EUGENIA, EUGENISMO E EUGENÉTICA A palavra “eugenia” deriva da junção dos vocábulos gregos “eu” (bem) e “genos” (raça, linhagem, espécie), e que, portanto, significa “bem nascido” ou, ainda, de “boa linhagem”, “boa espécie”. O termo eugenia, contudo, foi forjado apenas em 1883, por Francis Galton , que o definiu como sendo “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”. Considera-se “eugenia” como um termo genérico do século XIX, indicativo da ciência responsável pelo estudo das melhores condições para a reprodução e o melhoramento da espécie humana. Eugenética seria a forma recente da eugenia, oriunda da junção da genética, biologia molecular e engenharia genética. Eugenismo, por sua vez, haveria de ser considerado como a ideologia da eugenética, crente que a substituição dos “genes maus” pelos “genes bons” será capaz de conceber uma humanidade nova e melhorada, livre do peso do sofrimento. Ainda que não se tenha uma definição clara do que seja a eugenética hoje em dia, podemos dividi-la em duas partes: a eugenética negativa, cuja preocupação é prevalente no sentido em prevenir e curar doenças e má formações de origem genética; e eugenética positiva, cujo objetivo precípuo é a melhoria das capacidades humanas objetivamente, nas várias ordens de categoria psicofísicas. A eugenia negativa é aceita sem grandes óbices, no entanto, a grande polêmica reside na eugenia positiva e seu ânimo em alterar a natureza humana. Esta tendência ao reducionismo de todo social e cultural do homem a uma mera “genetização”, em virtude da exacerbação destas pesquisas, pode conduzir a uma nova sociedade bioantropossocial, formada pelos “novos humanos”, o que, somado ao processo de intensificação do controle e transformação dos sistemas sociais, vai ao encontro dos objetivos da globalização. Logo, o que aparentemente é melhor para a espécie “homo sapiens sapiens”, sem sombra de dúvida é prejudicial ao indivíduo.

Os Dois Aspectos da Eugenética e o Espectro do Eugenismo Como dito, a eugenia é vista sob dois ângulos distintos: a eugenia negativa e a eugenia positiva. A eugenia negativa atua evitando a transmissão de genes defeituosos, seja através da eliminação física de seus portadores, como o aborto eugênico, evitando que sejam engendrados ou mediante o impedimento de uniões procriativas de indivíduos com alto risco genético, ou seja, busca-se prevenir ou curar doenças e má-formações de origem genética. A eugenia positiva tem por intuito melhorar a dotação cromossômica do afetado, seja transferindo-lhe genes humanos ou animais, construindo mosaicos genéticos, ou seja, busca-se uma alteração direta no patrimônio genético do indivíduo, mudando suas características ou acrescentando-as, isto é, visa a melhoria das competências humanas diretamente em seu patrimônio genético. Enquanto a eugenia negativa é raramente questionada, salvo em questões polêmicas como o já citado aborto eugênico, a eugenia positiva é severamente criticada e temida, pelo espectro eugênico que carrega, isto é, o fascínio que exerce, tanto para o bem quanto para o mal, a intervenção direta nos genes humanos. No presente estudo não nos aprofundaremos nos diversos tipos de terapias possíveis, tanto na eugenia negativa quanto na positiva, mas trataremos de aspectos gerais do tema, normalmente incidentes no segundo caso, eugenia positiva, que é o que causa maior assombro e é vítima das maiores discussões no cenário atual.

BIOÉTICA O termo bioética é um neologismo criado na década de 70 do século passado pela junção das palavras “bio” (vida, em grego) e “ética”, tendo, inicialmente, o sentido de alertar os pesquisadores quanto ao uso ético da biotecnologia, dado seu avanço. Este foi seu significado original. Contudo, atualmente, o termo bioética já não é mais claro, e sua definição é vaga. Diz William Saad Hossne , fundador da Sociedade Brasileira de Bioética, que “não importa definir”, que “o que importa (...) é caracterizar e salientar algumas das conseqüências trazidas pela Bioética e a ela inerentes, e o seu profundo significado”. Conquanto se tenha esta imprecisão terminológica, é preciso encontrar uma definição que sirva ao menos para nortear o presente estudo. Para tanto, nos valemos de alguns autores. O promotor de justiça, Paulo José Leite Farias, na primeira nota de seu artigo “Limites Éticos e Jurídicos à Experimentação Genética em Seres Humanos”, define bioética como “o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar” . Tereza Rodrigues Vieira traz duas definições de bioética: a primeira, de sua lavra, diz que “bioética indica um conjunto de pesquisas e práticas pluridisciplinares, objetivando elucidar e solucionar questões éticas provocadas pelo avanço das tecnociências biomédicas”, e a segunda, extraída da “Encyclopedia of Bioethics”, que “define a bioética como um estudo sistemático da conduta humana no campo das ciências biológicas e da atenção de saúde, sendo essa conduta examinada à luz de valores e princípios morais, constituindo um conceito mais amplo que o da ética médica, tratando da vida do homem, da fauna e da flora”. No entanto, William Saad Hossne , sobre a mesma “Encyclopedia of Bioethics”, afirma que, ainda que esta tenha dedicado treze páginas ao verbete “bioética”, conclui que não há como defini-lo. Hossne continua, trazendo uma definição de bioética, que, “é, na essência e no fundo, a ética nas (e das) ciências da vida, da saúde e do meio ambiente” . Mas, para o autor, este conceito não é suficiente, pois a bioética demanda uma série de desdobramentos imprescindíveis para sua plena compreensão e aplicação, tais como reflexão crítica e liberdade de escolha. Volnei Ivo Carlin entende por bioética “uma maneira de regulamentação das novas práticas biomédicas, atingindo três categorias de normas: deontológicas, éticas e jurídicas, a exigirem comportamento ético nas relações entre biologia, medicina e direito. Corresponde a tudo que diz respeito à vida (bio + ética), ou seja, é ética da vida ou do vivo; bioética ou ética aplicada à vida, no sentido etimológico” . No mesmo texto, Carlin traz ainda a definição de bioética de Marco Segre, afirmando que “é a parte da ética que enfoca as questões referentes à vida humana e portanto à saúde. Tendo esta como objeto de estudo trata também da morte. Tudo o que é vida lhe compete. Não tem fronteiras e daí não ser definida a exemplo de outras disciplinas” . Conquanto haja esta série de definições, e que a ética não possa ser compartimentalizada e seccionada, em termos de estudo o presente trabalho nortear-se-á pelos conceitos elaborados por William Saad Hossne e por Volnei Ivo Carlin, o primeiro por ser mais amplo e o segundo por tratar especificamente do escopo desta publicação, a este, ainda, acrescentaremos o caráter interdisciplinar que a própria bioética exige, já que o autor inclui apenas o direito entre as várias disciplinas que extrapolam os limites da discussão no âmbito da medicina e os expande para outras áreas. Assim, temos a bioética como a ética nas e das ciências da vida, da saúde em seu conceito mais amplo, e do meio-ambiente, que envolve, na prática destas ciências, uma série de normas de naturezas deontológica, ética e jurídica, relacionando-se, neste caso, ao direito, em seu papel de mantenedor da paz social.

Princípios Fundamentais da Bioética Como visto, o conceito de bioética é extenso e não se chegou ainda a um consenso acerca de sua definição, contudo, nosso objetivo é enredar na mesma urdidura a vida, especialmente a humana, a ética e o direito. Para tanto, é preciso, após estabelecermos a definição, buscar o chamado “tripé (ou trindade) da bioética”, isto é, princípios clássicos estabelecidos unanimemente por todos os pesquisadores e que devem servir como mínimo denominador comum para a prática efetiva de uma bioética. Para Volnei Ivo Carlin “as articulações da bioética assentam-se no tripé nem sempre harmonioso: médico (beneficência), paciente (autonomia) e a sociedade (pela justiça)”. São estes princípios fundamentais: 1. Autonomia, também conhecido como respeito às pessoas; 2. Beneficência; 3. Isonomia ou Justiça. O princípio da Autonomia ou autodeterminação refere-se à vontade e à razão humanas e sua capacidade em deliberar sobre si e agir no sentido desta deliberação, autogovernando-se, agindo e sendo sujeito. Este princípio segue duas divisões: o reconhecimento da autonomia dos capazes (consentimento livre) e a necessidade de proteger aqueles que a tem, autonomia, reduzida (consentimento substitutivo). Em suma, baseia-se no princípio da dignidade humana, isto é, o homem tratado enquanto fim em si, impedindo a exploração do homem pelo homem e a supressão da vontade pela vontade atroz. A palavra “beneficência” deriva da expressão latina “bonum facere”, que significa “fazer o bem”. Isso já nos dá uma indicação do que é o princípio da Beneficência. Pode-se considerá-lo o critério mais antigo da ética médica, e mais que simplesmente fazer o bem, englobando também o não causar dano e favorecer a qualidade de vida. Seu critério mínimo é o princípio da caridade, ou seja, não fazer sofrer. Basicamente pode ser resumido como agir sempre em atenção ao maior benefício passível de ser oferecido ao paciente. O princípio da Isonomia ou da Justiça, que obriga a uma distribuição justa, equânime e universal dos benefícios da medicina. Sustenta-se, por sua vez, nos princípios da igualdade social, do bem-estar coletivo, da proporcionalidade natural e da eqüidade. Tal princípio é análogo ao conceito jurídico de isonomia. Deste modo, havendo dois indivíduos iguais, em situações semelhantes, deve-se ministrar-lhes o mesmo tratamento. Encontra, contudo, problemas quanto a este tratamento, quanto à forma de sua aplicação face a problemas mais complexos, que ora buscamos solucionar adotando o princípio da igual consideração de interesses, proposto anteriormente como um dos princípios norteadores deste trabalho.

Bioética e Direito Mas qual a relação entre o Direito e a Bioética? Conforme exposto, a bioética surgiu para limitar e regular as práticas biomédicas, tendo em vista seus avanços, que da simples arte de curar evoluíram também para outros campos, como os das medicinas preventiva, que permite prever o aparecimento de certas enfermidades; psicondutiva, visando o controle mental e a conduta do indivíduo; paliativa, que tem por fim assegurar a qualidade de vida dos doentes terminais; permutativa, que engloba os transplantes, a procriação assistida e a engenharia genética; e perfectiva, que se propõe a aperfeiçoar a condição humana, seja com cirurgias estéticas ou terapias gênicas. Essa evolução da ciência não conjuga-se com o preparo dos médicos para seus desafios éticos, e a indústria da saúde também não pretende, por si, conter-se nestas pesquisas. É verdade que a bioética traça parâmetros mínimos a serem adotados, mas faz-se premente a presença do Direito que, por meio de leis, fará valer estes parâmetros, não mais como opção, mas como instrumento coator. Dado o salto dos avanços científicos permitir que as práticas médico-científicas se auto-regulem é arriscar, com grande probabilidade, um dano irreparável não apenas para a dignidade do ser humano, mas para a própria natureza, suporte para todos os demais sistemas vivos. Não basta, contudo, legislar apenas sobre condutas consideradas nocivas e que correm o risco de serem lícitas por não serem expressamente proibidas, mas elaborar todo um enquadramento legislativo que garanta os direitos fundamentais do homem. A maior parte dos problemas que surgem hoje em dia envolvendo este tema, e que em breve envolverão temas eugênicos, como seleção de atributos genéticos dos filhos e congêneres, é a falta de uma regulamentação, tanto nacional quanto supranacional, de que se vale a indústria da saúde, pelo princípio de que aquilo que não é proibido é permitido. Deve o Direito, porém, apoiar-se tanto na ética quanto na bioética quando da formulação das leis, não podendo bastar-se, exigindo-se este estudo interdisciplinar. Assim, atualmente, é necessário que andem juntas tanto as ciências naturais como as normativas, para que o homem não corra o risco de tornar-se meio, ou seja, mero objeto na ânsia pelo progresso. Há, contudo, quem contrarie esta idéia de legislar, como Philippe Le Tourneau , para quem bastam os grandes princípios do Código Civil para regulamentar a situação, e, afirma, que se houver intenção de legislar sobre o assunto, é preciso que haja prudência, dando à matéria grandes princípios, sem muito detalhamento. Contudo, é assente a opinião de que faz-se premente um maior envolvimento da sociedade para delimitar os limites das pesquisas, porque a Ciência não retrocede, e deve o Direito traçar limites mínimos de proteção.

POR QUÊ TEMER A EUGENIA? Há, atualmente, uma série de pesquisas em vários laboratórios do mundo que visam a manipulação controlada em organismos vegetais e animais, patrocinadas pelas indústrias agroalimentares e farmacêutica, e na biomedicina, incluindo experiências com Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). Concomitantemente, alguns estudos extrapolam os limites do ético a ponto de desejarem que o ser humano também se torne um OGM, dando vazão a um projeto autoritário de eugenia positiva, contrariamente à liberdade e ao consentimento individual, bem como à noção de dignidade do homem. Teme-se que, à falta de uma legislação específica, nacional e supranacional, velhos e novos fantasmas que assombram a humanidade tomem forma na figura de governos absolutistas, no pior modelo descrito por Aldous Huxley em seu “Admirável Mundo Novo”. Atualmente é freqüente a mídia divulgar a identificação de genes responsáveis por doenças, como o mal de Alzheimer e a esquizofrenia, assim como determinantes de personalidade, como alcoolismo, dependência química e homossexualidade, contudo, a verdade é que alguns destes genes ainda não foram descobertos realmente, e o que se obteve foi apenas algumas correlações estatísticas, que a mídia tende a potencializar, e daí o seu perigo. Por ora só é possível utilizar este conhecimento da biologia molecular e da engenharia genética para prever o aparecimento de doenças de origem genética, por meio do “screening genético” (seleção genética). Todavia, esta informação obtida através do “screening genético”, por enquanto, abre apenas duas possibilidades: ter ou não o filho sujeito à doença, e, ao optar-se pela primeira hipótese, esperar que a terapia genética, associada a tratamentos convencionais, consiga bloquear ou minorar os efeitos do mal. Temos, portanto, que há um “saber o quê”, e não um “saber o que fazer”, mas o futuro que se descortina é promissor, ainda que tímido atualmente. Até agora tratamos de casos de “eugenia negativa”, sobre a qual existe um relativo consenso moral, já que trata tão-somente de prevenção de doenças e má-formações a afetar a qualidade de vida dos portadores, e não da “eugenia positiva”, sobre a qual recai o grande receio da sociedade, que contra ela levanta fortes argumentos morais. Assombra o imaginário a possibilidade de alterar a identidade humana por dentro, sem precisar valer-se de meios externos, como o social-darwinismo e a eugenia clássica, alterando os genes que, supõe-se, seriam os responsáveis tanto pelas doenças e malformações físicas e psíquicas, como também por atitudes “socialmente reprováveis”, isto é, todos aqueles comportamentos distintos dos tidos como “normais” por determinada sociedade em determinado período. Poder-se-ia dar, assim, a manutenção dos portadores dos genes considerados “bons” ou “úteis”, e a modificação ou descarte daqueles portadores de genes considerados "maus" ou “nocivos”. Uma nova eugenia que, por meio da eugenética, estaria realizando uma melhora na qualidade de vida para a raça humana, mas não o estaria fazendo para os indivíduos que a compõem. Assim, traz-se à baila novamente a questão do que seria “normalidade”, e se a manutenção de um modo de vida não acabaria por enfraquecer a sociedade e a própria raça humana, que sofreria os efeitos de uma entropia. Contudo, tais questões não são o objeto do presente estudo. Pelo exposto, não se pode dissociar a eugenética do eugenismo, ou seja, não se pode separar este saber biocientífico oriundo tanto da biologia molecular quanto da engenharia genética, da ideologia que ela representa, a busca da felicidade ou “do melhor dos mundos”. O vulgo não vê limites para a extensão da técnica científica, mas este fascínio popular encontra respaldo, pois, porquanto ainda não se possa realizar tudo quanto o vulgo acha possível, algumas técnicas, como dito anteriormente, já são viáveis, e outras serão dentro em breve, nesta progressão exponencial da ciência, donde surge esta “utopia” representada pelos elementos já citados, na intenção de “melhorar” a natureza humana interferindo em sua formação genética, direta ou indiretamente, como por exemplo sob a alegação de preparar a raça humana para melhor se adaptar a um ambiente futuro, em condições vindouras, apenas imaginadas, mas totalmente desconhecidas. Assim, aos poucos surgem condições para satisfazer tanto as necessidades quanto os desejos presentes no imaginário humano, partindo desde a supressão de determinadas doenças até a satisfação de medidas burocráticas de um Estado. O espectro do eugenismo essencialmente origina-se de um espectro maior: a transformação de tudo o que representa o ser humano a apenas uma série de dados genéticos, ou seja, a transformação do homem em coisa, e é um pequeno passo a ser dado, a partir daí, para tornar o homem meio de determinado fim. Acerca destes mundos, segundo Fermin Roland Schramm , há duas atitudes ambíguas e excludentes a serem consideradas frente à eugenética: 1) fascinar-se e ingressar em uma “ecobioreligião da Grande Saúde”, ou seja, a formação utópica de um único projeto mundial que passa a se impor; 2) ou uma desconfiança, que é também fascínio, sobre os eventuais “benefícios” para a vida e saúde humanas a serem trazidos pela vigência deste paradigma biotecnocientífico. Diz ainda o professor que esta utopia traz dois cenários possíveis: 1) ou um mundo perfeito, com seres humanos melhores, pela introdução de estruturas naturais/artificiais; 2) ou um cenário totalitário, onde impera o controle tecnoburocrático sobre a natureza humana. Deve-se, porém, desconsiderar ambos os aspectos, já que um atenta a que tudo o que é natural deve ser necessariamente bom, e outro entende que há uma ignorância das leis naturais pela ciência, o que é improvável. O problema, contudo, é que conforme se dá o crescimento deste saber e desta técnica, em probabilidade se aumenta o risco de seu uso para fins perversos, afetando tanto a Natureza quanto a dignidade e liberdade humanas. Hoje é comum ouvir afirmações que alertam sobre o risco das pesquisas, o que nos conduz a uma maior vigilância, que só pode ser exercida adequadamente por meio de leis que regulem, não que reprimam, as pesquisas genéticas, tendo em vista o risco da clandestinidade daquilo que é proscrito. Faz-se premente o surgimento de uma ética que se regule entre os riscos possíveis e os benefícios prováveis, ou seja, é preciso levar em consideração as conseqüências antes de se decidir por qualquer ação, e é o que propõe o princípio ético da igual consideração de interesses.

EUGENIA E DIREITO O direito, na função de mecanismo regulador de condutas, deve atentar às modificações do comportamento humano e acompanhá-lo, quando possível. O presente estudo analisa estas alterações oriundas do extraordinário avanço científico que ora presenciamos e que estão deitando por terra conceitos que até então revestiam-se com o caráter de imutabilidade, e que, na falta de parâmetros jurídicos adequados, pode desvirtuar-se em práticas eugênicas de grande escala. É, assim, função dos juristas sugerir com quais instrumentos legais armar-se-á o Estado para atuar de forma que a comunidade respeite a parte ética que, a juízo do legislador, perderá este caráter ontológico para tornar-se deontológico, isto é, obrigatório. Para isso, deve-se, antes de mais nada, definir-se a hierarquia dos bens jurídicos que são intimamente ligados à sobrevivência da espécie humana, tais como a vida, a liberdade, a igualdade e a dignidade humana. Os bens têm seus valores variando no tempo e no espaço, já que os valores sociais têm uma existência histórica, não sendo perpétuos nem imutáveis numa mesma sociedade, alterando-se conforme o ensejarem novas circunstâncias. Cada sociedade, em diferentes épocas, adota determinados valores e, desta formulação, concebe e adota as normas jurídicas e morais. A norma jurídica não se origina apenas do fato e da inteligência; pois, quando o intelecto valora um fato, o faz com fundamento nos valores adotados pela comunidade. É verdade que nenhum bem tem valor absoluto por si mesmo, mas certos bens hão que ser resguardados, haja vista que sua transcendência jurídica se relaciona com a significação que adquirem para determinada comunidade em um momento histórico, considerado isoladamente e também em relação aos demais bens dignos de amparo. São várias as concepções para bem jurídico. Por exemplo, segundo De Plácido e Silva "toda coisa, todo direito, toda obrigação, enfim, qualquer elemento material ou imaterial representando uma utilidade ou uma riqueza, integrado no patrimônio de alguém e passível de apreciação monetária, pode ser designada bem" . Há ainda a concepção de bem jurídico, ainda que pouco evidente, realizada por Franz von Liszt, segundo o qual “o fim tutelar de todo Direito Penal é constituído por interesses humanos denominados bens jurídicos, caracterizando-os como grandes momentos em suas origens, independentes do direito positivo, o que permite fixar limites ao legislador penal” , assim, não obstante trate de Direito Penal, o conceito suso transcrito nos remete à idéia de que o bem jurídico é independente do direito positivo, isto é, o interesse humano há que regular a elaboração das leis, na busca do bem comum. Há, porém, um óbice nesta tarefa de hierarquizar os bens jurídicos, qual seja, o conflito existente entre o direito estipulado, expressa ou tacitamente, a limitar excessivamente a atuação dos pesquisadores, na medida em que se imagina sejam estas pesquisas destinadas à melhoria da qualidade de vida do ser humano, assim como a manutenção de sua sobrevivência, em contraposição ao perigo de se permitir uma liberdade maior aos pesquisadores, aumentando a probabilidade de se lesar os já citados bens essenciais ao ser humano. É evidente que a conduta de pesquisadores irresponsáveis colocará de pronto em risco um bem jurídico fundamental e imutável, além de qualquer discussão e divergência doutrinárias, que é a sobrevivência da espécie humana, e que, portanto, merece uma resposta penal. Resposta esta que necessita ser criteriosa e medida, de modo a não obstar o progresso científico, do qual também depende a humanidade, conforme explicitamos. É inegável que a vida é o suporte biológico não apenas do indivíduo, mas da espécie, e é sobre ela que repousam todos os valores do homem. Destarte, em uma primeira análise, mesmo a dignidade humana deve curvar-se a este bem jurídico, hierarquicamente superior, de valor fundamental, a ser preservado a todo custo, não obstante os avanços que hoje o ameaçam, pois, se abrirmos caminho para a destruição da humanidade, já não existirá qualquer base ôntica onde possam assentar estes valores. O risco, ainda, é que os avanços científicos têm demonstrado a real possibilidade, ainda que atualmente não haja condições, de levar a cabo programas de eugenia positiva, por meio da manipulação genética, ensejando a definição do sexo, cor dos olhos ou de cabelos dos indivíduos por nascer. Ou então a elaboração de um indivíduo perfeito, conforme os cânones vigentes em determinado período histórico, e depois sua reprodução em série, mediante técnicas de clonagem; ou ainda, supor a criação de seres de nível intelectual baixíssimo, mas de grande força física, destinados à realização de tarefas braçais. Estas são algumas das diversas hipóteses a serem aventadas, probabilidades ainda, mas que demandam séria reflexão, onde há que se ponderar entre os valores e os objetivos conflitantes, fixando parâmetros dentro dos quais trabalharão os cientistas, que, por um lado, não devem vulnerar a liberdade científica e de investigação, e por outro ofereçam meios de salvaguardar os bens jurídicos em jogo. Não se pode fiar em uma auto-regulamentação por parte dos cientistas, isto é, permitir um vácuo de normas tanto éticas quanto jurídicas deixando o limite por conta dos pesquisadores, por dois motivos precípuos: 1) estas técnicas produzem impacto no próprio fundamento da sociedade, o que engendrará uma transformação radical nas estruturas atuais e, para que estas alterações sejam legitimadas, devem contar desde o início com o consenso e a participação responsável de toda a comunidade atingida por ela; 2) a maioria dos cientistas se recusa a meditar sobre qualquer limitação sobre suas pesquisas, avançando inconseqüentes até que o erro não seja capaz de ser reparado. A este temor da inconseqüência dos cientistas deve-se somar o fato de que, o mais das vezes, os donos de tais decisões arriscadas são os titulares dos poderes econômicos ou políticos, que, cegos a tudo que não seja seu objetivo, não temem esmagar os bens jurídicos que insistentemente citamos como essenciais ao homem. Percebe-se que o avanço é inevitável, e, portanto, necessária a participação da comunidade nas discussões sobre o estabelecimento de normas, tanto éticas quanto jurídicas, já que ela, comunidade, será a maior afetada. É preciso ainda atentar que não se está desconhecendo do valor ou da responsabilidade dos cientistas experimentais, mas sim exortando a sociedade a participar das discussões acerca deste assunto, que tem como objeto também o ser humano, e que pode colocar em risco a sua sobrevivência como espécie, não só pela prática de medidas eugênicas, mas também com a alteração do ambiente que suporta a humanidade. Contudo, não basta realizar esta formação do pensamento ético que venha a traçar os limites para a pesquisa e a experimentação científicas: é preciso estabelecer até onde atuará o Direito, em suas diferentes disciplinas, de modo a assegurar que a conduta dos cientistas se pautará por estes limites anteriormente aceitos por toda a sociedade. Tais regras, porém, não deveriam se limitar aos campos do Direito Civil e Penal, mas também adentrar nas áreas do Direito Administrativo, Comercial e Ambiental, assim como na do Direito Internacional, tanto Privado quanto Público, pois há um certo consenso estabelecido de que a legislação limitativa básica tenha vigência internacional, para impedir a criação de “nichos genéticos”. Faz-se premente a presença de um melhor estudo do direito que coíba os abusos aos bens jurídicos já citados, evitando-se a tomada de práticas eugênicas, de forma que, neste ponto, o Direito Penal mostra-se necessário.

CONCLUSÃO Quando nos dispomos a iniciar este trabalho não fazíamos idéia da dificuldade e extensão do tema. Contudo, ainda que tido como proscrito, o assunto tornou-se progressivamente apaixonante. Caminhamos pela noite nesta estreita e tortuosa vereda com pouquíssimas luzes, apenas para, ao final, chegarmos com mais indagações do que quando começamos. As certezas abaladas. Começamos tratando de Platão, Huxley e Nietzsche, de nazistas, vikings e espartanos, enfim, traçamos um breve panorama histórico. Tentamos encontrar um paradigma ético, um denominador comum mínimo, a guiar as afirmações deste trabalho. Julgamos tê-lo encontrado com certo êxito. A urdidura desta trama uniu os elementos a que se propôs, ainda que sem pretensões. Do quanto tratamos da eugenia resta uma pergunta que resume todo o trabalho: fazer ou não fazer? Tudo leva a crer que a eugenia será praticada, não por uma questão de poder ou não, mas em razão da natureza humana, que tende para isso. Medidas eugênicas de maior e menor monta participam de nosso cotidiano, até mesmo na seleção dos parceiros, por esta ou aquela característica, ainda que o homem tenha trocado seus instintos por uma “razão imaginária”. Triste escambo. Mas a eugenia está aí, e o desenvolvimento caminha para um projeto maior e, o que é mais terrível, sem controle, se o Direito continuar a fechar os olhos para a realidade. Resta tentar manter esta prática dentro de limites éticos aceitáveis, dando a maior visibilidade possível de todos os progressos científicos e impedindo as práticas flagrantemente contrárias a valores tais como a vida, a liberdade e a dignidade humana. Atitudes como excluir a iniciativa privada deste nicho são inócuas e perigosas, pois, enquanto todos estiverem envolvidos, sob o régio domínio de leis equânimes e preocupadas com o bem comum, os problemas engendrados podem ser minorados. De outra forma, a cisão resultará em uma multiplicidade de focos de pesquisa distantes da legalidade. É preciso, concomitantemente a programas de educação, discussão e normatização, fazer com que a Ciência mantenha seu vínculo com o bem comum em prol do homem. Pacífica também é a idéia de que é preciso criar instituições, entidades autárquicas, que exerçam a árdua tarefa de supervisionar as atividades ligadas à manipulação genética, conquanto haja a discussão sobre a subordinação e a formação destas instituições, bem como suas competências, sem que se confundam com comitês de bioética, já que estes possuem um caráter de mera consultoria. Sobre a questão do Direito, é certo que ele deve amparar-se na ética, valendo-se tanto dos estudos mais antigos quanto dos novos, versando sobre bioética, quando da formulação das leis, exigindo uma postura interdisciplinar, de modo a caminharem juntas tanto as ciências naturais quanto as normativas, para que o homem não se torne mais uma pedra no calçamento do progresso. Desta forma, o papel do Direito é o de preencher esta lacuna normativa, delimitando as pesquisas de modo a não prejudicar o avanço científico, mas impedindo ações lesivas ao homem e ao patrimônio natural. É inegável que, em razão da necessidade da interdisciplinariedade e de tratar-se de um assunto que envolve toda a humanidade, exige-se a participação ativa da sociedade, não sendo mais admissível que a discussão encerre-se entre poucos. Isso porque a Ciência, uma vez que tenha dado um passo, não mais retrocede, haja vista que aquele conhecimento adquirido fará parte do repositório de saber da humanidade. Ao Direito cabe traçar os contornos da liberdade de ação, já que é impossível, e até perigoso, coibir a pesquisa científica, que de outra forma agiria na clandestinidade. Porém, não é possível ao Direito dizer para onde a Ciência deve ir, mas por onde ela não pode caminhar, porque as pesquisas não param e muitas descobertas ocorrem pelo acaso, e, acaso ou não, são sempre irreversíveis. Temos, portanto, que há a necessidade de uma regulamentação específica, ainda que trate do assunto de forma genérica, sob o risco de ser ultrapassada antes de sua promulgação, da qual o jurista possa valer-se de forma eficiente como solução aos problemas e ameaças do exacerbado avanço tecnológico e de sua dissonância com o respeito ao Homem e à Natureza, ou seja, normas a serem seguidas por toda a sociedade dentro de um quadro axiológico; mas, enquanto perdurar este “vácuo jurídico”, a proteção da dignidade humana recai sobre os princípios gerais do direito. É verdade que ainda não há a possibilidade de levar a contento um projeto de eugenia positiva de grande escala sem que se valha de métodos drásticos como o de extermínio em massa. Mas é uma possibilidade e, mais que isso, uma probabilidade, tendo em vista a omissão da sociedade em tratar de um tema tido como maldito, em razão de uma mistificação de fatos históricos. A pergunta correta não é se a eugenia deve ou não ser feita, mas de que forma ela realizar-se-á. O bem do homem encontra-se também na eugenia, desde que levada a cabo adequadamente. Ao Direito, a função de reger este processo, em conjunto com outras disciplinas, em benefício da humanidade. Resta, no final de tudo, lançar à sorte a seguinte questão: até onde o homem, enquanto homem, pode se erguer sobre a espécie à qual pertence para decidir o futuro dos demais membros desta mesma espécie?

Respostas

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    Marcelo Lima Quarta, 22 de junho de 2005, 17h23min

    1. Sª está de parabéns pelo artigo. Além de muito bem fundamentado, admirei-me pela persuasão na argumentação de uma temática tão complexa e profunda.
      Gostaria de contribuir, com vossa permissão, para a reflexão centrando meu foco nas duas últimas frases do artigo em que se levanta o questionamento sobre o posicionamento humano diante dele mesmo.
      Gostaria de lhe perguntar, qual o entendimento que V. Sª tem sobre o que é ser Homem? A partir daí pode-se-á traçar metas reflexivas, cujo objetivo seria responder ou problematizar ainda mais vossa indagação.
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    Maria Rosângela C. Soledade Quinta, 21 de julho de 2005, 23h11min

    Oi Kelly, boa noite! está de parabéns pelo belo texto que produziu. E quanto a sua pergunta:
    Eu acredito que a partir do momento que o homem ter conciência da importância de preservar o meio em que vive, pensando nas gerações futuras que precisará destes mesmo recursos para sua sobrevivêcia e qualidade de vida.Enfim quando houver uma sustentabilidade em dimensões ambientais,econômicas,sociais, políticas e culturais, o que necessariamente traduz várias preocupações com o presente e o futuro das pessoas.
    Um abraço e muito sucesso pra você.
    Rosângela.

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