CONTINUAÇÃO
Diante desse quadro, pergunta-se, há proporcionalidade nessa medida? Esse é o questionamento acadêmico que se pretende abordar.
A propósito, cabe alertar que penas desproporcionais não servem a ninguém, sequer ao Estado em seu campo acusador (MP), pois com elas cria-se a sensação de impunidade na comunidade, que não vê aquilo que foi noticiado como conquista pela imprensa, sendo confirmado na prática. A reforma da decisão pelos tribunais superiores, ou até mesmo a limitação de 30 anos para cumprimento da pena (obrigatório também no sistema militar), acabam sendo confundidos pela população como ineficiência do Poder Judiciário, quando na verdade apenas se aplicou a instrumentalidade procedimental exigida, que deveria ter sido observada desde o julgamento a quo.
Pelo objetivo desse breve texto, não se enfrentará a discussão a respeito da teoria adotada pelo nosso Código Penal Brasileiro para aplicação do crime continuado, embora considere mais coerente a utilização da teoria mista (envolvendo critérios objetivos e subjetivos, como a unidade de desígnios, que diferencia o crime continuado da habitualidade criminosa, não obstante esse tema ainda não esteja pacífico no Brasil).
Portanto, seja qual for a teoria utilizada, nota-se que não se trata de uma aplicação aleatória para beneficiar o réu por complacência do juiz, mas sim de um verdadeiro direito subjetivo do cidadão, quando preenchidos todos os requisitos legais fixados. Os réus, portanto, só teriam direito a esse benefício se ficasse provada a continuidade delitiva com todos os seus requisitos verificados.
Em resumo, o crime continuado procura diminuir o rigor da aplicação do concurso material, fazendo com que as penas não sejam somadas, mas sim aplicada uma delas (a mais grave) com uma causa de aumento pelo cometimento das subsequentes, através da exasperação. Por isso, o penalista argentino ZAFFARONI [4] utiliza a expressão “concurso material atenuado”, pois é isso que de fato ele representa. Dessa forma, atinge-se, ou pelo menos se aproxima, da razoabilidade, já que os atos posteriores não serão desconsiderados e tornados impunes, mas apenas não receberão o mesmo tratamento de um novo crime, afinal isso eles não são. Os atos posteriores continuados são muito mais um aproveitamento do primeiro crime que deu certo, do que novos crimes na sua acepção psicológica e finalística (dolo).
Entretanto, como adiantado, o Código Penal Militar, elaborado em 1969, não prevê a mesma sistemática. Ao tratar sobre o crime continuado, o diploma repressivo especial traz um tratamento desatualizado, prevendo a possibilidade de cúmulo (somatório) de todas as penas previstas, conforme seus artigos 79 e 80 dispõem. Assim, para o Código Penal Militar, usado para os crimes dessa natureza, a continuidade delitiva é tratada da mesma forma que o concurso material comum, somando as penas de todas as condutas sequenciadas.
Nesses dispositivos, em nosso sentir, nasce a contrariedade ao ordenamento jurídico atual e constitucionalizado, os quais deram margem à interpretação literal, possibilitando a condenação recorde no Brasil de 1.533 anos de prisão. Em uma visão mais contemporânea, baseado na unidade sistemática e, sobretudo, humanística, torna-se inconcebível este tratamento, por afronta direta à própria Constituição Federal.
Evidencia-se, com isso, que a atual Constituição Cidadã de 1988 não recepcionou estes dispositivos do Código Penal Militar por arranhar de forma direta e imediata normas constitucionais insuperáveis e irradiantes, devendo ser reconhecida essa contrariedade e reformulada a condenação dos militares, dentro de técnicas contemporâneas de dosimetria. A analogia, assim, seria buscada no Código Penal comum (art. 71), com as regras que disciplinam o crime continuado de forma mais adequada, caso os requisitos previstos nesse artigo sejam todos demonstrados no processo sub judice.
Registre-se, por oportuno, que em momento algum se pretende defender a impunidade ou a desconsideração de que esse caso em concreto demanda uma condenação rígida, até por se tratar de militares, servidores públicos que devem evitar crimes e não cometê-los. Contudo, em nome deste objetivo legítimo o operador do direito não pode sepultar princípios e até postulados que sustentam e dão coerência ao sistema, existindo outros mecanismos legais que atingem o mesmo fim. Traduzindo para este ambiente, a virtude deve estar na proporcionalidade das penas, postulado jurídico hermenêutico [5] (cf. ÁVILA) fortificante de todo o sistema penal brasileiro, calcado em ideais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito e da necessidade de ressocialização das penas (princípio da humanidade – art. 5º, XLVII e XLIX, da CRFB/1988).
O princípio da humanidade, diante da sua envergadura, exige uma compreensão onipresente, atuando desde a fase das investigações até o momento de aplicação e execução das penas, bem como em todas as áreas sancionatórias, sejam crimes militares ou comuns. Esquecê-lo pode conduzir o intérprete a equívocos muitas vezes irreparáveis, conforme a história já nos ensinou.
Sobre o tema, segundo as clássicas lições do sempre lembrado BECCARIA [6]:
“Se se estabelece um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo, para quem mata um faisão e para quem mata um homem ou falsifica um escrito importante, em breve não se fará mais nenhuma diferença entre esses delitos; destruir-se-ão no coração do homem os sentimentos morais, obra de muitos séculos, cimentada por ondas de sangue, estabelecida com lentidão através de mil obstáculos, edifício que só se pode elevar com o socorro dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes formalidades.”
O fundamental, desta feita, é a manutenção de um sistema coeso e forte, não enxergando as penas tão somente em sua quantidade, mas também em sua efetividade. Penas altas não significam necessariamente um castigo maior, e podem, numa análise comparativa com outros fatos criminosos mais graves, passar uma ideia de injustiça e contradição, conforme orientação do jus filósofo italiano supracitado. Prefere-se, portanto, penas justas e rígidas, mas factíveis e realistas, em nome de uma prevenção genérica de exemplo social da pena como coação simbólica aos demais cidadãos.
Não respeitar tais valores, mesmo que o texto frio de uma lei específica assim permita e até deseje, como parece ter feito o CPM, é o mesmo que regredir e aceitar que os ramos da Ciência Jurídica são isolados e formam um todo assistemático, pois condenações como estas, repita-se, desproporcionais, acabam se afastando dos ideais normativos referidos, e reforçando na sociedade uma visão de Justiça ineficaz, que condena, mas não executa na mesma rigidez, ou que trata situações semelhantes - crimes continuados no âmbito penal comum e penal militar - de forma tão distintas.
Em pesquisas jurisprudenciais constata-se que o tema ainda é controverso nos Tribunais superiores, havendo posicionamento favorável à aplicação da regra do crime continuado do Código Penal comum, aos crimes militares, conforme decidiu reiteradas vezes o STM – Superior Tribunal Militar, beneficiando o réu, e, por outro lado, existe negativa da aplicação analógica por parte da 1ª turma do STF, em julgado ocorrido em 2007, que defendeu o uso do princípio da especialidade a favor do Código Castrense.
Tribunais estaduais militares também já tiveram a oportunidade de se debruçar sobre o instituto e aplicaram a regra do crime continuado do Código Penal comum aos processos de militares, fundamentando a decisão justamente na excessiva rigorosidade do previsto no CPM, que gerava tratamento diferenciado, ferindo a isonomia e fugindo da proporcionalidade. Nesse sentido estão os Tribunais de MG (Apelação Criminal n. 2.332 - Proc. n. 17.381/3ª AJME) e de SP (Apelação Criminal n. 5.240/03 - Feito n. 31.856/02, 4ª Auditoria).
Desta forma, acreditamos que o STF, principal intérprete da Constituição, porém não o único, ainda não tem um posicionamento consolidado a respeito do tema, pois só analisou esse conflito uma única vez, e através de habeas corpus em uma de suas turmas, em caso concreto que a diferença de tratamento não se mostrava tão agressiva e desumana (HC 86854, Relator: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJ 02-03-2007), não cabendo ainda afirmar que há “jurisprudência do STF”, mas apenas precedente sobre parte da matéria.
Aguarda-se, diante da grande repercussão nacional deste caso, com relevante conflito de teses jurídicas sobre o tema, e da gravidade da pena imposta nesse julgado, que haja uma análise mais ostensiva das instâncias superiores e da doutrina abalizada que, certamente, deverão ser provocadas para discutir esse tema com mais profundidade, contribuindo no reforço de um processo criminal com reais inspirações constitucionais.
*obs: Cabe registrar que esse texto aborda um aspecto meramente teórico, discutindo pontos de vista acadêmicos e supondo, em tese, que o caso concreto reúne todos os critérios para aplicação do crime continuado, nos moldes do Código Penal Brasileiro, não tendo o condão de criticar a decisão propriamente dita da respeitável Justiça Militar da PB, não entrando no mérito dos pormenores e provas constatados ao longo da marcha processual.