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Canção: violência contra a mulher.

Um tapinha dói, sim!

Canção: violência contra a mulher. Um tapinha dói, sim!

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Um tapinha pode até causar pouco sofrimento físico, mas provoca lesões de difícil cicatrização na vítima e em todo o tecido social.

Recente decisão da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, ora em fase recursal, condenou uma produtora a pagar R$ 500 mil por dano moral difuso à mulher, decorrente da letra da canção "Tapinha" na qual o autor afirma que vai dar "um tapinha" por que "Dói, um tapinha não dói". Esta mesma canção já havia sido citada pelo Tribunal Superior do Trabalho em ação indenizatória por dano moral. No caso, empregados de operadora de telemarketing eram obrigados a dançar e cantar ao som de "Tapinha" e "Dança da Garrafa", dentre outras.

A canção "Bomba no Cabaré" - Mastruz com Leite ("Jogaram uma bomba no cabaré... Voou pra todo canto pedaço de mulher") foi objeto de inúmeros protestos.

Embora haja certo consenso na jurisprudência de que as liberdades públicas não são absolutas, quando o assunto é a incitação e a banalização da violência contra a mulher não são poucos os que acreditam que o Judiciário age com certo exagero, negligencia o direito de liberdade de expressão e até mesmo restaura a censura.

A sentença da 7ª Vara Federal de Porto Alegre nada mais fez do que reafirmar que a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação não é absoluta e que deve ser exercida em harmonia com demais direitos assegurados constitucionalmente, como é o caso, por exemplo, do direito à dignidade humana, a promoção do bem social e o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Não pretendo neste espaço analisar dispositivos legais de proteção à mulher, que incluem a conhecida Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07.08.2006), a qual determinou inclusive ao poder público que desenvolva políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Neste tocante, vale observar também que os serviços de radiodifusão pública prestados por órgãos do Poder Executivo ou mediante outorga a entidades de sua administração indireta, devem observar, dentre outros, princípios de respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família e a não discriminação de gênero (Lei nº 11.652, de 07.04.2008).

O objeto deste texto porém é focalizar o fenômeno das canções, presentes em nosso dia-a-dia de maneira praticamente imperceptível, mas que constituem forma de expressão com enorme força de comunicação. Não tivessem tanto poder as canções, os governos ditatoriais não expenderiam esforços censurando músicas e letras.

Vale relembrar que, já no período greco-romano, texto e música estavam fortemente associados, servindo a música para memorizar e divulgar os épicos e a poesia. Com a escrita, e mais recentemente as técnicas de gravação, texto e música encontraram mídias para sua preservação e ampla divulgação.

A letra de uma canção tem característica muito própria, já que no mais das vezes não foi criada para apenas ser lida ou declamada. Sua força e representação está vinculada à música (melodia, harmonia e ritmo). Fala-se na unicidade da canção, porquanto o som da música e da voz, combinados com a mensagem do texto, fazem emergir conteúdos e sentimentos próprios e diferentes daqueles que resultariam da apresentação isolada de seus elementos constitutivos.

Quando cria sua canção, o compositor vale-se e incorpora não só suas próprias experiências, mas também todo o contexto e circunstância em que vive, o que permite a sua compreensão por muitos e, não raro, revela a trama e o urdume de que é composto determinado grupo social. Por esta razão, a canção é freqüentemente objeto de estudo por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, que a analisam por diferentes ângulos (e.g., histórico, sociológico, religioso).

A música de uma comunidade reflete a sua identidade coletiva. Embasados na teoria desenvolvida por Rolando Benenzon, autoridade na teoria e no estudo da musicoterapia, especialistas reconhecem inclusive a existência de uma Identidade Sonora (ISO) Cultural que age no pré-consciente dos indivíduos que integram determinada comunidade.

Constituem objeto de estudo pela ciência os múltiplos efeitos que a música, a potência do som e certos fenômenos acústicos podem gerar no ser humano. São conhecidas as respostas que um determinado som pode provocar, inclusive no aprendizado e no condicionamento. Ninguém ignora que as canções são usadas desde o jardim da infância até os cursinhos pré-vestibulares para catalisar a memorização. Ademais, policiais e militares se valem de canções em seus exercícios e treinamentos e para preparar suas missões e enfrentamentos, conforme realçado no filme Tropa de Elite.

Para Oliver Sacks, a rima, a métrica e o canto constituem os mais poderosos recursos mnemônicos, presentes em qualquer cultura, favorecendo a retenção de informações de maneira consciente e inconsciente.

A canção, casamento das sonoridades da música e da voz com o texto, com seu enorme poder de comunicação e condicionamento, impregna nosso cotidiano, nossa memória, nosso consciente e inconsciente e é, como que imperceptivelmente, transmitida de geração em geração.

Assim, é extremamente positivo que setores da sociedade e o próprio Judiciário estejam atentos às canções que incitam a violência contra a mulher (ou minorias), valendo-se de ritmos populares como o funk e o forró, e também aos conhecidos "proibidões", que fazem, no mais das vezes, apologia ao crime.

Cabe à sociedade denunciar e ao Judiciário a difícil tarefa de estabelecer limites e harmonizar, caso a caso, o exercício das liberdades públicas, já que não se concebe que uma garantia constitucional possa ser invocada para escudar a violação de qualquer outra.


Referências

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http://www.trf4.gov.br/trf4/processos/visualizar_documento_gedpro.php?local=jfrs&documento=3104265&DocComposto=&Sequencia=&hash=8c38c87c37d2d51d2c5b9dc755761c84. Acesso em 09/04/2008.

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· BRUSCIA, Kenneth E.. Definindo Musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros, 2ª edição, 2000, p. 2 e 153 e 154.

· BENENZON, Rolando. Teoria da Musicoterapia. Contribuição ao conhecimento do contexto não verbal. São Paulo: 2ª edição, Sumus Editorial, 1988, p. 23 e 35.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FORSTER, Susan Christina. Canção: violência contra a mulher. Um tapinha dói, sim!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1782, 18 maio 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11282. Acesso em: 29 mar. 2024.