Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/10589
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Fundamentos das transferências intergovernamentais

Fundamentos das transferências intergovernamentais

Publicado em . Elaborado em .

O artigo aborda os fundamentos econômicos e jurídicos das transferências intergovernamentais num Estado Federado e sua importância para assegurar a autonomia financeira dos entes subnacionais.

Resumo: O artigo aborda os fundamentos econômicos e jurídicos das transferências intergovernamentais num Estado Federado e sua importância para assegurar a autonomia financeira dos entes subnacionais. Serão analisadas as espécies de transferências, suas classificações e seus objetivos. Além disso, serão apresentadas diretrizes para um desenho de um sistema de transferências intergovernamentais adequado: a flexibilidade, a preservação da autonomia dos entes federados, a previsibilidade e a regularidade das transferências e a capacidade de não inibir a arrecadação local. O estudo dos temas fundamentais serve de pano de fundo para a interpretação das normas jurídicas pertinentes à matéria e para a solução de conflitos entre os entes federativos no tocante à distribuição de encargos e à distribuição de recursos financeiros.

Palavras-Chave: Autonomia, Autonomia Financeira, Transferência, Repasse, Ente Federado, Federação, Equidade Vertical, Equidade Horizontal, FPM, FPE, Fundos de Participação.


1. INTRODUÇÃO

Estão em pauta diversas questões pertinentes às relações intergovernamentais no Brasil. De fato, são várias as propostas de reforma tributária, de alteração nas transferências constitucionais e de redefinição dos encargos de cada um dos entes federados que tramitam indefinidamente pelo Congresso Nacional sem um consenso para sua aprovação.

Enquanto isso, prefeitos e governadores rumam para Brasília para pleitear junto aos Ministérios e ao Congresso Nacional a inclusão e a liberação de emendas parlamentares destinadas à realização de obras e serviços públicos na sua região ou localidade.

Trata-se de um tipo de relacionamento promíscuo que pode ensejar as mais variadas formas de violação dos princípios basilares da Administração Pública. O exemplo mais marcante foi desvendado pela CPI do Orçamento (1993), na qual ficaram constatados esquemas de fraude envolvendo transferências de recursos e subvenções, conforme revela a Folha Online:

"4. O grupo [de Deputados] dispunha de três fontes de recursos. A primeira era formada pelas propinas pagas pelos prefeitos para incluir uma obra no Orçamento ou conseguir a liberação de uma verba já prevista. Para tanto, João Alves criou uma empresa, a Seval, que cobrava uma "taxa" para fazer o serviço;

5. Também cobravam propinas de empreiteiras para que os donos da Comissão de Orçamento incluíssem obras no Orçamento da União ou conseguissem que os ministérios liberassem recursos para obras que constavam do projeto;

6. Eram beneficiados ainda com a aprovação de subvenções sociais dos ministérios para entidades "fantasmas" registradas no Conselho Nacional do Serviço Social, controladas pelos próprios parlamentares, que serviam para financiar campanhas políticas;" (anotamos)

Situação semelhante se repetiu, anos mais tarde, com a chamada Máfia dos Sanguessugas (2006), envolvendo transferências intergovernamentais destinadas à aquisição de ambulâncias, o que demonstra que as lições do passado não foram aprendidas.

Estes exemplos revelam a importância do desenho adequado do sistema de transferências intergovernamentais num Estado Federado.

A Federação pressupõe a autonomia financeira dos entes subnacionais (além de competências legislativas e materiais próprias) e as transferências intergovernamentais constituem uma importante forma de assegurar esta autonomia, mormente em Estados subdesenvolvidos e com grandes disparidades regionais.

Neste sentido, Conti (2001, p.10) ensina que: "Algumas características são intrínsecas à organização de um determinado Estado na forma federativa. Entre elas podem ser consideradas fundamentais as seguintes:

a) existência de, ao mesmo, duas esferas de governo;

b) autonomia das entidades descentralizadas, que compreende as autonomias política, administrativa e financeira;

c) organização do Estado expressa em uma Constituição;

d) repartição de competências entre as entidades descentralizadas;

e) participação das entidades descentralizadas na formação da vontade nacional;

f) indissolubilidade." (grifo nosso)

Mas no que consiste a autonomia das entidades descentralizadas?

Apesar da dificuldade de conceituar autonomia e de distinguí-la de outros conceitos correlatos (tais como soberania), é possível sistematizá-la em três categorias básicas (Conti, 2000, p.12):

a) autonomia política;

b) autonomia administrativa;

c) autonomia financeira.

A autonomia política (em sentido estrito) compreende "a competência para legislar, criando normas para determinados assuntos previamente delimitados pela Constituição; a competência para participar das decisões do Poder Central, o que será visto a seguir por ocasião da análise de uma das características do federalismo, que é justamente esta participação nas decisões do Estado; a delimitação de competências privativas relativamente à função de fornecimento de bens e serviços públicos; e a existência de órgãos próprios com os quais exercerá as funções que lhe foram delimitadas pela Constituição" (Conti, 2000, p. 13).

Por sua vez, a autonomia administrativa manifesta-se "pela capacidade que a Constituição confere às entidades descentralizadas de se auto-organizarem, ou seja, de estabelecerem os órgãos, meios e formas pelas quais se encarregarão de cumprir as tarefas que lhes foram atribuídas pela Constituição" (Conti, 2000, p. 13).

Isso posto, pode-se inferir que inexiste hierarquia administrativa entre a estrutura central e os governos subnacionais.

Não há também, via de regra, hierarquia entre leis editadas numa esfera ou na outra. Cada ente federado exerce sua competência legislativa própria conferida pela Constituição Federal. Excetuam-se, entretanto, as matérias de competência legislativa concorrente, nas quais as leis estaduais, distritais ou municipais devem se conformar às normas gerais editadas pelo poder central.

Por fim, a autonomia financeira de uma entidade descentralizada compreende o poder de arrecadar, gerir e despender dinheiros e valores públicos de modo independente das demais esferas de governo.

Ela tem caráter instrumental, pois, visa assegurar o exercício autônomo das competências constitucionalmente atribuídas a determinado ente federado, ou ainda, o exercício das espécies de autonomia anteriormente descritas. É consenso na doutrina que, havendo dependência de recursos do poder central, concedidos de forma discricionária, não se pode falar em autonomia política ou administrativa das esferas dependentes.

Uma condição necessária da autonomia financeira é justamente a disponibilidade, pelos governos subnacionais, dos recursos necessários para fazer face aos encargos que lhes foram atribuídos. Tais recursos compreendem a arrecadação própria, no âmbito de sua competência tributária, e os oriundos das transferências intergovernamentais.

Corroborando este entendimento, Conti (2000, p. 16) pronuncia: "As entidades descentralizadas que, unidas, compõem a federação têm, necessariamente, que dispor de recursos suficientes para se manter, o que implica em fontes de arrecadação que independem da interferência do poder central, constituindo esta uma característica fundamental do Estado Federal. Em geral, há, como já mencionado, duas formas de assegurar a autonomia financeira: a primeira é a atribuição de competência para a instituição de tributos; outra são as transferências intergovernamentais asseguradas pelo texto constitucional, com cláusulas que assegurem o fiel cumprimento deste dispositivo".

No mesmo sentido, expõe Chagas (2006, pp. 82-83) que: "Elemento essencial na formação da autonomia dos Estados-membros é a existência de receitas próprias que possibilitem sua atuação independentemente do auxílio financeiro de outros estados federados. A existência de rendas próprias é pressuposto para o desempenho das competências titularizadas pelos Estados-membros. Deve-se entender, ainda, que o valor da receita deve ser proporcional aos encargos atribuídos aos entes federados. Os Estados-membros, no Brasil, captam recursos por meio de rendas próprias e de repasses intergovernamentais". (grifo nosso)

O objeto do artigo é tratar dos aspectos jurídicos e econômicos dos repasses entre entes federados. Serão discutidos aspectos gerais das transferências intergovernamentais, sem se ater às peculiaridades do sistema nacional. Serão abordadas as principais espécies de transferências, suas classificações, os objetivos visados e as diretrizes para um desenho de um sistema de transferências intergovernamentais adequado para um Estado sob a Forma Federativa.


2. CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO

As transferências intergovernamentais constituem repasses de recursos financeiros entre entes descentralizados de um Estado, ou entre estes e o poder central, com base em determinações constitucionais, legais ou, ainda, em decisões discricionárias do órgão ou entidade concedente, com vistas ao atendimento de determinado objetivo genérico (tais como, a manutenção do equilíbrio entre encargos e rendas ou do equilíbrio inter-regional) ou específico (tais como, a realização de um determinado investimento ou a manutenção de padrões mínimos de qualidade em um determinado serviço público prestado).

Tais transferências assumem as mais variadas formas e características, podendo coexistir num mesmo Estado.

Sob o ponto de vista do orçamento cedente, as transferências podem ser classificadas em transferências legais (ou automáticas) e as transferências discricionárias ou voluntárias. Segundo Prado, Quadros e Cavalcanti (2003, p. 23), as transferências legais "são aquelas nas quais os critérios que definem a origem dos recursos e os montantes a serem distribuídos para cada governo estão especificados em lei ou na Constituição". Ainda segundo os autores, as transferências discricionárias são as definidas em cada processo orçamentário e que resultam de negociações entre autoridades centrais, governos subnacionais e os representantes no parlamento.

Outra classificação comumente utilizada tem por base o grau de condicionalidade dos recursos a serem utilizados pelo orçamento receptor. Sob este critério, as transferências podem ser classificadas em transferências livres (ou incondicionadas) e transferências vinculadas (ou condicionadas). As transferências são livres "quando destinadas às unidades beneficiárias para que estas os recebam com autonomia para administrá-los" (Conti, 2000, p. 39). As transferências são vinculadas "quando o repasse de recursos só pode ser realizado com destinação específica, devendo a unidade beneficiária utilizar o valor recebido para uma finalidade previamente determinada" (Conti, 2000, p. 40).

A seguir, examinamos outras classificações apresentadas pela doutrina.

2.1Classificação de José Maurício Conti

Conti (2000, p.36) divide as transferências segundo a forma de distribuição dos recursos tributários de um ente para outro em: participação direta e participação indireta (ou em fundos).

Na participação direta, determinada parcela de um tributo arrecadado por uma unidade federativa deve ser transferida a outra. Como exemplo nacional, o autor cita o disposto no disposto no art. 158, III, da CF/88, o qual preceitua que cinqüenta por cento da arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR) deve ser repassado pela União aos Municípios onde o imóvel se localiza.

Na participação indireta ou por fundos, parcelas de um ou mais tributos são destinadas à formação de fundos, os quais serão distribuídos aos seus beneficiários segundo critérios pré-estabelecidos (Conti, 2000, p. 36). Os fundos constituem "um conjunto de recursos utilizados como instrumento de distribuição de riqueza, cujas fontes de receita lhe são destinadas para uma finalidade determinada ou para serem redistribuídas segundo critérios pré-estabelecidos" (Conti, 2000, p. 76). Sua definição, no direito brasileiro, encontra-se prevista no art. 71, da Lei n° 4.320/64: "Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação".

Como exemplos, o autor cita, no direito brasileiro, os Fundos de Participação dos Estados e Distrito Federal (FPE) e dos Municípios (FPM). No Direito Estrangeiro, são citados, dentre outros, o Fundo Geral de Participações e o Fundo de Fomento Municipal, no México (Conti, 2000, p.46), o "Fondo de Compensación interterritorial", na Espanha (Conti, 2000, p. 53), o Fundo Geral Municipal (FGM), o Fundo de Coesão Municipal (FCM) e o Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF), de Portugal (Conti, 2000, p. 59).

2.2Classificação de Sérgio Prado, Waldemir Quadros e Carlos Cavalcanti

Os autores classificam as transferências intergovernamentais segundo a sua função em: Devolução tributária, Transferências Compensatórias, Transferências Redistributivas e Transferências Discricionárias.

A devolução tributária refere-se aos recursos para os quais não há conexão direta entre o fato gerador do tributo e a alocação de receita. Os governos repassadores cumprem apenas o papel de arrecadador substituto, ao transferirem os recursos para os níveis inferiores, sem condicionalidades, como dotação orçamentária livre (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, p.46). Tais fluxos de recursos são estritamente neutros de modo que cada jurisdição recebe uma parcela da arrecadação central diretamente relacionada à sua capacidade fiscal, ou seja, à parcela da base tributária contida em seu espaço territorial, pelas regras tributárias vigentes (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, pp. 20-21)

Tais transferências correspondem à participação direta a qual se refere o item 2.1.

As transferências compensatórias são mecanismos destinados a evitar o impacto negativo de mudanças operadas no sistema tributário na arrecadação dos governos subnacionais (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, p. 47). Como exemplos de transferências compensatórias, no Brasil, podemos citar o Fundo de Compensação pela Exportação de Produtos Industrializados, instituído pela Constituição de 1988 e as transferências decorrentes da desoneração aos produtos semimanufaturados, aos bens de capital e aos produtos para consumo próprios das empresas relativa ao ICMS, consoante Lei Complementar n° 87/96 (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, p. 47).

As transferências redistributivas visam operar a redistribuição de recursos de modo da atenuar os desequilíbrios entre jurisdições (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, p. 46). Tais transferências correspondem a fluxos de recursos que não guardam proporcionalidade com a distribuição territorial das bases tributárias (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, p. 31). Prado, Quadros e Cavalcanti (2003, p. 48) citam, como exemplos, as transferências relativas os Fundos de Participação de Estados e Municípios, o Sistema Cota-Parte, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Fundef.

As transferências discricionárias (ou negociadas) são aquelas que resultam de negociação entre as autoridades centrais e os governos subnacionais, com a mediação de seus representantes no parlamento. Sua função é complementar e auxiliar as transferências "estruturais" por apresentar maior flexibilidade em situações excepcionais de curto prazo (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, p. 23).

2.3Classificação de Tereza Ter-Minassian

Segundo Ter-Minassian (1997, pp.11-14), os mecanismos de transferência intergovernamental podem ser agrupados basicamente em duas categorias: os arranjos de compartilhamento de receitas (revenue sharing arrangements) e as chamadas "grants". Tal classificação é semelhante à apresentada no item 2.1.

Os compartilhamentos de receitas tributárias podem ser incidir sobre Tributo por Tributo (on a tax-by-tax basis) ou no conjunto integral de receitas do governo central (Ter-Minassian, 1997, p.11). Uma desvantagem do primeiro tipo de arranjo reside no incentivo ao governo federal para concentrar esforços na arrecadação de tributos não-partilhados (Ter-Minassian, 1997, p.12).

As "grants" podem ser agrupadas em duas categorias: as de propósito geral (ou incondicionadas), destinadas à correção dos desequilíbrios verticais e horizontais e as de propósito específico (ou condicionadas), sujeitas a condições mais ou menos rígidas no tocante à aplicação dos recursos ou ao desempenho dos programas por elas financiados. As transferências de propósito específico podem ou não apresentar tetos ou limites (open-ended ou closed-ended) e, ainda, podem ou não possuir requisitos de contrapartida (Ter-Minassian, 1997, p.13).

Entre as transferências de propósito geral e as transferências de propósito específco, encontram-se as chamadas "block grants", destinadas ao atendimento de uma ampla área de gastos, tais como educação, ao invés de atender programas específicos (Ter-Minassian, 1997, p. 13).

2.4Classificação do Senado Federal e do Tribunal de Contas da União

O Senado Federal (2001, p. 11) classifica os repasses de recursos federais aos municípios segundo sua origem normativa. Conforme este critério, as transferências podem ser agrupadas em constitucionais, legais ou voluntárias. Tal critério também é adotado pelo Tribunal de Contas da União.

As transferências constitucionais correspondem a parcelas de recursos arrecadados e repassados aos municípios por força de mandamento estabelecido em dispositivo da Constituição Federal. Inserem-se nesta modalidade os recursos provenientes do Fundo de Participação dos Estados (FPE), do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), do Imposto Territorial Rural (ITR), do Imposto sobre Operações Financeiras/Ouro (IOF-Ouro), do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF) e do Fundo de Compensação para Exportação de Produtos Industrializados - FPEX (Senado Federal, 2001, pp.11-12).

As transferências legais são aquelas regulamentadas por leis específicas, as quais determinam a forma de habilitação, transferência, aplicação dos recursos e prestações de contas. Podem ser divididas em duas categorias: as transferências automáticas e as transferências fundo a fundo (Senado Federal, 2001, p. 12).

As transferências automáticas consistem no repasse de recursos financeiros sem a utilização de convênio, ajuste, acordo ou contrato, mediante depósito em conta corrente específica, aberta em nome do beneficiário. Tal forma de transferência é utilizada no Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE (Senado Federal, 2001, p. 12).

As transferências fundo a fundo consistem no repasse de recursos diretamente de fundos da esfera federal para fundos da esfera estadual, municipal ou do Distrito Federal, dispensando a celebração de convênios. Tais transferências são utilizadas em programas na área da saúde e da assistência social (Senado Federal, 2001, p. 12).

Por fim, as transferências voluntárias são definidas no art. 25, da Lei Complementar n° 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), como a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde.


3. OBJETIVOS E JUSTIFICATIVAS DAS TRANSFERÊNCIAS

São vários os objetivos das transferências intergovernamentais, os quais podem vir combinados entre si. Entretanto, é possível afirmar que o objetivo geral das transferências é permitir a própria sobrevivência do Sistema Federativo de Estado.

3.1Idéias Preliminares

Previamente à discussão dos objetivos das transferências intergovernamentais, é importante discutir os fatores econômicos que influenciam na distribuição das competências materiais e tributárias ou arrecadatórias num Estado Federativo.

De início, cumpre esclarecer que tais distribuições originaram-se, no mais das vezes, de fatores históricos ou culturais e não da aplicação da racionalidade econômica. Acerca do tema, Mendes (2004, p. 423) salienta que: "Quando os economistas passaram a olhar o federalismo sob o prisma da racionalidade econômica, o que ocorreu por volta de 1950, as federações já existiam. Mudar tradições políticas e alterar pactos constitucionais é um processo lento e difícil. Assim, pode-se dizer que o federalismo fiscal procura estabelecer parâmetros de racionalidade e eficiência econômica que orientem os ajustes na organização das federações, à medida que o processo político permita tais alterações".

3.1.1Distribuição de Competências Materiais no Estado Federado

No que tange à distribuição de responsabilidades de gastos, Mendes (2004, p. 432) aponta que a orientação geral (consoante a proposta de Wallace Oates) é a de que "cada bem público deve ser provido pelo nível de governo que represente de forma mais próxima a área geográfica que se beneficia do bem".

Desta forma, existiriam os serviços de caráter local (tais como iluminação, pavimentação, zoneamento urbano, transportes públicos, regulamentação de atividades comerciais locais, etc.), que devem ficar a cargo das municipalidades, e os de caráter nacional (defesa, estabilidade monetária, relações internacionais, etc), que devem ser providos pelo Governo Central (Mendes, 2004, p.432).

Em defesa da descentralização administrativa, Oates (1999, p. 1123) aponta a assimetria de informação e a eficiência econômica na prestação local de determinadores serviços públicos. Argumenta que: "(...) governos locais estão presumidamente mais próximos das pessoas e da geografia das suas jurisdições; eles possuem o conhecimento das preferências locais e das condições de custo que o governo central provavelmente não tem. Em segundo lugar, existem tipicamente pressões políticas (ou talvez, até mesmo, restrições constitucionais) que limitam a capacidade do governo central de prover níveis mais elevados de serviços públicos em algumas jurisdições que em outras. Estas restrições tendem a requerer um certo grau de uniformidade nas diretrizes centrais. Existem, portanto, importantes restrições políticas e de informação que evitam que os programas centralizados produzam um padrão ótimo de saídas" (tradução livre).

A despeito desta orientação geral, Mendes (2004, p. 432) aponta diversos fatores que devem ser levados em conta na atribuição de responsabilidades de gasto entre os entes federados:

a) economias de escala;

b) heterogeneidade das preferências locais;

c) externalidades envolvidas e sua amplitude geográfica;

d) capacidade financeira de cada nível de governo.

Fala-se, também, no princípio da subsidiariedade, segundo o qual as funções públicas devem ser exercidas pelo nível de governo mais descentralizado possível, a menos que haja demonstrações concretas de que tais serviços podem ser exercidos de forma mais eficaz por níveis mais altos de governo (Mendes, 2004, p. 432).

Para exemplificar, utilizamos a área da educação.

Em se tratando de educação primária, existem vários fatores favoráveis à descentralização dos serviços para os governos locais: a grande dispersão geográfica do serviço, a possibilidade de ganhos significativos de qualidade quando a gerência descentralizada permite o envolvimento dos pais na administração das escolas e a possibilidade de diferenciação de currículo segundo as diferenças culturais locais (Mendes, 2004, p. 433).

No que tange aos ensinos superior e médio, é recomendável a sua prestação pelos governos central ou regional, em face de outros fatores. Um primeiro fator é a economia de escala, uma vez que tal ensino envolve maiores custos, tais como, laboratórios, bibliotecas e professores mais qualificados (Mendes, 2004, p. 433). Outro fator é a extensão dos benefícios para além da jurisdição local (externalidades), visto que estudantes habitantes de outras jurisdições podem se deslocar àquela com vistas a obter os serviços educacionais.

3.1.2Distribuição de Competências Tributárias no Estado Federado

No tocante à distribuição das competências tributárias, a literatura econômica aponta diversos critérios para se avaliar se um tributo é adequado ou não à cobrança local.

O primeiro é a mobilidade da base tributária. Nos tributos sejam incidentes sobre bases móveis (tais como renda, consumo e patrimônio móvel), se a cobrança ficar a cargo das municipalidades, os contribuintes tendem a se deslocar para outras localidades de modo a obter uma menor tributação.

Mendes (2004, p. 431) cita o exemplo da tributação sobre a renda: "Se dois municípios impõem impostos sobre a renda de seus residentes, e um cobra uma alíquota mais alta que o outro, haverá uma indução à migração das pessoas para a cidade que cobra menos imposto. O raciocínio para o imposto de renda também vale para tributos sobre o lucro das empresas ou a sua folha de pagamento. Delegar a cobrança desse tipo de imposto a governos municipais e estaduais seria um estímulo à guerra fiscal, na qual cada governo procuraria cobrar o mínimo possível com vistas a atrair investimentos para seu território".

Desta forma, só os tributos incidentes sobre o patrimônio imobiliário são adequados para a cobrança pela administração tributária municipal.

Um pouco diferente é o entendimento de Oates (1999, p. 1125): "A diferença de mobilidade das unidades tributadas nos níveis central e descentralizado tem importantes implicações para o desenho da estrutura vertical de tributação. Os Tributos, como sabemos, podem ser fontes de distorções na alocação de recursos, visto que os compradores afastam suas compras dos bens tributados. Sob o aspecto espacial, tais distorções tomam a forma de ineficiências locais, visto que as unidades tributadas (ou os proprietários destas) buscam jurisdições onde eles podem obter um tratamento tributário relativamente favorável. Elevadas ''excise taxes'' em uma jurisdição, por exemplo, podem levar os compradores a assumir os custos improdutivos de deslocamento com vistas a comprar os itens tributados em jurisdições com alíquotas menores. Tais exemplos podem sugerir a conclusão de que os níveis descentralizados de governo devem evitar a tributação de unidades com elevada mobilidade (sejam famílias, capital ou bens finais). Mas isto não está exatamente correto. A implicação real é que os níveis descentralizados de governo devem evitar a incidência de tributos não sujeitos ao princípio do benefício sobre unidades móveis. Ou, mais precisamente, as análises econômicas demonstram que, segundo o princípio da eficiência, os governos locais devem tributar unidades econômicas móveis com tributos sujeitos ao princípio do benefício". (grifo nosso -tradução livre)

O segundo fator é a distribuição das bases tributárias pelo território nacional. Se houver uma distribuição desigual, os tributos devem ser de competência nacional. Caso contrário, a tributação servirá como forma de acentuar as disparidades regionais (Ter-Minassian, 1997, p. 9).

Neste contexto, a Tributação estadual sobre o Petróleo, seus derivados e sobre Energia Elétrica, no Brasil, recebeu tratamento especial no art. 155, §2°, X, "b" e o art. 155, §2°, XII, "h", da Constituição Federal. Segundo estes dispositivos não há incidência do ICMS sobre as "operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica" e a lei complementar deverá "definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X, b". Desta forma, ainda que a CF/88 não tenha atribuído competência tributária à União, buscou-se minimizar os efeitos da distribuição irregular das fontes de energia no território nacional.

O terceiro fator refere-se à possibilidade de "exportação de tributos". Para que os tributos permaneçam no âmbito local, é recomendável que não exista a possibilidade de exportação de tributos para não residentes. Tal ocorre, no Brasil, com o ICMS cobrado na origem e não no destino, conforme revela Mendes (2004, p 430): "Se for cobrado ''na origem'' (onde o bem é produzido), o indivíduo que consumir o bem no estado B estará financiando o governo do estado A, onde a mercadoria foi produzida, uma vez que o valor do imposto é embutido no preço da mercadoria. Se o IVA fosse arrecadado ''no destino'', o consumo só poderia ser taxado pela comunidade onde reside o consumidor, o que evitaria a exportação de tributos".

O quarto fator refere-se à facilidade de administração ou economia de escala na cobrança do tributo. Quanto maior a economia de escala envolvida na cobrança de um determinado tributo, maior o argumento para que este seja mantido no nível nacional.

O quinto fator refere-se à sensibilidade às alterações no nível de crescimento da economia. Segundo Ter-Minassian (1997, p.9), devem ser atribuídos ao governo central tributos que tenham uma elevada elasticidade-renda. Esta atribuição provê o governo central de instrumentos de estabilização e, além disso, protege os orçamentos locais das variações cíclicas da economia.

Ter-Minassian (1997, p. 9) aponta, por fim, que há um consenso geral de que os Tributos sobre o Comércio Exterior devem ser atribuídos ao governo central.

3.2Redução do Desequilíbrio Fiscal Vertical

O principal objetivo das transferências intergovernamentais compreende a redução do desequilíbrio fiscal vertical. As transferências buscam compatibilizar as receitas e as despesas atribuídas aos governos subnacionais. Isto porque a atribuição constitucional de competências materiais e tributárias aos entes descentralizados deve seguir critérios de eficiência e racionalidade econômica (conforme foi exposto anteriormente), de modo que, no mais das vezes, o nível de governo no qual está concentrada a prestação bens e serviços públicos não é contemplado com receitas próprias suficientes para o atendimento destas tarefas.

De uma forma geral, as economias reais são caracterizadas por algum grau de centralização das competências e da arrecadação tributária em relação à distribuição de encargos e, conseqüentemente, exigem algum sistema de transferências inter-governamentais (Prado ; Quadros ; Cavalcanti, 2003, p. 17).

Bahl (1999) salienta que, nos primeiros estágios do desenvolvimento de um Estado, as prioridades das responsabilidades do setor público são o desenvolvimento da infra-estrutura, a provisão de necessidades básicas de vida e a estabilidade econômica, o que tende para a centralização fiscal. Entretanto, com o desenvolvimento econômico e a urbanização, as necessidades de gastos públicos é deslocada para os serviços providos pelos governos locais, tais como, serviços sociais e saneamento básico. Sem receitas próprias em montante suficiente, os governos locais tornam-se inaptos para proverem níveis adequados de serviços públicos.

Bahl (1999) conclui que esta diferença ("gap") entre as responsabilidades de gastos e a arrecadação própria deve ser suprimida de duas formas: atribuindo-se uma maior competência tributária para os governos locais ou mediante transferências intergovernamentais.

A primeira alternativa foi discutida anteriormente (item 3.1.2), sendo fácil perceber que existem restrições à atribuição de competência tributária e arrecadatória aos governos locais.

Quanto às transferências intergovernamentais, Bahl (1999) levanta a questão da dificuldade de se determinar este "gap" para cálculo do montante das transferências. Segundo o autor, trata-se de uma medida essencialmente subjetiva. Nada obstante, alguns Estados estabelecem este montante com base em padrões mínimos de prestação de serviços públicos.

3.3Equalização inter-regional (Horizontal Imbalance)

A equalização inter-regional é outro importante objetivo a ser alcançado pelas transferências intergovernamentais. Torna-se especialmente relevante em Estados com grande extensão territorial e com acentuadas disparidades regionais, tais como, o Brasil.

Do ponto de vista jurídico, a eqüidade inter-regional é conseqüência da aplicação dos princípios da igualdade e da justiça social. Conti (2000, p. 30) menciona que: "Nada mais razoável, na busca do caminho que leve à Justiça Social, do que reconhecer ser aplicável esta noção da igualdade não apenas aos indivíduos como tais, considerados isoladamente, mas também às comunidades na qual vivem (...) O princípio da igualdade deve, por conseguinte, ser aplicado à organização do Estado na forma federativa, o que nos leva à conclusão de que deve ser estendido aos componentes da Federação, a fim de que possa vir a atingir sua meta final, que é o cidadão. Logo, é fundamental que o Estado se organize da forma a manter a eqüidade entre seus membros, o que importa na adoção de uma série de medidas redistributivas".

Prado, Quadros e Cavalcanti (2003, p. 21) informam que: "A distribuição excessivamente irregular das bases tributárias e as diferenças na eficiência de arrecadação entre regiões geopolíticas levam, em geral, a que os níveis superiores de governo redistribuam a receita arrecadada. Esse tipo de transferência, em termos de tipo ideal, teria predominantemente o caráter de suplementação orçamentária, orientada por parâmetros como população, receita per capita e renda per capita".

No Brasil, são apontados como exemplos de transferências redistributivas os fundos de complementação orçamentária (Fundos de Participação e Sistema Cota-Parte) e os fundos redistributivos setoriais (tais como o SUS e o Fundef) (Prado; Quadros; Cavalcanti, 2003, p. 48).

Do mesmo modo que na redução dos desequilíbrios verticais, não há consenso quanto à forma de se determinar o montante a ser transferido para promover a equidade horizontal.

Bird e Smart (2001) criticam a equalização das despesas em termos per capita, (elevando-se para o padrão do governo local). Para os autores, tal equalização ignora as preferências, as necessidades e os custos locais, bem como a própria capacidade de levantamento de receitas pelo governo. Tais medidas desencorajam os esforços fiscais e as restrições aos gastos locais, haja vista que, neste sistema, aqueles com maiores níveis de gasto e menores níveis de tributação deverão receber maiores transferências.

Alguns governos adotam a equalização de capacidade fiscal para promover determinado nível de serviço público pelos governos locais. Tal equalização visa prover cada governo local com recursos suficientes (receitas próprias acrescidas de transferências) para prestar um determinado nível centralmente determinado de serviços. As diferenças dos custos de prestação de serviços podem ou não ser levadas em conta neste sistema de transferências (Bird e Smart, 2001).

Nesta hipótese, as transferências estão baseadas nas medidas de capacidade fiscal (potencial) de cada uma das jurisdições (e não nas receitas reais).

Entretanto, não é fácil a tarefa determinar esta capacidade fiscal. Mas, caso seja possível tal medida, o sistema de transferências não desincentivará os governos locais a elevar o seu nível de arrecadação tributária (Bird e Smart, 2001).

3.4Externalidades (interstate spillovers)

Outra justificativa para as transferências intergovernamentais é a mitigação ou internalização das externalidades positivas.

Mendes (2004) aponta que: "A preservação ambiental ou a preservação de doenças em uma jurisdição, por exemplo, também geram benefícios às comunidades vizinhas. Decidindo isoladamente a alocação de recursos públicos, um governo local deixa de computar os benefícios a não residentes. A conseqüência seria uma oferta insuficiente daqueles bens".

Estes benefícios externos incentivam o comportamento carona ou "free-rider", conforme ilustra Mendes (2004): "um governo local pode deixar de prover (ou prover em menor quantidade) um serviço público uma vez que já goza dos benefícios proporcionados pela jurisdição vizinha. Também nesse caso o Brasil apresenta um caso típico. Municípios situados próximos a grandes cidades, em vez de construir seus próprios hospitais públicos, preferem oferecer ambulâncias para levar seus doentes para o hospital do município vizinho. Com isso economizam seus recursos à custa da sobrecarga do sistema que é pago pelos contribuintes de outro município".

Nesta situação, a literatura recomenda que os governos estaduais ou federais (dependendo da extensão territorial dos benefícios) realizem transferências condicionais com contrapartidas (matching grants) permitindo, assim, que a própria comunidade beneficiada pelos serviços públicos seja responsável pelo financiamento destes.

3.5 Razões Administrativas

As transferências voluntárias podem ser usadas para a implementação de ações do governo central, cuja competência material é concorrente, em locais onde o ente central não dispõe de estrutura administrativa para gerenciá-las. Por exemplo, para efetuar a construção de moradias e outros programas habitacionais (atividade de competência comum dos entes federados - art. 23, IX, CF/88) em municípios do interior, é possível transferir os recursos para a prefeitura que, de forma geral e naquela localidade, está melhor aparelhada para a gerenciar as obras envolvidas.


4. CARACTERÍSTICAS DESEJÁVEIS DO SISTEMA DE TRANSFERÊNCIAS

A literatura costuma apontar algumas características necessárias para o desenho de um adequado sistema de transferências intergovernamentais. Dentre elas, destacamos a flexibilidade, a preservação da independência dos governos subnacionais na fixação das prioridades, a previsibilidade e regularidade das transferências e a capacidade de não inibir a arrecadação local.

4.1 Flexibilidade

Prado, Quadros e Cavalcanti (2003, p. 17) consideram necessária a flexibilidade do sistema de transferências de forma a para permitir ajustes dinâmicos nas transferências intergovernamentais em decorrência da variação temporal das demandas por bens e serviços públicos: "(...) a distribuição interjurisdicional das demandas por serviços podem apresentar ampla variabilidade temporal no médio e longo prazo. Fenômenos como movimentos migratórios populacionais e da atividade econômica ou diferentes ritmos de crescimento econômico por região, por exemplo, exigem do sistema de transferências capacidade de ajustamento dinâmico, ou seja, de se adequar no tempo à variabilidade do perfil da demanda por serviços. Quando o sistema de transferências não é estruturado sob um padrão dinâmico, ou seja, quando a alteração das participações relativas das jurisdições não é prevista no sistema, o ajustamento do montante de recursos transferidos em relação ao novo perfil de necessidades depende de reformas sucessivas num sistema estático. Isso esbarra no que chamaremos de ''ditadura do status quo'': os governos subnacionais resistem a qualquer redução relativa de suas receitas legalmente garantidas pelo sistema vigente".

Em outra oportunidade, os autores complementam: "Um padrão redistributivo pode ser altamente pertinente em um determinado momento e, em seguida, passar a perder qualidade, à medida que se efetivem mudanças nas condições econômicas e sociais relativas às diversas regiões do país. É, portanto, condição de qualidade e eficiência do sistema que ele contemple a revisão periódica dos fluxos de transferências ou, melhor ainda, que a própria sistemática de partilha opere com parâmetros móveis, de modo que o sistema reflita alterações relevantes nas condições socio-econômicas, ''em tempo real'', na medida do possível" (Prado; Quadros e Cavalcanti, 2003, p. 37).

Neste contexto, é criticável a distribuição de recursos do Fundo de Participação dos Estados: "a distribuição dos recursos do FPE, por causa dos coeficientes fixados na LC 62/89, beneficia principalmente as regiões Norte (25,4% do FPE) e Nordeste (52,5%), praticamente duplicando a receita disponível dessas regiões. O FPE opera essa forte redistribuição regional de receita principalmente em decorrência do inverso da renda, que ainda subjaz nos coeficientes calculados em 1989. Embora a atuação do FPE tenha um papel redistributivo inequívoco, deve-se ressaltar a inadequação de manterem-se os mesmos coeficientes por mais de uma década para promover os objetivos de redistribuição do FPE, cuja atuação, assim, é essencialmente estática (...) Os atuais critérios de rateio, além de serem fixos, isto é, de não incorporarem nenhum componente dinâmico, foram estabelecidos a partir de ajustes feitos no percentual que, pelos critérios anteriores, caberia a cada estado". (Prado; Quadros e Cavalcanti, 2003, p. 96).

4.2 Preservação da autonomia dos entes descentralizados

Outra característica recomendável dos arranjos de transferências é a preservação da independência dos governos subnacionais para fixar as prioridades locais, as quais não devem ser significativamente restringidas pela estrutura dos programas centrais.

Segundo Prado, Quadros e Cavalcanti (2003, p. 26), o grau de autonomia dos governos subnacionais depende, essencialmente, de dois fatores: da parcela de recursos fiscais gerados por arrecadação própria e poder do sistema orçamentário dos governos locais para dispor livremente da maior parcela possível de sua receita.

Desta forma, uma grande participação das ''matching grants'' (transferências condicionadas com contrapartida) na composição do orçamento local restringiria, sobremaneira, a possibilidade dos entes descentralizados fixarem suas prioridades locais.

Entretanto, deve-se reconhecer que: "em condições de elevada heterogeneidade socioeconômica e fortes limites à capacidade do governo de ampliar o financiamento dos serviços públicos, um sistema de transferências orientados somente por critérios gerais de equalização de gasto com plena autonomia orçamentária tende a tornar incerta a provisão dos serviços públicos essenciais, em particular os serviços públicos associados ao chamado ''resgate da dívida social'' (Prado; Quadros e Cavalcanti, 2003, p. 27).

4.3 Previsibilidade e Regularidade das Transferências

Para que se possa permitir o planejamento e a orçamentação por parte dos governos descentralizados, deve haver o mínimo de previsibilidade nas transferências oriundas do governo central.

Em razão disso, "a existência de um volume elevado de transferências discricionárias é, segundo diversos observadores, prejudicial ao sistema federativo. Um dos principais argumentos contrários às transferências discricionárias refere-se à instabilidade que geram nos processos orçamentários dos governos subnacionais, que ficam sem parâmetros para estimar a evolução dos recursos que receberão a médio prazo" (Prado; Quadros e Cavalcanti, 2003, p. 24).

4.4Capacidade de não inibir a arrecadação local

Outro critério avaliação das transferências intergovernamentais é o seu efeito potencial de inibir o esforço de tributar ou arrecadar. Para Prado, Quadros e Cavalcanti (2003, p. 38), um dos maiores desafios dos arranjos de transferências é melhorar a eqüidade do sistema, sem "esterilizar" uma parcela da base tributária global. A dificuldade, segundo argumentam, reside em identificar formas de associar equalização e dinamismo do arrecadador local, movimentos intrinsecamente contraditórios.

Bird e Smart (2001) salientam que, num sistema ''revenue-pooling'', tais como os utilizados na Alemanha e na Rússia (nos quais uma parcela de tributos coletados localmente é distribuída entre os governos locais), há pobres incentivos para que os entes descentralizados arrecadem suas próprias receitas. Acrescem que: "Neste sistema, os governos locais recebem apenas uma fração da receita coletada nas suas próprias jurisdições, com o resto distribuído para os outros governos, usualmente por meio de uma fórmula de equalização (...) Neste caso, o custo da tributação local é maior que o benefício para o tesouro local, de modo que o custo marginal dos fundos públicos aparece artificialmente alto para o governo local. O efeito desencorajador é tão claro que estes sistemas nunca são usados quando os governos locais podem influenciar as alíquotas tributárias incidente sobre as bases compartilhadas".

Estas são as principais características, objetivos e fundamentos dos sistemas de transferências intergovernamentais. Passemos agora a tratar de temas específicos de interesse no Direito Brasileiro.


5. CONCLUSÕES

Os repasses entre os entes federados têm diferentes naturezas e objetivos. Dentre os objetivos destes repasses, podemos citar a redução do desequilíbrio fiscal vertical, a redução das disparidades regionais, a correção das externalidades e o aproveitamento da estrutura administrativa do ente descentralizado.

O objetivo geral das transferências intergovernamentais, entretanto, é assegurar a autonomia financeira dos entes descentralizados, permitindo que estes definam suas prioridades locais de gastos públicos.

A autonomia financeira depende do desenho adequado do sistema de transferências intergovernamentais. Dentre as características desejáveis apontadas pela literatura encontram-se a flexibilidade, a preservação da autonomia dos entes federados, a previsibilidade e a regularidade das transferências e a capacidade de não inibir a arrecadação local.

Se o volume das "matching grants" for relativamente elevado, o respeito às preferências locais pode ficar comprometido. Tal situação só é aceitável em Estados com graves desigualdades sócio-econômicas, nos quais torna-se necessário assegurar padrões mínimos de prestação de serviços públicos, com vistas ao "resgate da dívida social".

Por sua vez, a participação relativamente elevada das "transferências discricionárias" no sistema pode comprometer o processo de orçamentação e planejamento local, considerando a falta de previsibilidade e regularidade inerente a esta categoria de repasses.

Como se pode observar, o estudo dos fundamentos econômicos das transferências governamentais pode servir de pano de fundo para a interpretação das normas legais e constitucionais pertinentes à matéria, bem como a solução de conflitos entre os entes federativos, no tocante à distribuição de encargos e de recursos financeiros.


8. Bibliografia

ALMEIDA, C.W. Federalismo e política fiscal: relações fiscais na federação brasileira. 2000. 180f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Brasília, 2000.

BAHL, R. Intergovernmental transfers in developing and transition countries: principles and practice. World Bank, 1999. Disponível em: <http://www.worldbank.org>. Acesso em: 01 mar. 2006.

BIRD, R. M.; SMART, M. Intergovernmental fiscal transfers: some lessons from international experience. World Bank, 2001. Disponível em: <http://www.worldbank.org>. Acesso em: 01 mar. 2006.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Secretaria-Geral de Controle Externo. Transferências de recursos e a lei de responsabilidade fiscal: orientações fundamentais. Brasília: TCU, 2001. 120 p.

BRASIL. Senado Federal. Manual de obtenção de recursos federais para municípios: orientações aos prefeitos. 5ª. ed. Brasília: Instituto Legislativo Brasileiro, 2005.

CHAGAS, M. G. Federalismo no brasil: o poder constituinte decorrente na jurisprudência do supremo tribunal federal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006, 146 p.

CONTI, J. Federalismo Fiscal e Fundos de Participação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. 160 p.

DI PIETRO, M. S. Z. Arts. 18 a 28. In: MARTINS, I. G. S.; NASCIMENTO, C. V. Comentários à lei de responsabilidade fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 128-180.

FOLHA DE SÃO PAULO. Entenda o caso dos anões do Orçamento. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u65705.shtml. Acesso em: 01.mar.2006.

MENDES, M. Federalismo Fiscal. In: BIDERMAN, C.; ARVATE, P. Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 2005, p. 421-461.

OATES, W. E. An essay on fiscal federalism. Journal of Economic Literature, Pittsburgh, v. XXXVII, p. 1120-1149, set 1999.

PRADO, S.; QUADROS,W.; CAVALCANTI, C.E. Partilha de recursos na federação brasileira. São Paulo: Fundap, 2003, 245 p.

SERRA, J.; AFONSO, J. R. R. O federalismo fiscal à brasileira - algumas reflexões. Disponível em: <http://federativo.bndes.gov.br>. Acesso em 01 mar 2006.

STIGLITZ, J. E. Economics of the economic sector. 3a. ed. New York: W.W. Norton & Company, 1999, 823 p.

TER-MINASSIAN, T. Intergovernmental fiscal relations in a macroeconomic perspective: an overview. In: ______. Fiscal federalism in theory and practice. Washington: International Monetary Fund, 1997, 701 p.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Emerson Cesar da Silva. Fundamentos das transferências intergovernamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1580, 29 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10589. Acesso em: 29 mar. 2024.