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A antecipação de tutela contra a Fazenda Pública

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A antecipação de tutela, novel instituto que inaugurou a recente reforma processual, conquanto solução de grande importância para a efetividade do direito, merece cuidadosa interpretação, para que não venha a se transformar em verdadeira panacéia, em prejuízo das relações jurídicas e do sistema processual vigente.

Ilustrativo do tema é a abordagem da sua aplicabilidade contra a Fazenda Pública em confronto com os dispositivos garantidores de privilégios processuais.

Desde logo convém ressaltar que o sistema especial não fere o princípio da isonomia, na medida do relevo do interesse público, que goza de supremacia à frente do particular, porque diz respeito a todos, inclusive ao demandante.

Há inúmeras passagens no Codex e em outros textos legais que revelam a preocupação do legislador, como, e.g., no caso do parágrafo 4o. do artigo 20, que exclui a Fazenda, na condenação, do limite mínimo na fixação dos honorários advocatícios ou ainda nos casos em que dilata prazos, como os da contestação e dos recursos (art. 188); de ineficácia da sentença sujeita ao reexame necessário (art. 475) e da sujeição da execução ao rito dos artigos 730 do CPC e 100, da CF; do procedimento para a execução fiscal (Lei 6830/80), do arresto independente de justificação judicial (art. 816,I); da reintegração de posse (art.928); entre outras.

Pedro Henrique Távora Niess em artigo dedicado ao assunto, aborda esse aspecto em passagem que merece destaque:

"Indiscutivelmente, portanto, com a preocupação de lhes possibilitar um adequado comportamento em juízo estabeleceu o legislador ditos e incontestáveis privilégios em virtude da complexidade, da burocracia que cerca a Administração, e que lhe é própria. O interesse do Estado quando a Fazenda é vencida, assim como no caso em que declara a nulidade do casamento, transcende o interesse das partes, por seus respectivos advogados, tanto que tolhidos se vêem da faculdade de abrir mão de reapreciação pelo tribunal, da causa sob seu patrocínio" (1)

Exatamente essa sistemática voltada à segurança e proteção do interesse público, impede a antecipação de tutela contra a Fazenda Pública, não se tratando, a toda evidência, de hipótese de vedação do acesso à justiça, mas sim de impedimento de acesso indiscriminado, porque contrário ao sistema legal vigente.

O reexame necessário se apresenta como o mais importante óbice à antecipação da tutela. O texto legal é expresso ao negar eficácia à sentença proferida contra a Fazenda Pública antes do desfecho da devolução obrigatória.

Trata-se, portanto, de condição de eficácia da sentença. JOSÉ AFONSO DA SILVA, comentando o artigo 475 do Código de Processo Civil, afirma que "nesse caso, estamos diante da sentença de eficácia pendente, isto é, pendente de uma confirmação no tribunal" (2)

O tema vem ganhando campo na jurisprudência dos tribunais. O II Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, por exemplo, em inúmeras oportunidades tem negado eficácia a sentenças que decretam o despejo de repartições públicas, antes do reexame necessário, inobstante reconhecido que, como locatário, o Estado se submete às regras de direito privado, tanto que tais demandas estão submetidas ao rito da Lei 8245/9, pois, na hipótese, prevalece a regra geral do artigo 475 do Código de Processo Civil.

A exemplo:

"Tal como constou do despacho inicial, é dos princípios que, por se submeter a necessário duplo grau de jurisdição, a sentença proferida contra a Fazenda Pública só produz efeitos depois de confirmada pelo tribunal (CPC, art. 475,II). Por seu caráter e finalidade, a regra geral do duplo grau prevalece sobre a exceção do artigo 58,V da Lei n. 8245/91. Precedente: AI 470.558, de 20.11.96." (3)

E ainda:

     "A hipótese é de provisória execução de sentença enquanto pendente obrigatório reexame (artigo 475,II do Código de Processo Civil). Se a eficácia da r.sentença é incerta frente ao efeito meramente devolutivo estabelecido na lei inquilinária, somado ao recurso oficial previsto na lei de rito quando a decisão é proferida contra o Estado, seguro reconhecer a presença dos requisitos ensejadores da liminar perseguida. Frente ao interesse público, presentes o "fumus boni iuris" e o "periculum in mora", defiro a liminar para suspender a execução do despejo até o reexame obrigatório, de ampla devolutividade" (4)

Mais recente, o E.Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo adotou o mesmo entendimento, a respeito de decisão proferida em ação cautelar exibitória, sujeita à devolução obrigatória:

     "Dispõe o artigo 475, inciso II, do Código de Processo Civil, que a sentença proferida contra a União, o Estado e o Município está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo Tribunal.

À evidência a sentença que julgou procedente a medida cautelar proposta pelo ora requerido foi proferida contra a aqui autora, que restou condenada a exibir os documentos e a responder pelos encargos da sucumbência.

Por isso, não há como subtrair a espécie da previsão do mencionado dispositivo legal.

Irrelevante, outrossim, é que a exibição dos documentos seria necessária à eventual propositura da ação popular, já que a mera declaração de tal propósito não se afigura suficiente para afastar a aplicação de imperativos preceitos legais." (5)

Posteriormente ainda, o E.Tribunal de Justiça reafirmou essa posição, ao decidir que "sem dúvida, o instituto da tutela antecipada é incabível contra a Fazenda do Estado. E isso porque as sentenças, quando não favoráveis à Fazenda, devem ser submetidas ao reexame obrigatório, só produzindo efeitos após confirmação pelo Tribunal. Entendimento contrário burlaria a proteção legal do artigo 475 do Código de Processo"(6)

Muito recente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o artigo 475,II do CPC, que trata do reexame obrigatório é "providência imperativa na fase de conhecimento" (7) Ainda posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que "sendo a decisão submetida ao reexame obrigatório, por força do disposto no artigo 475 do Código de Processo Civil, são ineficazes os atos de liquidação eventualmente praticados, devendo a expedição do ofício requisitório aguardar o pronunciamento do Tribunal"(8)

Especificamente a respeito da antecipação de tutela, a doutrina já vinha levantando vozes contrárias à sua aplicação em face da Fazenda Pública. Merece destaque a posição de ANTONIO RAPHAEL DA SILVA SALVADOR ao afirmar que é "impossível a tutela antecipada concedida a favor de autor contra a União, Estados e Municípios, pois aí haveria, obrigatoriamente, pedido de reexame necessário se a concessão fosse em sentença final, o que mostra que não é possível, então, a tutela antecipada, que burlaria a proteção legal prevista no artigo 475,II do Código de Processo Civil"(9)

O Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo decidiu ainda que "a natureza jurídica da antecipação de tutela é de decisão de mérito provisoriamente exequível, colidindo com o artigo 475 do CPC, que determina o reexame necessário das decisões proferidas contra as pessoas jurídicas de direito público. A supremacia do interesse público sobrepuja o particular"(10)

Posteriormente, o E.Tribunal de Justiça emitiu decisões nas quais firmou o entendimento a respeito da tutela antecipada, considerando a "impossibilidade de concessão contra a Fazenda Pública"(11)

Merece destaque o confronto entre o artigo 475 do CPC e o 520, do mesmo diploma, este que considera suspensa a decisão, exceto nos casos em que esse efeito tenha sido excluído expressamente.

A antecipação de tutela convive harmoniosamente com as causas sujeitas a futura suspensividade recursal, desde que atendidos os requisitos do artigo 273 do Codex, pois o objetivo do instituto é justamente o de evitar que a demora na prestação jurisdicional venha a tornar inócua a providência judicial.

Logo, não há conflito. Ao contrário, a inovação teve por objeto justamente atenuar o rigoroso formalismo processual, diante da prova inequívoca de verossimilhança.

A regra do artigo 475 do CPC, todavia, difere da suspensividade de que trata o artigo 520, não só porque tem fundamento próprio, como porque coisa julgada e eficácia da sentença são institutos absolutamente distintos.

LIEBMAN destaca que "l’autorità della cosa giudicata non è l’effetto o un effetto della sentenza, ma una qualità e modo di essere e di manifestarsi dei suoi effeti, quali che siano, vari e diversi, secondo le diverse categorie delle sentenze" (12)

Na verdade, não se trata de conferir suspensividade a apelo excluído dessa hipótese, nos termos do artigo 520 e incisos. Trata-se, sim, de reconhecer que, a par da mera devolutividade temos a necessidade do reexame da sentença proferida contra a Fazenda Pública, o que impede a eficácia imediata da decisão proferida.

Assim, descabe a afirmação fundada em julgados do C.Superior Tribunal de Justiça, aos quais recorrem os defensores de tese oposta, para sustentar que é cabível a execução provisória da sentença proferida contra o Estado(13).

O trânsito em julgado não se confunde com a eficácia. A decisão pode ser eficaz, porque já submetida ao crivo do duplo grau de jurisdição, inobstante ainda não transitada em julgado, porque pendente de julgamento definitivo, mercê da interposição dos recursos especial e extraordinário, sendo viável a execução nessa fase.

PEDRO HENRIQUE TÁVORA NIESS, antes citado, enfoca de maneira lúcida essa distinção:

"E, mister se faz notar que o artigo 475 prescreve que, sujeita ao reexame necessário, não produz efeito, senão depois de confirmada pelo Tribunal, a sentença proferida contra a Fazenda. Estes os termos do artigo. Não estabelece ele outra regra. Não diz: "está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não transitando em julgado senão depois de confirmada pelo tribunal..." Sequer dimensiona os efeitos, deixando ver -- e usa a palavra no singular -- que nenhum efeito produz. E este aspecto não pode ser ignorado". (14)

Unânimes doutrina e jurisprudência acerca da imperatividade da regra disposta no artigo 475 do CPC, não pode ela ser mitigada, como sugerem vozes contrárias, pois a interpretação por elas sugerida para o dispositivo equivale à sua revogação.(15)

Não se trata, portanto, de impor à regra processual do artigo 475, trato de convivência com o novo instituto, porque são inconciliáveis os interesses que fundamentam os dispositivos.

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Cumpre abordar ainda a legislação federal recentemente editada a respeito das medidas liminares contra o Poder Público. A Lei 8437/92 aborda a hipótese referindo-se à ação cautelar e impedindo a concessão que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação.

Desnecessária a preocupação do legislador, na medida em que as ações cautelares não se coadunam com a satisfatividade.

A sumariedade que caracteriza o processo cautelar não compreende a inserção de medidas de cunho satisfativo, próprias dos processos de cognição ou execução, que, com suas fases destacadas, permitem a segurança da exata prestação jurisdicional.

Difere, pois, o processo cautelar daqueles em que se confere medida liminar antecipatória - mandado de segurança, possessórias - por sua natureza diversa.

HUMBERTO THEODORO JUNIOR afirma que a provisoriedade que caracteriza as liminares concedidas em processos cognitivos constituem entrega provisória e antecipada do pedido e já são decisão satisfativa de direito, embora precária. Conclui a respeito o Autor que "já com as medidas cautelares, isso jamais ocorrerá, pois são neutras diante do processo principal, muito embora visem a resguardar coisas e pessoas do processo e a assegurar o êxito da futura execução" (16)

A respeito das cautelares, definiu LIEBMAN que "sua atividade é puramente instrumental de escopo da jurisdição, apresentando-se como remédio destinado apenas a assegurar ou garantir o eficaz desenvolvimento e profícuo resultado do desígnio último da jurisdição, realizável pela cognição ou execução" (17)

Exatamente por estar despido de satisfatividade que, ao invés de compor a lide, como sói ocorrer nos processos de execução e cognição, o processo cautelar objetiva tutelar o processo. PONTES DE MIRANDA afirma que "quando se antecipa a execução, satisfaz-se por antecipação, mas não ocorre aí simples segurança" (18)

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul concedeu segurança para cassar medida cautelar ilegalmente deferida, porque antecipação de tutela e não segurança para um direito em perigo.(19)

Nessa linha de raciocínio, não podem prevalecer opiniões doutrinárias que consideram revogada a Lei 8437/92, em razão da edição da Lei 8952/94 (20), quando os próprios Autores defendem, à exaustão, as diferenças entre as ações cautelares e a antecipação de tutela, que em nada se confundem, sendo intuitivo que esta foi inserida no ordenamento jurídico exatamente para devolver àquela sua verdadeira finalidade, a de garantir o resultado final da ação principal, que com ela não se confunde, pena de litispendência.

Não é porque o legislador não tenha distinguido ocasionalmente as reais características de cada instituto, que o intérprete, a quem cabe a análise sempre sistemática da lei, nunca literal, também o faça na aplicação da figura jurídica.

A Lei 9494/97(21), a seu turno, estendeu à antecipação de tutela as restrições antes indicadas, adaptando a Lei 8437/92(22) à inovação da Lei 8952/94 (reforma processual), cabendo afirmar, segundo o raciocínio dos próprios doutrinadores avessos à tese aqui defendida, que referida lei veio a revogar, quanto à Fazenda Pública, o disposto no art. 273, do CPC (veiculado pela Lei. 8952/94).

Não mais se discute a constitucionalidade das normas que restringem ou impedem a concessão de liminares contra o Poder Público. O Prof. J.J. CALMON DE PASSOS opina a respeito, com indiscutível clareza e juridicidade, que merece destaque:

"Sempre sustentei que a garantia constitucional disciplinada no inciso XXXV do artigo 5o. da Constituição Federal (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito) diz respeito, apenas, à tutela definitiva, aquela que se institui com a decisão transitada em julgado, sendo a execução provisória e a antecipação da tutela problemas de política processual, que o legislador pode conceder ou negar, sem que isto incida em inconstitucionalidade. Vetar liminares neste ou naquele processo jamais pode importar inconstitucionalidade, pois configura interferência no patrimônio ou na liberdade dos indivíduos, com preterição, mesmo que em parte, das garantias do devido processo legal, de base também constitucional. Daí sempre ter sustentado que a liminar, na cautelar, ou antecipação liminar da tutela em qualquer processo, não é direito das partes constitucionalmente assegurado. (...)

Assim, nada impedirá, amanhã, que disposições especiais de lei eliminem ou restrinjam a antecipação de tutela em algum tipo de procedimento ou quando em jogo certos interesses"(23)

No julgamento da ADIN nr. 223 (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), constou do voto proferido que "já se anotaram precedentes brasileiros de vedação legal à concessão de liminar, sem resistência quanto à sua constitucionalidade"(24)

No mesmo julgamento, citando GALENO DE LACERDA, para quem "desde que não vedado o direito à ação principal, nada impede coíba o legislador, por interesse público, a concessão de liminares", o Ministro MOREIRA ALVES, em seu voto, firmou que "o proibir-se, em certos casos, por interesse público, a antecipação provisória da satisfação do direito material lesado ou ameaçado não exclui, evidentemente, da apreciação do Poder Judiciário, a lesão ou ameaça ao direito, pois ela se obtém normalmente na satisfação definitiva que é proporcionada pela ação principal, que, esta sim, não pode ser vedada para privar-se o lesado ou ameaçado de socorrer-se do Poder Judiciário".

Demonstrada a constitucionalidade da norma legal, há que ser ela adequada ao sistema legal vigente. Desde logo insta ressaltar que a edição do texto não significa o reconhecimento da aplicabilidade da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, ao contrário dos argumentos já enumerados (25), ‘porque o texto legal que reafirma o sistema vigente não tem essa extensão.

Após a edição da norma, ao contrário, tem decidido os tribunais pela sua inteira aplicabilidade. O E. I Tribunal de Alçada Civil reafirmou essa posição, em aresto que merece destaque:

"A antecipação de tutela tem caráter de medida cautelar satisfativa, pois diz direta e frontalmente com o direito do autor e deve conter-se no dispositivo da sentença a ser proferida, assim, não será cabível contra atos do Poder Público, pois, conforme dispõe o artigo 1º. da Lei 8437/92, é incabível medida liminar que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação"(26)

Ainda mais recente, o E. Tribunal de Justiça considerou a impossibilidade de concessão de medida liminar antecipatória contra a Fazenda Pública porque "não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que a providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal"(27), reproduzindo, portanto, o expresso texto da lei 8437/92, artigo 1º., caput.

Aspecto importante no exame dessa questão reside na análise do poder geral de cautela, invocado como fundamento no exame particular da concessão de liminares.

Discute-se a natureza desse poder - se vinculado ou discricionário .(28)Entendemos irrelevante a distinção se considerado que, mesmo agindo discricionariamente, o Magistrado está adstrito à lei, podendo exercer a opção apenas nos limites das variantes oferecidas no texto normativo.

Exemplificando, ao conceder a tutela antecipada, o juiz estará adstrito aos casos que reunam as condições cumulativamente previstas no artigo 273 caput e inciso I, além do que, deverá fudamentar a decisão, obviamente à luz dos requisitos legais (par. 2o.).

Referido princípio tem berço constitucional, a teor do disposto no art. 93,IX da CF que tomou a medida como garantia fundamental.

TEREZA ARRUDA ALVIM WAMBIER aborda o tema, concluindo que, na verdade, "O juiz está vinculado à lei. E há de fundamentar, portanto, todas as decisões na lei" (29).

Assim, não pode vingar o entendimento de que, o texto legal vigente e considerado constitucional (L. 9494/97), que restringe a medida contra o Poder Público, possa ser mitigado à frente do caso concreto. (30)

Há que se abordar ainda o aspecto do artigo 188 do CPC, que concede prazo em quádruplo para a apresentação de contestação e em dobro, sendo o caso de recurso, pelo Estado. Esse privilégio tem em conta a burocracia da máquina estatal e as dificuldades para a plena defesa, que deve ser assegurada, também à vista da superioridade do interesse público.

Pois bem, a regra que se pretende seja imposta contra a Fazenda Pública faz letra morta também esse dispositivo, cerceando ao Estado a plenitude do direito de defesa, nos prazos especialmente assinalados, já que o recurso contra a decisão antecipatória tem prazo bastante reduzido em relação aos ordinariamente fixados para a contestação e apelação.

No que se refere, outrossim, à execução que envolva antecipação financeira, o artigo 273, se aplicado contra a Fazenda, fere frontalmente o artigo 730 do CPC, que pressupõe sentença judicial condenatória para a instauração da execução e ainda o artigo 100 da Constituição Federal, sem contar todos os demais dispositivos constitucionais orçamentários.

Não fosse suficiente ainda que a irreversibilidade da providência a coloca em posição sujeita à regra impeditiva do artigo 273, parágrafo 2o. do CPC, aspecto reconhecido pelo Tribunal Regional Federal (31), verdade é que tão gritante aberração não pode ser admitida, senão à conta da revogação de todo o sistema processual instituído especialmente para a condenação judicial da Fazenda.

HUMBERTO THEODORO JUNIOR examina esse aspecto na leitura do direito italiano, afirmando que "evoluiu-se então, em todo o direito europeu, para o rumo de conceber a tutela provisória tanto para "conservar" como para "regular" a situação jurídica material das partes. Somente não se permitia a liberdade de interferir no relacionamento substancial litigioso, nos casos de emergência, quando a regulação provisória da lide fosse de tal modo a impedir a reversão no julgamento definitivo do mérito, caso se tornasse necessário julgar a causa, afinal, de modo diverso"(32)

Esbarra ainda a pretensão antecipatória em problemas que surgem diante da concessão no bojo da demanda declaratória e constitutiva, onde a tutela sempre tem natureza inibitória e resulta ainda mais evidente a impossibilidade de retorno ao statu quo ante.

Esse raciocínio aplica-se a toda e qualquer ação intentada contra a Fazenda Pública, mesmo que considerada a prova inequívoca de verossimilhança, ao contrário do que sugeriu CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, colacionando HUGO DE BRITO MACHADO, Juiz do TRF da 2a. Região, ao defender o cabimento da medida nas ações de repetição de indébito tributário (33).

Também na opinião do I.Magistrado relatada por SCARPINELLA BUENO, o artigo 730 do CPC deve ser interpretado à luz do artigo 273, sugerindo - data maxima venia - esdrúxula saída para o impasse: expede-se o precatório, com sustação do pagamento até decisão final. Transitada em julgado, o valor será liberado. Essa operação denomina-se "instrumentação da execução".

O depósito judicial do valor sob condição de confirmação da sentença, com expedição anterior e provisória de precatório, com a devida vênia, é providência que beira o absurdo, porque fere a ordem cronológica, deixando sem solução os pagamentos posteriores até o efetivo levantamento, já que a referida sucessão diz respeito à requisição judicial e não a ato posterior que é a disponibilização do montante depositado. Além disso, expedido o precatório, torna-se ele exigível, devendo ser cumprido.

Por esse mesmo motivo, descabida a providência nas ações desapropriatórias, como sugeriu LUIS RODRIGUES WAMBIER, sob o mesmo argumento(34)

A respeito, tenha-se ainda em mira que o disposto no artigo 588,I do CPC (que regula a responsabilidade do credor na execução provisória, por conta da prestação de caução idônea) e que tem "o escopo de evitar o chamado risco processual, sobretudo quando os procedimentos executivos envolvem a entrega de bens ou dinheiro ao credor"(35) resulta inaplicável ao instituto da tutela antecipada, na medida em que o artigo 273,II, parágrafo 3º., considera que serão observados apenas os incisos II e III daquele dispositivo processual, colocando sob condição inaceitável o interesse público que envolve as demandas contra o Poder Público.

Não é só. Qualquer que seja a natureza da liminar, a título de antecipação de tutela ou em ações de rito especial, o requisito do periculum in mora se apresenta exigível. É bom que se tenha em conta que, em qualquer caso, o objetivo do legislador, ainda que reconhecida a "verossimilhança do direito" não foi o de antecipar, pura e simplesmente, a decisão final, para que o postulante não ficasse à mercê da morosidade da máquina judiciária, pois o artigo 273 do CPC é expresso na exigência cumulativa, do fundado receio de irreparabilidade, caso reconhecido o direito apenas ao final.

E, em se tratando da Fazenda Pública, o Erário estará sempre apto a responder à demanda, (36) restando insubsistente a alegação de ineficácia da decisão, caso venha a ser proferida apenas ao final, com o que resulta absolutamente insubsistente o argumento de necessidade de instrumentação do precatório, com a finalidade exclusiva de preservar o demandante da demora da máquina judiciária e do sistema legal de pagamentos da Fazenda Pública, à míngua dos demais requisitos legais da antecipação de tutela.

A respeito da possibilidade de concessão de liminares em sede de mandado de segurança, ação popular e ação civil pública, conquanto antecipatórias, em inúmeros casos, verdade é que não revelam o confronto do exclusivo interesse privado contra o interesse público.

Em tais ações, o requisito específico da propositura envolve questão que transcende a particularidade: (i) no mandado de segurança há o direito líquido e certo frente a um ato ilegal de autoridade; (ii) na ação civil pública temos a defesa de interesses específicos tutelados pela norma legal com destaque, como no caso do meio ambiente, do consumidor, etc..; (iii) na ação popular, revela-se a preocupação com a lesividade ao patrimônio público.

São todos indiscutíveis aspectos do mesmo interesse público que inspira os privilégios processuais da Fazenda Pública.

Isto não significa que, presente esse fundamento em ações de procedimento comum, deverá ser concedida a tutela antecipada. Em tais casos, optou o Autor da demanda pela via comum, ao invés das ações de rito especial, fazendo crer que não pretende relevo ao requisito específico de tais ações, como fundamento da ação.

Melhor exemplificando, se no sistema anterior o Autor dispusesse de ação cautelar, na qual pudesse requerer a concessão de medida liminar, porque presentes o periculum in mora e do fumus boni iuri, mas, ainda assim, fizesse opção pela via do procedimento comum, não poderia nessa sede pleitear a antecipação conservatória do direito, porque os requisitos específicos da cautela, embora presentes, são fundamento de demanda própria, estando ele, inclusive, dispensado de demonstrar referidos aspectos, ainda que evidentes, quando no procedimento comum.

Finalizando, a se admitir a doutrina que considera o direito à antecipação de tutela aplicável a todo e qualquer processo, se estará não só subvertendo todo o sistema processual vigente, como exaustivamente demonstrado, como contrariando o próprio instituto, que certamente não foi introduzido com o objetivo de resolver o problema da morosidade da máquina judiciária, muito mais profundo e carente de medidas de cunho administrativo, mas sim, de torná-la eficiente nos casos indicados, sujeitos à ordem legal.

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Sobre os autores
Mirna Cianci

procuradora do Estado de São Paulo

Luiz Duarte de Oliveira

procurador do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CIANCI, Mirna ; OLIVEIRA, Luiz Duarte. A antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/883. Acesso em: 28 mar. 2024.

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Texto publicado na RT 770.

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