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A dignidade da pessoa humana e o crime de racismo.

Uma visão casuística de hermenêutica constitucional com base em Robert Alexy

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02/07/2006 às 00:00
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1. Introdução

            A importância do tema se revela frente às questões, por vezes latente, por vezes publicamente, do desrespeito do princípio da dignidade da pessoa humana, na sua faceta da igualdade de raças, quanto ao crime de racismo constitucionalmente previsto.

            Exemplo notório, que teve grande repercussão pública, foi o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do caso Ellwanger, no Habeas Corpus nº 82.424-2, originário do Rio Grande do Sul, de relatoria do Ministro Moreira Alves, em que o escritor gaúcho Siegfried Ellwanger impetrou habeas corpus contra condenação pela prática do crime de racismo contra a comunidade judaica, inclusive operando a sua imprescritibilidade.


2. A dignidade da pessoa humana como direito fundamental

            Primeiramente, deve-se observar o conceito de direito fundamental, a fim de situar-se no tema.

            Para o professor espanhol Gregório Peces-Barba Martínes, há a necessidade de utilizar-se a terminologia correta sobre estes direitos inerentes a todos os seres humanos, ou seja, direitos fundamentais seriam mais apropriados do que direitos humanos, como se lê:

            El término «derechos humanos» es sin duda uno de los más usados en la cultura jurídica y política actual, tanto por los científicos y los filósofos que se ocupan del hombre, del Estado y del Derecho, como por los ciudadanos. No en vano se puede decir que tiene esa idea de derechos humanos, un significado similar al que tuvo en los siglos XVII y XVIII la de Derecho natural. Por su función reguladora de la legitimidad de los sistemas políticos y de los ordenamientos jurídicos, y por la convicción de muchos hombres de que constituyen una garantía para su dignidad, y un cauce, el cauce principal, para su libertad y su igualdad, la comprensión adecuada de los derechos es no solo una tarea teórica, sino de un gran alcance práctico.

            E o mesmo autor conclui o pensamento:

            Desde que inicie, entonces casi en solitario, el estudio de estos temas, tengo preferencia por «derechos fundamentales», como forma lingüística más precisa y procedente. Las razones que entonces motivaron esta decisión y que hoy no sólo permanecen, sino que se han fortalecido ante el panorama lingüístico que acabo de presentar, son las siguientes: a) Es más precisa que la expresión derechos humanos y carece del lastre de la ambigüedad que ésta supone. b) Puede abarcar las dos dimensiones en las que aparecen los derechos humanos, sin incurrir en los reduccionismos iusnaturalista o positivista. [...] c) Es más adecuado que los términos «derechos naturales» o «derechos morales» que mutilan a los derechos humanos de su faceta jurídico positiva, o dicho de otra forma, que formulan su concepto si tener en cuenta su dimensión jurídico positiva. Las tradiciones lingüísticas de los juristas atribuyen al término «derechos fundamentales» esa dimensión vincunlándola a su reconocimiento constitucional o legal. d) Es más adecuado que los términos «derechos públicos subjetivos» o «libertades públicas» que pueden perder de vista la dimensión moral, y ceñir la estipulación del sentido a la faceta de la pertenencia al Ordenamiento.

            Ingo Wolfgang Sarlet faz precisa distinção entre a nomenclatura direitos fundamentais e direitos humanos:

            Em que pese sejam ambos os termos ("direitos humanos" e "direitos fundamentais") comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira, e diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direitos constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão "direitos humanos" guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

            O mesmo entendimento apresentam os constitucionalistas brasileiros, entre eles Paulo Bonavides, José Afonso da Silva, Paulo Márcio Cruz, entre outros.

            Deste modo, entendendo que o mais correto seria a utilização da expressão direitos fundamentais, passa-se a conceituá-la.

            Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais. É com esse conteúdo que a expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, expressamente, no art. 17.

            E novamente com Peces-Barba, pode-se definir os direitos fundamentais como:

            […] facultad que la norma atribuye de protección a la persona en lo referente a su vida, a su libertad, a la igualdad, a su participación política o social, o a cualquier otro aspecto fundamental que afecte a su desarrollo integral como persona, en una comunidad de hombres libres, exigiendo el respecto de los demás hombres, de los grupos sociales y del Estado, y con posibilidad de poner en marcha el aparato coactivo de Estado en caso de infracción.

            Visto isto, e considerando que a dignidade da pessoa humana é um direito fundamental insculpido na Constituição Federal Brasileira, conforme artigo 1º, inciso III, passa-se a analisar este princípio constituicional fundamental.

            Para José Afonso da Silva: "Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida."

            A dignidade humana consiste não apenas na garantia negativa de que a pessoa não será alvo de ofensas ou humilhações, mas também agrega a afirmação positiva do pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo. O pleno desenvolvimento da personalidade pressupõe, por sua vez, de um lado, o reconhecimento de total autodisponibilidade, sem interferências ou impedimentos externos, das possíveis atuações próprias de cada homem; de outro, a autodeterminação [...] que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que de uma predeterminação dada pela natureza.

            E com Alexandre de Moraes pode-se afirmar que "a dignidade da pessoa humana" concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, uma vez que se fazem próprias às personalidades humanas. A dignidade, isso deve ser ressaltado, é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais.


3. Da Hermenêutica Constitucional de Robert Alexy

            Para uma precisa interpretação constitucional, na visão do jurista alemão Robert Alexy, necessário se faz entender a divisão existente nas normas jurídicas, que podem ser regras e podem ser princípios.

            Por regras, entende o autor:

            […] que solo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es valida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el âmbito de lo fáctica y jurídicamente posible.

            Enquanto que os princípios são assim definidos:

            [...] ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas.

            Possível assim compreender, dentro do chamado sistema de normas, a existência de regras e princípios, sendo, então, os princípios normas de caráter abstrato e geral, que via de regra convivem de forma colidente entre si.

            Então, quando houver a chamada antinomia de regras, uma das regras necessariamente deixará o ordenamento jurídico, enquanto que quando houver um choque entre dois princípios, necessário será se fazer uma ponderação, a fim de constatar qual o princípio, no caso, se sobressairá.

            O conflito de princípios [...], diferentemente das regras, ocorre no plano do peso e não da validade. Os princípios, a nível abstrato são válidos e hierarquicamente iguais. A colisão de princípios somente ocorre nos casos concretos, quando um princípio limita a possibilidade jurídica de outro. Ocorrendo colisão, utiliza-se a ponderação. A ponderação é composta por três máximas parciais: a adequação, a necessidade (postulado do meio mais benigno) e a proporcionalidade em sentido estrito (que é o postulado da ponderação em sentido estrito). As máximas da adequação e da necessidade consideram as possibilidades fáticas do caso concreto e a máxima da proporcionalidade em sentido estrito considera as possibilidade jurídicas. È importante destacar que as três máximas de ponderação são sempre aplicadas na ponderação, pois elas são como regras. A ponderação atribui a cada princípio um peso. È possível se atribuir peso aos princípios, pois estes são exigências de otimização, diferentemente das regras que têm caráter definitivo. Assim, um princípio pode ter diferentes graus de concretização, que depende das circunstâncias específicas do caso específico a ser resolvido (possibilidades fáticas) e dos demais princípios (possibilidades jurídicas). O grau de realização de um princípio num determinado caso depende do peso que lhe é atribuído frente aos demais pesos dos outros princípios. O princípio com maior peso é o que prepondera no caso específico, instituindo uma relação de preferência e eliminando a colisão. Assim, a solução de colisão implica no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios. O resultado da ponderação é a lei de colisão.

            E conclui:

            A lei de colisão é uma regra que expressa a conseqüência jurídica do princípio precedente. Portanto, toda ponderação jusfundamentalmente correta resulta na formulação de uma lei de colisão, que é uma norma de direito fundamental adscrita com caráter de regra em que o caso concreto pode ser subsumido. Portanto, uma vez estabelecida uma lei de colisão, esta assume o caráter de uma regra, ou seja, é definitiva perante determinado caso concreto.

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            A fim de firmar tal entendimento, têm-se os ensinamentos de José Joaquim Gomes Canotilho, que assim afirma:

            Os princípios interessar-nos-ão, aqui, sobretudo na sua qualidade de verdadeiras normas, qualitativamente distintas das outras categorias de normas, ou seja, das regras jurídicas. As diferenças qualitativas traduzir-se-ão, fundamentalmente, nos seguintes aspectos. Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fáctios e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não cumprida [...]; a convivência dos princípios é conflitual [...], a convivência de regras é antinómica; os princípios coexistem, as regras antinómicas excluem-se. Consequentemente, os princípios, ao constituirem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, á "lógica do tudo ou nada"), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. Como se verá mais adiante, em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objecto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm "exigências" ou "standards" que, em "primeira linha" (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm "fixações normativas" definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são corretas devem ser alteradas).

            Então, para Alexy, a solução das antinomias principiológicas se daria através da ponderação que é dividida em três momentos distintos: a) a adequação dos meios, ou seja, se a medida adotada é apropriada para concretizar o objetivo visado, com vistas ao interesse público; b) a necessidade, segundo o qual a medida escolhida não deve exceder ou extrapolar os limites indispensáveis à conservação do objetivo que pretende alcançar; e, c) a proporcionalidade em sentido estrito, o intérprete deve questionar se o resultado alcançado é proporcional ao meio empregado e à carga coativo-interventiva desta medida.

            Fácil perceber, então, que havendo conflito entre dois princípios, como é o caso que será apresentado para estudo, ou seja, entre a dignidade da pessoa e a liberdade de opinião e pensamento, não se tem a retirada de um princípio do ordenamento, como ocorre no caso de antinomia de regras, porém, no julgamento do caso expresso, um dos princípios prevalecerá, a fim de que possa ser dada a solução para os chamados hard cases.


4. Análise do Caso Ellwanger

            Depois de se observar como funciona a técnica de Alexy para a resolução de conflitos entre princípios, passa-se a analisar o julgamento do Habeas Corpus nº 82.424-2, que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2003. Assim, apresenta-se a ementa do julgado:

            HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.

            1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).

            2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.

            3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais.

            4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.

            5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País.

            6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.

            7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática.

            8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma.

            9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo.

            10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam.

            11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso.

            12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham.

            13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.

            14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.

            15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável.

            16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem.

            Ordem denegada.

            Em resumo, tratou-se de habeas corpus impetrado em favor do escritor gaúcho Siegfried Ellwanger contra decisão do Superior Tribunal de Justiça que não reconheceu a prescrição em processo crime em que o paciente foi condenado por crime de racismo, por escrever livros anti-semitas e pró-nazistas, inclusive deturpando fatos reais como o holocausto.

            Pelo que se depreende da ementa acima transcrita e considerando o corpo do acórdão, a fundamentação do habeas corpus se guiou no sentido de descaracterizar o povo judeu como raça, desaparecendo aí a figura da imprescritibilidade e que o paciente tem o direito constitucional sagrado de liberdade de pensamento e de opinião.

            Em primeiro lugar, necessário se fazer a conceituação do que vem a ser o crime de racismo previsto constitucionalmente.

            O texto constitucional, que proíbe preconceito de origem, cor e raça e condena discriminações com base nesses fatores, consubstancia, antes de tudo, um repúdio à barbárie de tipo nazista que vitimar milhares de pessoas, e consagra a condenação do apartheid, por parte de um povo mestiço, com razoável contingente de negros.

            A Constituição da República assim dispõe:

            Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer naturaza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

            [...]

            XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

            [...]

            A Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, assim tipificou a conduta do paciente do habeas corpus em comento:

            Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

            Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa

            § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos, propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.

            Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

            § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza.

            Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

            Deste modo, é possível perceber que os delitos praticados pelo paciente do habeas corpus feriram o preceituado neste artigo, consistindo deste modo em crime definido como racial.

            A Constituição é mais abrangente do que as anteriores; veda preconceito e discriminação com base na origem, raça e cor. Empregava-se raça que não é termo suficientemente claro, porque, com a miscigenação, vai perdendo sentido. O racismo indica teorias e comportamentos destinados a realizar e a justificar a supremacia de uma raça. O preconceito e a discriminação são conseqüências da teoria. A cor só não era elemento bastante, porque dirigida à cor negra. Nem raça nem cor abrangem certas formas de discriminações com base na origem, como, por exemplo, discriminações de nordestinos e de pessoas de origem social humilde.

            Por este motivo, a argumentação do paciente no sentido de que a comunidade judaica não seria uma raça, não estaria coberta pelo manto de proteção constitucional da imprescritibilidade, cai no vazio.

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Sobre o autor
Ricardo Emilio Zart

advogado em Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZART, Ricardo Emilio. A dignidade da pessoa humana e o crime de racismo.: Uma visão casuística de hermenêutica constitucional com base em Robert Alexy. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1096, 2 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8591. Acesso em: 29 mar. 2024.

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