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Ações para obtenção de coisa (art. 461-a do CPC)

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02/10/2006 às 00:00
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6 Ação de restituição e comodato

            6.1 A extinção do comodato

            O contrato de comodato pode ter prazo determinado ou não. O prazo determinado pode ter sido expresso no contrato ou resultar da sua natureza e objetivo. Como diz o art. 581, primeira parte, do CC, "se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido".

            Se o prazo é indeterminado , o comodante pode colocar fim ao contrato a qualquer momento, sem ter que apresentar motivo, por meio da chamada denúncia vazia. Contudo, no caso em que o prazo do comodato é o que se presume necessário para o uso concedido, não há como admitir a denúncia vazia, justamente porque o contrato possui prazo determinado – e não indeterminado.

            Nessa hipótese, ou melhor, em qualquer situação em que o contrato possui prazo determinado, o comodante não pode, "salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada" (art. 581, CC). Como está claro, esta necessidade imprevista e urgente deve ser reconhecida pelo juiz.37 O caso é de denúncia cheia, isto é, motivada.

            Não se trata de resilição, mas de declaração unilateral de vontade que deve ser motivada. A diferença é a de que a denúncia, ao contrário da resilição38, apenas interrompe a continuação, sem desconstituir o que "constituído estava e havia de continuar".39

            Se o comodato possui prazo convencional, pode ser proposta ação de retomada tão logo o contrato tenha expirado o seu prazo, não sendo desnecessária denúncia prévia. Como já decidiu o STJ, findo o prazo certo do comodato, "não é necessário que o comodante promova a interpelação do comodatário para a restituição do bem, uma vez que, por tratar-se de obrigação a termo, a não devolução do imóvel no prazo avençado é motivo suficiente para constituir o devedor em mora".40

            Porém, se o contrato não possui prazo convencional, e o comodante reputa esgotado o prazo necessário para o uso concedido, deve ser feita denúncia cheia, motivando-se o direito de retomada.

            Isso porque, no caso em que o prazo não é convencionado, o comodante deve demonstrar que o prazo necessário para o uso concedido encerrou.

            No caso de morte do comodatário, e sendo o comodato deferido apenas a esse, também deve ser feita denúncia cheia. O comodante motivará sua denúncia – que deverá ser endereçada ao herde iro do morto - com a alegação de que o uso era pessoal. Há, mais uma vez, mera declaração unilateral de vontade motivada, que coloca termo ao comodato.

            Se essas denúncias não forem atendidas, terão que ser propostas ações pelos comodantes, quando então o demandado poderá afirmar que não houve a extinção do prazo concedido para o uso, ou o herdeiro alegar, por exemplo, que o comodato não era pessoal ao falecido.41

            6.2 A admissão do uso da ação de reintegração de posse para a retomada da coisa objeto do comodato

            Os tribunais têm admitido o uso da ação de reintegração de posse contra o comodatário que não entrega a coisa, apesar de devidamente notificado.

            Como já decidiu, por exemplo, o Tribunal de Alçada de Minas Gerais, "a ação própria contra o comodatário que, constituído em mora, não entrega a coisa, é a de reintegração de posse".42

            E o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "Reintegração de posse. Comodato. Notificação.

            Esbulho. Liminar. Se a prova dos autos evidencia contrato de comodato do imóvel por tempo indeterminado, com regular notificação da ocupante, sem que tenha sido devolvido o imóvel, resta injusta a posse da comodatária, justificando liminar concessiva de reintegração. Agravo de instrumento desprovido".43

            6.3 As razões dessa admissão

            É muito fácil constatar a razão pela qual a prática brasileira passou a admitir o uso da ação de reintegração de posse diante do não atendimento à notificação para a restituição da coisa entregue em comodato.

            É que a ação de conhecimento que encontrava leito no procedimento comum, até o final de 1994, não viabilizava a tutela antecipatória e a sentença executiva. Portanto, é indiscutível que a prática passou a lançar mão da ação de reintegração de posse com os "olhos" nos benefícios outorgados pelo seu procedimento especial, especialmente por sua liminar.

            Perceba-se que, ao mesmo tempo em que se conferiu a ação de despejo à locação, deixou-se ao comodante somente a ação de procedimento comum. Porém, não é racional dar procedimento especial ao que aluga e procedimento comum ao que empresta. Se o locador possui direito à retomada da coisa, igual direito pertence ao comodante. Por isso, o comodante, para se livrar da inefetividade do procedimento comum, foi buscar solução ao seu problema no procedimento especia l reservado à reintegração de posse.44

            6.4 A inadequação da reintegração de posse para o comodante retomar a coisa emprestada

            Note-se que não é pelo fato de que o imóvel não foi devolvido, após a notificação do locatário, que passará a caber ação de reintegração de posse, e não mais ação de despejo. Aliás, discutiu-se intensamente sobre a admissão da reintegração de posse contra o locatário que abandona o imóvel e não entrega as chaves. Supondo-se que o abandono configuraria espécie de denúncia tácita, afirmava-se, baralhando-se o efeito da denúncia com a natureza da ação cabível para a retomada da coisa, que não teria sentido propor ação de despejo, uma vez que a locação já estaria desfeita.45

            Os tribunais deram resposta parcialmente satisfatória ao equívoco. O Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, por exemplo, afirmando que o abandono não é causa de desconstituição, lembrou que a ação de despejo "não se presta apenas para obter a desocupação do imóvel locado.

            Constitui-se em meio processual específico para obter o pronunciamento judicial de extinção da relação de locação, e, em conseqüência, obrigar o inquilino a desocupar o bem a ele locado".46

            A suposição de que a ação de despejo é cabível porque o abandono não é causa de desconstituição, leva à conclusão de que essa modalidade de ação não deveria ser proposta se essa causa estivesse presente. Acontece que, ainda que tivesse sido feita a denúncia para o locatário abandonar o imóvel, não haveria como se admitir ação de reintegração de posse. Também no caso em que o locatário deixa de pagar o aluguel, e há cláusula resolutória expressa, pouco importa a resilição da locação. Ou seja, nada importa, para o efeito de ser cabível ação de despejo e não ação de reintegração de posse, o fato de ter ocorrido a desconstituição da locação. Não é porque ocorreu a desconstituição da locação que a ação de despejo deixará de ser invocável, para passar a ser adequada a ação de reintegração de posse. O cabimento da ação de despejo nada tem a ver com a prévia desconstituição do contrato. Melhor dizendo: não é porque houve denúncia, ou mesmo inadimplemento confortado por cláusula resolutória expressa, que, ao invés do despejo, será o caso de propor ação de reintegração de posse.

            A ação de despejo é voltada a proteger a locação, e não a permitir a defesa da posse. O mesmo raciocínio deve ser empregado em relação ao comodato. O contrato de comodato exige, para sua efetiva proteção pelo sistema jurídico, ação de restituição da coisa emprestada. Sim, pois de nada vale deixar emprestar e não permitir retomar. Dizer que a ação voltada à proteção da posse é adequada à tutela do contratante é baralhar posse com contrato. Se há direito à retomada da coisa emprestada, o direito à ação encontra amparo no contrato e não na defesa da posse.

            Perceba-se que não entregar a coisa emprestada é muito diferente que afirmar ser proprietário ou possuidor próprio, ou impróprio mas sem qualquer vínculo com o comodante.47 Se o comodatário afirma ser proprietário da coisa emprestada, a agressão é ao domínio, e desse modo deve ser proposta ação reivindicatória. Se o comodatário diz que a sua posse não tem relação alguma com a do comodante, aí sim seria adequada a ação de reintegração de posse.

            Acontece que, quando se está diante de ação para fazer valer o comodato, não há motivo para o autor discutir domínio ou posse, mas apenas a existência e a eficácia do contrato 48 A ação de reintegração de posse, consoante declara o art. 927 do CPC, exige que o autor prove: i) a sua posse; ii) o esbulho praticado pelo réu; iii) a data do esbulho; e iv) a perda da posse. Portanto , se a reintegração fosse a ação adequada para o comodato, nela deveria ser discutida apenas a posse e o esbulho.

            Acontece que a ação do comodante é fundada no contrato e, por isso, a contestação pode não apenas alegar sua inexistência ou ineficácia, como ainda afirmar que o motivo da denúncia não permite a extinção do comodato ou que o motivo invocado para a denúncia não corresponde à realidade. Como está absolutamente claro, a elucidação da afirmação de retenção indevida da coisa entregue em comodato é indissociável da análise do contrato. Em outras palavras, a cognição do juiz, nessa ação, não pode dispensar a discussão do contrato.

            6.5 O objetivo que se esconde atrás do uso da ação de reintegração de posse contra o comodatário

            Como já foi dito, o que levou os advogados a lançarem mão da ação de reintegração de posse em favor do comodante foram os benefícios do seu procedimento especial, fundamentalmente a possibilidade da concessão de liminar.

            O pior é que se tentou fazer acreditar que essa liminar estaria na dependência somente da realização da denúncia e da não entrega da coisa. É evidente, contudo, que isso não basta para abrir ensejo à concessão da liminar.

            Não há como negar que a cognição do juiz, na ação voltada à obtenção da coisa entregue em comodato, recai necessariamente sobre o contrato. A simples denúncia vazia, afirmando a existência de contrato por prazo indeterminado, não é, por si só, fundamento para a procedência, pois é possível que esse contrato não exista ou seja ineficaz. No caso de prazo determinado – convencional ou presumido -, o demandado evidentemente poderá discutir a alegada "necessidade imprevista e urgente". Na hipótese de denúncia que afirma o término do prazo necessário para o uso, o comodante também deverá – como na hipótese anterior -, desincumbir-se do seu ônus de provar o alegado.

            Ao se pretender impor a idéia de que o esbulho, e por conseqüência a liminar, seria decorrência automática da denúncia ou da extinção do contrato, desejou-se conferir uma espécie de direito absoluto ao comodante e, ao mesmo tempo, encobrir o direito do possuidor negar a existência do contrato e dos motivos da denúncia. Ora, como o réu, no caso, tem o evidente direito de discutir o contrato e os motivos que o circundam, é óbvio que o esbulho não é decorrência automática da denúncia.

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            Com essa pretendida distorção, seria fácil simular a existência de comodato verbal para, com a afirmação de esbulho, propor ação de reintegração de posse e obter liminar

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            6.6 A ação de restituição fundada no art. 461-A

            Se o comodante tem o direito de pedir a restituição da coisa, e é importante eliminar o mau vezo de se negar a possibilidade da discussão do contrato para se conferir liminar de reintegração de posse, é preciso deixar claro que a ação de reintegração de posse não é adequada para a hipótese em que a retomada da coisa depende da discussão do contrato.

            Assim como a locação abre oportunidade para a ação de despejo – que nada mais é que ação de restituição da coisa locada - , o comodato deve viabilizar mera ação de retomada, em que também se admita a discussão do contrato e da sua extinção.

            Atualmente, o art. 461-A fornece técnicas processuais capazes de permitir a construção de uma efetiva ação de restituição de coisa. Basta pensar na técnica antecipatória e na sentença que permite a efetivação da restituição sem que seja necessária a propositura de ação de execução.

            O comodante, em razão das técnicas processuais instituídas pelo art. 461-A, tem a possibilidade de pedir a restituição da coisa emprestada por meio da técnica antecipatória e da sentença de executividade intrínseca. Porém, a tutela antecipatória dependerá da demonstração da existência do comodato e de sua extinção. No caso de comodato verbal e de denúncia cheia (necessidade imprevista e urgente e término do prazo necessário para o uso concedido), pouco importará, para efeito de tutela antecipatória, a mera alegação de não entrega da coisa.

            Na realidade, os pressupostos da tutela antecipatória e da sentença de procedência, no caso que ora interessa, são intimamente ligados ao contrato. Como a ação de retomada da coisa entregue em comodato abre oportunidade para a sua ampla discussão, não há como pensar que essa ação de retomada possa ser vista como ação de reintegração de posse. Não se trata de opção teórica, mas da necessidade de afirmação dos reais limites de cognição da ação relativa ao comodato.

            De qualquer forma, se tudo isso for levado em consideração, permitindo-se a discussão de todas as alegações que o comodatário pode fazer na ação voltada à retomada da coisa, não importará o rótulo atribuído à ação, se despejo, comodato, imissão de posse ou reintegração de posse.49 O que interessa é que, por meio de tal ação, pede -se a restituição da posse com base na extinção do comodato.50 Portanto, como não há mais qualquer motivo para o uso do procedimento de reintegração de posse, e como o uso desse procedimento pode escamotear a necessidade da discussão do contrato, a ação do comodante, a partir de agora, deverá se fundar no art. 461 -A.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. Ações para obtenção de coisa (art. 461-a do CPC). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1188, 2 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8844. Acesso em: 28 mar. 2024.

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