O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNA
O Caso dos Exploradores de Caverna é a versão para o português da conhecida obra do professor da Harvard Law School Lon L. Fuller, cujo título em inglês é The Case of the Speluncean Explorers. Seu tradutor e autor da introdução a esta edição da Sérgio Antônio Fabris Editor é Plauto Faraco de Azevedo.
É obra de ficção, que se passa no ano de 4300, em corte pertencente à Commonwealth, mas que teve seus argumentos e idéias retirados de casos reais, especificamente Queen v. Dudley e Stephens e United States v. Holmes.
A citada corte é a mais alta instância judiciária de Newgarth, presidida pelo juiz Truepenny e contando com quatro outros magistrados, quais sejam aqueles citados na obra, os juízes Foster, Tattling, Keen e Handy.
É esta Corte a encarregada em julgar, em segundo grau, o polêmico caso dos exploradores de caverna, que foram condenados à forca em julgamento em primeira instância, nos termos da N.C.S.A § 12-A, que prescrevia: quem quer que intencionalmente prive de outrem da vida será punido com a morte.
A problemática exposta na obra e que é o pano de fundo para uma série de profundas indagações acerca do estudo do direito, principalmente no que tange à disciplina de introdução à ciência jurídica, é a circunstância de que os quatro réus do processo cometeram o ato típico em condições que poderíamos enquadrar, se observarmos o ordenamento jurídico pátrio, como estado de necessidade, gerando enorme comoção entre a sociedade do local e entre os próprios julgadores, que demonstram em diversas situações ser impossível a isenção total ao julgar, visto ser como todos os demais um membro da comunidade.
Perquire-se, então, sobre qual seria a aplicação mais consentânea do direito ao caso concreto: aquela que prezasse, acima de tudo, a letra de lei, ou aquela que trouxesse justiça à situação. Eis que surge, então, o secular debate entre a jusnaturalismo, representado pelo juiz Foster e o positivismo, transfigurado no juiz Keen.
Interessante notar que a escolha do nome para os fictícios juízes não se deu ao acaso. Suas acepções, quando verificadas em um dicionário da língua inglesa, correspondem às suas condutas: criativas, pujantes e firmes, conciliadoras.
Para que possamos entender de uma forma mais completa a ordem de considerações que são feitas pelos magistrados, desçamos a um breve escorço dos fatos narrados pelo autor.
Cinco membros da Sociedade Espeleológica , uma organização amadorística de exploração de cavernas, ao empreenderem mais uma de suas aventuras, que havia sido devidamente catalogada e comunicada, foram surpreendidos por um desabamento que os manteve presos por quase quarenta dias no local onde haviam ido explorar.
Possuindo escassas rações e sabendo, desde o vigésimo dia de aprisionamento, que pelo menos mais dez seriam necessários para libertá-los, em uma operação que já havia ceifado a vida de dez operários, os cinco resolveram, assim que acabasse todo o suprimento de alimentos, se alimentar da carne de um deles, o que seria trocar a vida de um pela de cinco. A idéia partiu de Roger Whetmore (lembremos que o verbo inglês whet significa incitar, estimular whetmore estimular mais), que, por um azar do destino foi aquele que terminou por morrer, tendo essa sorte decidida nos dados.
Não se sabe ao certo que dia foram encontrados, mas sim que no 33º Whetmore foi morto, ou seja, três dias após o previsto pela equipe de resgate, o que garantiu a sobrevivência dos quatro outros reféns da natureza.
Com essa sua ação, os quatro aventureiros restantes garantiram sua sobrevida, mas foram pronunciados pelo Ministério Público, sendo condenados, então, por homicídio, apelando à Suprema Corte.
O verdadeiro conteúdo da obra começa a se desenvolver a partir da constatação e afirmação desses fatos, que se dá à página 8 da edição consultada. A partir daqui os magistrados começam a destilar seus pontos de vista sobre o direito e principalmente quanto a uma importante seara da introdução ao estudo das ciências jurídicas, que é a hermenêutica.
Tal discussão gira em torno, como já dissemos, da dicotomia entre o direito natural, ou jusnaturalismo e o positivismo jurídico. Representa o primeiro posicionamento o juiz Foster (criador, criativo, em inglês); simboliza e defende o positivismo o juiz Keen (pujante, firme, na língua de Shakespeare).
Enquanto que o primeiro deles defende que a situação em que se encontravam os réus não pode sequer ser considerada como de convivência social, onde existe o direito, sendo verdadeiramente estado de natureza termo cunhado desde os clássicos Hobbes e Locke, isentando a aplicação da lei ao caso, o segundo defende a literalidade da lei, argumentando que se se prescreve ser ato típico, antijurídico e culpável o homicídio, nos termos da fictícia lei citada, devem ser os acusados condenados.
Passamos a analisar o embate entre as duas correntes filosóficas, maiores antagônicas no que tange ao estudo da teoria do direito, principalmente após o surgimento da importante e monumental obra do austríaco Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, em que aponta que este se resumiria, para efeitos de ciência, estritamente à norma jurídica. Segundo Kelsen, ainda, direito somente existiria a partir da exaração de uma sentença aplicando ou subsumindo um fato à norma, uma teoria que é conhecida como monismo jurídico.
Foi o positivismo jurídico, que possui como um de seus artífices o ilustre mestre tedesco, que engendrou o movimento de cientifização do direito e que, todavia, empreendeu os desvios que o fizeram quase uma arma contra a Justiça.
É essa a realidade que presenciamos na obra de Lon Fuller: a lei sendo sobreposta à verdade dos fatos analisados dentro de um contexto de sofrimento e de necessidade de perpetração da vida de quatro em face de um. O que seria mais lógico e plausível, querer-se a morte de cinco, por ser um crime matar alguém, ou salvar-se a vida de quatro, em demérito de um?
Trazendo o exemplo para outra realidade agônica: o que é mais sensato se fazer em um hospital de campanha, em meio a uma sangrenta batalha: ocupar todos os leitos com pacientes irrecuperáveis, devido a seus ferimentos, ou tratar, primordialmente dos que ainda tem chance de sobrevida? Essa última realidade foi perfeitamente retratada no recente filme de Hollywood, denominado Pearl Harbor, em que se contou o incidente sino-americano no Hawaii.
O direito não é fim em si próprio, como já adverte Cândido Rangel Dinamarco, dissertando sobre o direito processual civil, talvez uma das disciplinas que mais foi contaminada pelo mau vezo positivista.
Nesse sentido, a posição jusnaturalista de Foster, contemporizada e mediada por Handy , o último dos magistrados a se manifestar, é a mais consentânea com o propósito do direito, que é regulamentar a vida em sociedade e torná-la possível de forma pacífica. É a vitória da razão sobre a força, vitória esta que somente é completa por meio da aplicação do bom senso na realização do direito.
A norma abstrata não é verdade absoluta e só deve ser entendida como um direcionamento e não como um imperativo imutável. Nesses termos que se diz que direito não é lei, ou norma, mas lei ou norma interpretada.
Alargar demais o conceito de direito natural, a ponto de paulatinamente desconsiderar o direito positivo em prol do primeiro é arbítrio judicial descabido e que foi exatamente o que se combateu em relação ao modelo judiciário e jurídico medieval.
Estreitar demais os conceitos, crendo, como o magistrado Keen, que a lei deve ser sempre aplicada em seu rigor máximo, desconsiderando o substrato fático a ela confrontado, é intolerância e desvio do positivismo.
Por isso cremos piamente que a melhor resposta está na contemporização, que visualizamos na figura do juiz Handy.
Mas para a infelicidade daqueles que entendem o direito de forma puramente instrumental, vinculada racionalmente à lei, o destino que tem as personagens é desolador. Devido a um empate entre os votos dos juízes, principalmente em razão da manutenção da abstenção de Tattling , foi a sentença condenatória mantida e os acusados enforcados.