos: trata-se sempre de princípios de uma natureza muito especial, pois nada dizem sobre o sentido da composição dos conflitos de interesses.

- Normas de conflitos: não provêem, elas próprias sobre o regime das relações sociais, não são normas de direito substancial, mas são puramente instrumentais.

1.13.4) Direito da nacionalidade:

«O direito da nacionalidade é composto por normas materiais definidas unilateralmente e soberanamente por cada Estado, tendo por missão enumerar os factores de aquisição e/ou perda da cidadania, definindo as condições de atribuição, no âmbito do direito local, de um dentre dois estatutos: nacional ou estrangeiro». Releva para o DIP., pois, muitas vezes, o conceito de nacionalidade é apontado como elemento de conexão.


Artigos 25º e 31º do CC

Se, por exemplo, tratar-se de uma questão relativa ao estatuto pessoal (direitos de personalidade, capacidade e estado, relações de família, sucessões «mortis causa»), dever-se-á aplicar a lei da nacionalidade, pois é esta a lei pessoal do sujeito da relação.

Note-se que, relativamente a esta questão, no sistema anglo-saxónico seria aplicável a lei do domicílio.

Observação: discute-se se se pode ou não falar de nacionalidade das pessoas colectivas. Em bom rigor, não se poderia falar de nacionalidade quanto a pessoas colectivas e, ainda, no campo do DIP., o critério para as pessoas colectivas é o da sede real e efectiva.

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FERRER CORREIA, porém, entende que tem utilidade falar de um vínculo análogo à nacionalidade das pessoas singulares para as pessoas colectivas, desde logo, para a protecção diplomática da nacionalidade.

1.13.4.1. Conflitos de nacionalidade

Tal como os conflitos de leis, os conflitos de nacionalidade podem ser positivos ou negativos ― verifica-se tal problema quando um indivíduo tem mais do que uma nacionalidade (ele é plurinacional ou polipátrida).


Então, qual a nacionalidade relevante quando a questão disser respeito ao estatuto pessoal ― à qual, como vimos, seria aplicável a lei nacional, assim como prescrevem os artigos 25º e 31º, n.º 1 do CC ― mas sendo o sujeito polipátrida?

Essa operação faz-se segundo os seguintes critérios enunciados nos artigos 27º e 28º do Código Civil:

- Artigo 27º: Tratando-se de um conflito de nacionalidades portuguesa e estrangeira.

Se a questão for colocada aqui em Portugal, prevalece sempre a nacionalidade portuguesa, por muito exíguo que seja o contacto com Portugal.

A questão complica-se se o sujeito for polipátrida e nenhuma das nacionalidades for a portuguesa.

- Artigo 28º: Nacionalidade do Estado em cujo território tenha a sua residência habitual.

Competente não é a lei da residência, mas a da nacionalidade, pois não se pode mudar de critério.

― Nunca se muda de critério ―

V.g.: Casamento de A, que é francês e espanhol (duas nacionalidades concorrentes).

a)Se o casamento ocorre em França: a nacionalidade relevante é a francesa, logo, será competente a lei francesa.

b)Se o casamento ocorre em Espanha: a nacionalidade relevante passa a ser a espanhola e, portanto, competente será a lei espanhola.

c)Se o casamento for celebrado na Alemanha: relevará a nacionalidade do Estado com o qual tenha uma vinculação mais estreita (depende desta averiguação).

Por sua vez, estaremos perante um conflito negativo de nacionalidade se o sujeito da questão não tiver nenhuma nacionalidade (apátrida). Tal situação pode ocorrer devido ao facto de a nacionalidade perder-se automaticamente por efeito da lei (v.g.: antigamente em Portugal, uma mulher que casasse com um estrangeiro perdia, por efeito automático do casamento, a nacionalidade portuguesa).

O que fazer em tais casos?

Artigo 8º do CC: vamos ter que lhe encontrar um outro estatuto, uma outra lei pessoal.

Artigo 32º do CC: → Se o sujeito for maior e não interdito, dever-se-á aplicar a lei da sua residência habitual

→ Se o sujeito for menor e interdito, aplicar-se-á a lei do domicílio legal

Caso não tenha residência habitual, manda o artigo 32º, n.º 2 do CC. que remete para o artigo 82º, n.º 2 do mesmo diploma legal que seja aplicada a lei da residência ocasional e, se esta não puder ser determinada, deve aplicar-se a lei do lugar onde o sujeito se encontrar (aplica-se aqui a noção de paradeiro).

1.13.5) Direito dos estrangeiros:

Entende-se por direito dos estrangeiros o conjunto de normas materiais de direito público ou de direito privado que reservam para os estrangeiros um tratamento diferente daquele que é reconhecido pelo direito local aos seus nacionais. São, portanto, normas discriminatórias que estabelecem, em relação aos estrangeiros, incapacidades de gozo de certos direitos.

Em regra, os estrangeiro são equiparados aos nacionais quanto ao gozo de direitos privados, assim como estabelece a 1ª (primeira) parte, do n.º 1 do artigo 14º do Código Civil. Só assim não será quando houver disposição legal que diga o contrário, assim como reza o artigo 14º, n.º 1, «in fine» do Código Civil, ou quando se verifique o pressuposto do n.º 2 do mesmo preceito legal.

Em princípio, todos os Estados reconhecem capacidade jurídica a todas as pessoas, mas a medida dessa capacidade jurídica pode variar.

Adverte FERRER CORREIA: imaginemos que não se estabelece qualquer limite a um estrangeiro; nessa situação não podemos dizer que todos os estrangeiros gozam sempre daquele direito.

O exercício concreto daqueles direitos vai depender da lei que se considere competente.

1.13.5.1) Princípios relativos ao direito dos estrangeiros:

1.Princípio da equiparação (artigo 15º da CRP. E artigo 14º do CC.): segundo este princípio, os estrangeiros (pelo facto de o serem) devem gozar, salvo certas limitações, dos mesmos direitos que os nacionais. Isso não significa, contudo, que eles gozem dos mesmos direitos reconhecidos aos portugueses. Podem ter mais ou menos direitos, tudo dependendo da lei considerada aplicável «in casu». Este princípio, em suma, apenas significa que a condição de estrangeiro não é, em regra, motivo suficiente para qualquer restrição à capacidade de gozo de direitos por parte dos estrangeiros.

2.Princípio da reciprocidade (artigo 14º, n.º 2 do CC.): não são atribuídos aos estrangeiros os direitos que, sendo reconhecidos pelo respectivo Estado aos seus nacionais, o não sejam aos portugueses em igualdade de circunstâncias (trata-se de outro limite ao princípio da equiparação).

Este princípio, assim, só funciona quando um estrangeiro pretende exercer em Portugal um direito que o respectivo Estado da sua nacionalidade reconhece aos seus súbditos ou aos súbditos de outros Estados com os quais mantenha relações particulares, mas recusa o exercício dos mesmos, em igualdade de circunstâncias, aos portugueses pelo facto de serem estrangeiros ou apenas porque são portugueses.

Assim, tem de haver um tratamento discriminatório dos portugueses fundado na simples circunstância de estes serem portugueses ou estrangeiros. Podem, contudo, ser reconhecidos aos estrangeiros em Portugal direitos que o respectivo Estado não reconhece aos portugueses, desde que este não reconhecimento não tenha carácter discriminatório.

Há, no entanto, estrangeiros que gozam ou podem gozar de um estatuto especial de equiparação ― cfr. o artigo 5º, n.º 3 da CRP.

Princípio da não discriminação em função da nacionalidade em relação a direitos nele existentes ― inscritos (cfr. o artigo 6º do Tratado de Roma).

1.13.6. Competência Internacional

É constituída por um conjunto de regras de direito processual internacional (são regras de direito adjectivo público aplicadas ao DIP que é direito privado), marcadamente unilaterais na medida em que cada ordem jurídica determina as regras de competência internacional dos seus tribunais. Por outras palavras, cada Estado delimita as situações em que os seus tribunais podem resolver questões internacionais.

Há analogias ou pontos de contacto entre este problema e o do conflito de leis: neste está em causa a lei competente, naquele, o problema da jurisdição competente.

Contudo, as normas de conflitos de jurisdições ou competência internacional não têm a mesma estrutura que as normas sobre conflitos de leis.

As normas sobre o problema do conflito de jurisdições limitam-se a indicar as hipóteses em que os tribunais do Estado a que pertencem têm competência internacional → é este o objectivo directo e primário.

Indirectamente vêm a assumir a feição de verdadeiras normas de conflitos de jurisdições

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Sobre o autor
José Eduardo Dias Ribeiro da Rocha Frota

licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FROTA, José Eduardo Dias Ribeiro Rocha. Direito Internacional Privado.: Parte Geral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 921, 8 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7714. Acesso em: 28 mar. 2024.

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