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Modelos históricos de compreensão da loucura.

Da Antigüidade Clássica a Philippe Pinel

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10/08/2006 às 00:00
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

            A loucura, como visto, é tema presente na vida do homem, seja nas Artes, seja nas Ciências. Tema que fascina e intriga, não tendo sentido único em todas as sociedades, como demonstra a Etnopsiquiatria. É um conceito construído, com variações de cultura para cultura.

            As formas de compreendê-la sofrem alterações ao longo dos séculos, mas podem ser sintetizadas em três grandes grupos ou modelos. Esses modelos se sucedem ou substituem de épocas em épocas. Dentro da classificação apresentada por Isaias Pessoti, são eles o modelo mítico-religioso, o organicista e o psicológico.

            O modelo mítico-religioso inicia na Antigüidade Clássica com a obra de Homero, que apresenta os personagens de seus poemas com a conduta determinada e totalmente conduzida por forças sobrenaturais, às quais não conseguem superar. A autonomia da vontade e do comportamento humano cede diante da entidade mitológica. A conseqüência da adoção desse modelo é a irresponsabilidade do homem frente à conduta.

            Segue-lhe, ainda na Grécia e Roma antigas, o modelo organicista, iniciado com Hipócrates, pelo qual a causa da loucura é física, provocado por desarranjos do cérebro, provocados por disfunções humorais. Destacam-se, ainda, Aristóteles, defendendo o coração como centro produtor da loucura, e Galeno. Este aponta os pneumas como causa da loucura, definindo-os como vapores e sopros internos do corpo humano que afetam o encefálo e as faculdades mentais. Mais tarde, os pneumas são denominados de "espíritos animais" pelos filiados à escola pneumática, como Descartes e Thomas Willis.

            Ainda na Antigüidade Clássica, sobrevem o modelo psicológico, encabeçado por Eurípedes, autor de tragédias gregas. Suas personagens apresentam quadros clínicos completos, se enfocados com os conhecimentos psiquiátricos atuais. Para Eurípedes, a loucura é produzida pela paixão, que domina a conduta humana. No conceito de paixão inclui todas as sentimentos fortes, tais como ódio, ira, amor e medo. O descontrole passional conduz à loucura.

            Na Idade Média, há o retorno ao modelo mítico-religioso. No entanto, as forças sobrenaturais que atuam sobre o homem, determinando-lhe a conduta, não são mais positivas. São forças do Mal ou do Demônio, vindas diretamente dele ou por artes de bruxaria. Todo comportamento bizarro pode ser obra do demônio. As pessoas tidas como loucas eqüivalem a endomoniadas; são mutiladas, queimadas em fogueiras, exorcizadas. Sofrem toda a sorte de perseguições.

            As conjecturas econômicas de extrema pobreza na Europa, após um período de guerras, provocando o surgimento de uma massa de desempregados e de pobres, torna inócua a pena de morte na fogueira ou por outros métodos. Faz-se necessário aplicá-la constantemente e constata-se que tal pena já não vem surtindo o efeito de intimidação esperado.

            Os diferentes são, então, encaminhados aos leprosários ou à prisão, que nesse período passa a ter autonomia, não sendo mais somente a ante-sala de outra pena. Passam a conviver, sob o mesmo teto, criminosos, loucos, doentes venéreos, ateus, bruxos, entre outros "associais", por cerca de cento e cinqüenta anos [105] (FOUCAULT, 1995:87), reunidos sob o signo da insanidade.

            A loucura não recebe tratamento médico especial, mas passa a ser estudada. Os médicos da época rejeitam o modelo mítico-religioso, passando a (re)sustentar a modelo orgânico, iniciado na Antigüidade Clássica com Hipócrates. São traçadas inúmeras classificações da loucura (nosografias) e apontadas inúmeras causas para esse fenômeno (etiologia), não percebido, ainda, como doença. As classificações são feitas por critérios pessoais e arbitrários. Retratam a busca de fundamentos anatomofisiológicos para a loucura, sustentados de valor científico, ao contrário de fundamentos filosóficos ou de origem mítico-teológica. Destacam-se, como correntes de pensamento, os iatroquímicos, pneumáticos e iatromecânicos.

            Ao final do século XVIII, o louco permanece nos leprosários ou nos locais de internamento que lhe destinam, enquanto os doentes venéreos são encaminhados para os hospitais, diante dos avanços da medicina, que lhes apontam curas. Os pobres são liberados para servirem como mão-de-obra barata nas fábricas. Outros doentes retornam para as famílias, tentando-se o mesmo com os loucos. A medida só é profícua com os loucos de família de posses econômicas, pois só estas conseguem tratá-los.

            Há necessidade de um estatuto público sobre a loucura, que passa a ser vista como perigo. O internamento de loucos é defendido por grandes segmentos da sociedade, em nome de sua tranqüilidade. Pela legislação, devem ser destinadas casas para os insanos. Estas não são construídas e eles continuam a ocupar os hospitais gerais, como Bicêtre e Salpêtriére.

            Assumindo a direção do Bicêtre, Pinel encontra os loucos presos em correntes, limitados na movimentação e em seus sintomas. Libera-os, para observá-los e tratá-los. Sustenta-se o surgimento da Psiquiatria com a publicação da obra de Pinel, que defende, entre outras idéias, a observação metodológica dos insanos, a reforma física dos locais de internamento e a causa da loucura em desequilíbrios mentais ou afetivos.

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            Pinel retoma o modelo psicológico, relegado ao esquecimento desde a época de Eurípedes. Não o aplica de forma pura, apenas considera os efeitos das paixões sobre o comportamento humano, defendendo, ainda, tratamentos morais para os pacientes. Estes tratamentos inspiram remorso e autocondenação do paciente que não se pautar pelas normas ditadas pelo médico e sua equipe, as quais revelam o pensamento, em termos de moralidade e de normalidade, do segmento social dominante.

            Na atualidade, a Psiquiatria sustenta predominantemente, o modelo organicista, com emprego de psicofármacos e terapêuticas biológicas, como eletroconvulsoterapia. Convive, no entanto, com correntes que defendem terapias cognitivas e até o fim dos manicômios, como a Antipsiquiatria.

            Na área penal, a discussão sobre a conveniência do internamento ou não como cura ainda é incipiente. Sustenta-se o internamento com base na periculosidade dos pacientes. Só que esta, conforme os próprios psiquiatras, é mínima, melhor tratada no seio familiar.

            Cometido um crime por um insano, este é absolvido, mas obrigatoriamente submetido à medida de segurança, que apresenta os mesmos e tão combatidos efeitos da prisão, com a agravante da indeterminação no tempo. A medida de segurança pode constituir uma pena perpétua, pois dependente da diminuição da periculosidade, sempre presumida, do insano. Se seu objetivo não é o apenamento, urge seja revista, nos termos da moderna Psiquiatria.


Notas

01

"Toda instituição que absorve parte do tempo e do interesse de seus membros, proporcionando-lhes um mundo particular e uma tendência absorvente, simbolizada por obstáculos que se opõem à interação social com o exterior e ao êxodo de seus membros". (Erving GOFFMAN Apud Cezar Roberto BITENCOURT, Falência da Pena de Prisão, p.152.

02

Michel FOUCAULT Apud João FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura, p. 23.

03

João FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura. p. 35-44.

04

Giuseppe DELL´AQUA, Itália vai acabar com manicômios em 97, Folha de São Paulo, p. 1-2.

05

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 167-169

06

Mário MOREIRA, Carnaval, Folha de São Paulo, p. 3.

07

Juliano MATOS, O Carnaval dá passagem à loucura, A Tarde, p. 2.

08

Márcia MATOS, Doente mental inocentado de crime, A Tarde, p. 18.

09

Ivan PADILLA, Droga de dupla ação, Isto É- arquivo. p.1-3.

10

Núcleo já discute a reforma psiquiátrica, A Tarde, p. 8.

11

Maria PAGENOTTO, Melhora atendimento a doentes mentais no País, O Estado de São Paulo- Net Estado, p. 1-2.

12

Assimina VLAHOU, Itália vai acabar com manicômios em 97, O Estado de São Paulo- Net Estado, p. 1-2.

13

Trieste mantém sistema-modelo, O Estado de São Paulo- Net Estado, p.1.

14

Cleuza ORNELLAS Apud Fátima BARRETO, Grades Insanas, A Tarde, p. 3.

15

Termo de responsabilidade em que o paciente ou um responsável se declara informado dos riscos da terapia. (Médicos desconhecem como eletrochoque age no organismo, O Globo on, p. 1-3.

16

Dirceu Aguiar Dias CINTRA JR., O fim dos manicômios. O Estado de São Paulo, p.1-2.

17

Id, Ibidem, p. 2.

18

Médicos desconhecem como eletrochoque age no organismo, O Globo on, p.1-3.

19

Alan Índio SERRANO, O que é psiquiatria alternativa, p. 65.

20

O mal do desconsolo, Isto é, p. 1-3.

21

João FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura, p. 15-34.

22

Alan Índico SERRANO, O que é psiquiatria alternativa, p. 39.

23

Id, Ibidem, p.12.

24

Cezar Roberto BITENCOURT, Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão, p. 28.

25

Rui ALVIM, Uma pequena história das medidas de segurança, p. 62.

26

João V. ARAÚJO Apud Rui ALVIM, Ibidem, p. 57.

27

Id, Ibidem, p. 30.

28

Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p. 83

29

Sebastião SOLER Apud Rui ALVIM, Uma pequena história das medidas de segurança, p.77.

30

"Portanto, o demônio é capaz, pela alteração das percepções e dos humores interiores, de provocar mudanças nas ações e nas faculdades físicas, mentais e emocionais, operando através de qualquer órgão físico". M. KRAMER, J. SPRENGER Apud Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p. 96.

31

Isaias PESSOTI, Ibidem, p. 100.

32

Rui ALVIM, Uma pequena história das medidas de segurança, p.68.

33

"...o que muitas vezes [o demônio]faz sem retirar-lhe a luz (lume) natural e o uso da razão como acontece...e algumas outras vezes retirando-lhe o uso da razão, tal como faz o vinho e os humores, como se vê nos ébrios e nos loucos(frenecti)...[o diabo]faz que os homens se tornem no amor e no ódio, conforme ao modo [de ser] dos loucos..." MENGHIUS Apud Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p. 110.

34

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 35.

35

João FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura, p. 40-41.

36

Alan Índio SERRANO, O que é Psiquiatria Alternativa, p. 13.

37

Rui ALVIM, Uma pequena história das Medidas de Segurança, p. 85.

38

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 87.

39

João FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura, p. 50.

40

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p.87.

41

Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p. 104.

42

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 11-12.

43 "

É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca.(...) Se ele não pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem.(...)É o prisioneiro da passagem.(...) A terra à qual aportará não é conhecida assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem.(...) Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 12.

44

Id, Ibidem, p. 43.

45

Id, Ibidem, p. 79.

46

Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p.54.

47

B. BALL,A. RITTI, Apud Isaias PESSOTI, Ibidem, p. 63.

48

J. STAROBINSKI, Apud Id, Ibidem, p. 77.

49

Id,Ibidem, p. 73.

50

Michel FOUCAULT, História da loucura, p. 125-137.

51

Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p.133.

52

M. LAIGNEL-LAVASTINE,J. VINCHON Apud Isaias PESSOTI, O século dos manicômios, p. 61.

53

E. SIMONETTO,L. DEL PISTOIA, Apud Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p. 49.

54

"Busca classificar as doenças com o mesmo método utilizado em Botânica. A doença, tal como a planta, seria a própria racionalidade da natureza, ao passo que os sintomas equivaleriam a suas folhas e suportes". (Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 190)

55

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 195.

56

Id. Ibidem, p. 222.

57

Id, Ibidem, p. 55.

58

Id, Ibidem, p. 48.

59

Alan SERRANO, O que é psiquiatria alternativa, p. 21.

60

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 70.

61

Cezar Roberto BITENCOURT, Falência da pena de prisão, p. 35. No mesmo sentido, ver Michel FOUCAULT, História da loucura, p. 404-407.

62

Michel FOUCAULT, Vigiar e Punir, p. 99.

63

Id, História da loucura, p. 146.

64

Id, Ibidem, p. 438.

65

Id, Ibidem, P. 78.

66

Alan SERRANO, O que é psiquiatria alternativa, p. 24.

67

Michel FOUCAULT, História da loucura, p. 384.

68

Id, Ibidem, p. 387.

69

Cuello CALÓN Apud Rui ALVIM, Uma pequena história das medidas de segurança, p. 83.

70

Michel FOUCAULT, História da loucura, p. 414.

71

Id, Ibidem, p. 424.

72

Id, Ibidem, p. 432.

73

Id, Ibidem, p. 503.

74

Id, Ibidem, p. 463.

75

Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p. 146.

76

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 464.

77

João FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura, p. 83.

78

"... fiquei muito surpreso ao constatar que muitos alienados que não tinham qualquer lesão do intelecto eram todavia presas de um instinto furioso, como se apenas as faculdades afetivas estivessem lesadas...Um exemplo de furor maniacal sem delírio (...)no qual ocorre um conflito interno entre uma razão lúcida e uma crueldade sanguinária..." (PINEL Apud Isaias PESSOTI, A loucura e as épocas, p.114).

79

Id, Ibidem, p. 169.

80

Pinel Apud Isaias PESSOTI,Ibidem, p.158.

81

Id, O século dos manicômios, p. 106.

82

Id, Ibidem, p. 128.

83

Id, A loucura e as épocas, p.150.

84

Id, O século dos manicomios, p. 129.

85

Michel FOUCAULT, Historia da Loucura, p. 497.

86

Isaias PESSOTI, O século dos manicômios, p. 165.

87

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 503.

88

Isaias PESSOTI, O século dos manicômios, p. 293.

89

Michel FOUCAULT, História da loucura, p. 494-495.

90

"Somente a partir da obra de Pinel, o termo psicopatologia pode ser tomado como sinônimo cabal de teoria da loucura". (Isaias PESSOTI, O século dos manicômios, p. 66).

91

Id,A loucura e as épocas, p.170.

92

Alan Índio SERRANO, O que é Psiquiatria Alternativa, p. 32.

93

Michel FOUCAULT, Vigiar e Punir, p. 176.

94

João FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura, p. 97.

95

Alan Índio SERRANO, O que é Psiquiatria Alternativa, p. 9

96

Michel FOUCAULT, Vigiar e Punir, p. 24.

97

Id, História da Loucura, p.507.

98

Maria Lúcia de Arruda ARANHA, Maria Helena Pires MARTINS, Filosofando. Introdução à Filosofia, p. 39.

99

Michel FOUCAULT, Vigiar e Punir. p. 94.

100

Jostein GAARDER, O Mundo de Sofia. p. 74.

101

Francisco Muñoz CONDE, Teoria Geral do Delito, p. 143.

102

Id, Ibidem, p. 150.

103

Terezinha ROCHA Apud Márcia MATOS, Doente Mental inocentado de crime, A Tarde, p.18.

104

Maria Lúcia KARAM, De crimes, penas e fantasias, p. 158.

105

Michel FOUCAULT, História da Loucura, p. 87.
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Sobre a autora
Karina Gomes Cherubini

Promotora de Justiça do Estado da Bahia. Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialista em Gestão Pública pela Faculdade de Ilhéus. Especialista em Direito Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHERUBINI, Karina Gomes. Modelos históricos de compreensão da loucura.: Da Antigüidade Clássica a Philippe Pinel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1135, 10 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8777. Acesso em: 29 mar. 2024.

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