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Deslegalização e a função reguladora da administração pública

Deslegalização e a função reguladora da administração pública

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Resumo: O presente artigo tem como escopo principal, abordar o fenômeno da deslegalização, bem como a função reguladora, suas características, limites e controle, de modo que a mesma é cada vez mais presente na Administração Pública, tendo em vista o estado constante de mutação pelo qual passa a sociedade brasileira, o qual por sua vez demanda uma maior eficiência na disciplina de determinadas matérias.

Palavras-chave: Administração Pública. Deslegalização. Função reguladora. Princípio eficiência. Separação poderes.

Sumário: 1. Origem 2. O fenômeno da deslegalização 3. Da função reguladora: conceito 3.1 Legitimidade da função reguladora 3.2 Fundamento jurídico da função reguladora 3.3 Competência para o exercício da função reguladora 3.4 Controle jurídico do exercício da função reguladora 3.5 Separação dos poderes e função reguladora 4. Conclusão Referências


1.Origem

O início da política de desestatização na década de 90 no Brasil foi fundamental para dar continuidade ao processo de democratização e crescimento do país. Pode-se dizer que tal fenômeno foi uma das soluções encontradas para sanar a incapacidade do Poder Público em investir e gerar desenvolvimento, ou seja, quebrado e sem recursos, o Estado não tinha como promover as ações necessárias para cumprir seus deveres constitucionais.

Ocorre que esse Programa Nacional de Desestatização, ao passo que acelerou a concretização das atividades estatais, agravou a (inegável) hipertrofia de funções existentes dentro da assoberbada e enferrujada máquina administrativa, na medida em que exigiu da mesma o exercício da função reguladora.

O aludido acúmulo de funções administrativas do Estado se deve, também, ao surgimento de novas necessidades da população e ao aumento da demanda por antigos (e novos) serviços públicos. Nesse período, a atividade Estatal passa a se desenrolar de duas maneiras: ao passo que deve atrair os investimentos privados com propostas rentáveis e seguras, terá também de regular tais atividades, de maneira intensa e constante, com o propósito de preservar o indeclinável interesse público. É justamente essa nova função administrativa, de regular e normatizar a iniciativa privada, o objeto da presente resenha.

Portanto, vê-se que essa função reguladora, decorrente do fenômeno denominado "deslegalização", se evidencia com o início das transferências de algumas atribuições e serviços do setor público para o setor privado, contribuindo, de certa forma, com o inchaço de funções do Poder Público.


2.O fenômeno da deslegalização

O desempenho da função reguladora encontra estreito relacionamento com o fenômeno da deslegalização, uma vez que para o exercício daquela é necessário que ocorra previamente a situação jurídica na qual o legislador transfere do âmbito da lei formal para o domínio dos normativos infra-legais a disciplina de determinadas matérias.

E esta necessidade surgiu justamente por causa da natureza extremamente técnica e complexa das normas que regulam as atividades setoriais. Tornou-se imperioso deslegalizar determinados assuntos para que regulamentos infra-legais pudessem discipliná-los com a eficiência e rapidez exigidas hoje em dia. De fato, é difícil imaginar parlamentares disciplinando homologação de telefones móveis ou o reajuste das tarifas de longa distância.

Assim sendo, é possível colher exemplos de deslegalização na própria CF/88, acerca das matérias previstas no art. 48. Na medida em que o dispositivo autoriza o Congresso Nacional a dispor acerca daquelas matérias, o mesmo está autorizado a legislar, não legislar ou até deslegalizar (MOREIRA NETO, 2003, p. 171). Em outras palavras, o legislador ordinário poderá transferir o poder de disciplinar tais matérias aos normativos infra-legais:

Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:

[...]

XII - telecomunicações e radiodifusão;

À primeira vista, pode-se imaginar que o Legislador Constituinte "misturou", por assim dizer, as competências típicas de cada poder nesse dispositivo, violando o princípio da separação dos poderes. No entanto, não se trata de dar ao Congresso Nacional a função de administrar, mas somente a possibilidade de uma vez deslegalizada a matéria, dispor acerca da mesma como se fosse o próprio Executivo. Portanto, de acordo com o art. 48 da CF/88, está a cargo do Poder Legislativo deslegalizar as matérias ali arroladas, e somente então, exercer sua função reguladora.

Isso justifica as funções normativas e administrativas que estão implícitas no Poder Legislativo. Nos termos da lição de Eros Grau, todos os poderes são dotados de funções administrativas, legislativas e judicantes. (GRAU, 2002, p. 83). Assim, ao Executivo não cabe apenas administrar, mas também exercer a função reguladora, desde que já esteja deslegalizada a matéria pelo Legislativo. Mutatis mutandis, se cabe ao Executivo a função de administrar e normatizar (após a deslegalização), cabe também ao Legislativo as mesmas funções diante daquelas matérias por meio do fenômeno da deslegalização.

Segundo Diogo Moreira Neto, a deslegalização legitima o combate ao aumento exagerado do número de leis vigentes que acabam gerando insegurança e confusão nos jurisdicionados (MOREIRA NETO, 2003, p. 173). De fato, ainda que a atividade legiferante seja essencial para dar segurança jurídica aos cidadãos, o assombroso número de leis que dão "nova redação" a textos antigos é capaz de causar o efeito inverso, dificultando a organização de um ordenamento jurídico sólido e confiável.

Diante do exposto, é possível concluir que a deslegalização é um requisito prévio ao exercício da função reguladora, pois somente com a autorização da lei formal, poderão os órgãos reguladores exercer sua competência e, ao mesmo tempo, observar o princípio da legalidade que impera no Estado de Direito brasileiro.


3.Da função reguladora: conceito

Tendo em mente as razões do surgimento da função reguladora elencadas no item 1 dessa resenha, pode-se dizer que o seu exercício satisfatório demanda um equilíbrio nem sempre alcançável entre os interesses envolvidos, pois esses são distintos, e o que é pior, antagônicos. Se por um lado, o administrador público deve preservar o interesse público, por outro deverá também observar interesses privados (proposta atrativa, rentável e segura ao investidor privado). Portanto, essa "gangorra axiológica", onde de um lado está a supremacia do interesse público e de outro a manutenção da viabilidade do investimento privado, se sujeita a um desequilíbrio indesejável.

A lição de Diogo Moreira Neto traz a definição de função reguladora:

Cabe aqui, tracar conceptualmente o desenho das instituições jurídicas [...] em certos setores críticos da convivência social e econômica, de modo a proporcionar o máximo de eficiência na solução de problemas, aliando na dosagem necessária para cada hipótese, as vantagens da flexibilidade negocial privada com o rigor da coercitividade estatal.

A essa atividade dos subsistemas de harmonização é que se denomina de função reguladora, uma expressão que, não obstante o étimo, que a aproxima da voz vernácula regra, é, na verdade, um híbrido de atribuições de variada natureza: informativas, planejadoras, fiscalizadoras e negociadoras, mas, também, normativas, ordinatórias, gerenciais, arbitradoras e sancionadoras.

Esse complexo de funções vai cometido a um único órgão regulador, para que este defina especificamente o interesse que devera prevalecer e ser satisfeito nas relações sujeitas à regulação. (grifos no original) (2003, p. 107)

Em outras palavras, a função reguladora deve ponderar os interesses que estão sob seu manto (público primário e público secundário, bem como o privado), a fim de que o órgão regulador ao exercer tal atividade, faça prevalecer e ser satisfeito o interesse mais adequado e justo.

Observe-se, portanto, que para o autor, a função reguladora não se limita a uma única atividade estatal (p.ex. a função de regular o setor de telecomunicações com o viso no interesse público), mas em um extenso rol, numa gama de atividades distintas, as quais envolvem aspectos sociais e administrativos.

Conclui o autor que:

Não se trata, portanto, da tradicional aplicação direta de uma definição legal vinculadora de certo interesse público específico, nem, tampouco, e muito menos, de chegar a uma definição legal discricionária, que é a que deve ser integrada pelo administrador por subsunção, à feição da administração tradicional, isso porque o interesse específico que deverá prevalecer nas relações submetidas à função reguladora não estará predeterminado, senão que deverá ser deduzido dos fatos, pelo exercício qualificado, negociado e ponderado dessa função. (2003, p. 108) (grifos no original)

Assim, para Diogo Moreira Neto, se a função reguladora resta divorciada da mera aplicação do princípio da legalidade e da teoria clássica do poder administrativo discricionário, por outro lado, se aproxima do necessário e imprescindível juízo de ponderação que deverá ser realizado pela Administração à luz dos fatos concretos. É justamente por meio desse juízo que se atingirá o equilíbrio (daquela que denominamos gangorra axiológica) dos valores que estão em jogo, pois o ideal de Justiça nas normas reguladoras deve ser o fim maior dessa função administrativa.

Percebe-se que essa função, ao mesmo tempo em que se afasta da atividade legiferante tradicional, se aproxima de uma forma de legitimar a atuação estatal. Assim, se é certo que a Administração não tem como papel institucional a produção legislativa, não menos correto, é afirmar que diante dessa nova função reguladora, resta-lhe outorgado o dever (obrigação) de bem preservar e cuidar do interesse público. No entanto, pode-se dizer que diante da função reguladora, há uma mitigação no princípio da supremacia do interesse público, uma vez que devem ser considerados outros valores conforme salientado acima.

Digno de menção a lição de Eugênio Araújo:

Veja-se que a lei de deslegalização não precisa penetrar na matéria que trata, bastando-lhe abrir a possibilidade a outras fontes normativas, estatais ou não, de regulá-la por atos próprios que, por óbvio, não serão de responsabilidade do Poder Legislativo, ainda que sobre a norma possa continuar a ser exercido um controle político e jurisdicional derivado de desvio ou abuso de poder regulatório. (2007, p. 86)

O autor percebe muito bem uma das distinções que devem ser apontadas entre a norma legal e a norma reguladora, de modo a facilitar o perfeito entendimento do conceito da função reguladora. Veja-se, na doutrina de Diogo Moreira Neto, as principais diferenças sistematizada no seguinte quadro comparativo:

NORMA LEGAL

NORMA REGULADORA

INTERESSE PÚBLICO

Específico

Ponderado ao lado de outros valores protegidos pelo ordenamento

DISCRICIONARIEDADE

Pode existir caso haja previsão

Não há espaço, pois busca-se alcançar a eficiência prevista na lei deslegalizadora

FONTE JURÍDICA

Natureza política

Natureza não política, atua nos espaços politicamente neutros (deslegalizados)

CONTEÚDO DA NORMA

Restritivo ou condicionante ao comportamento dos atores sociais e econômicos

Substitutivo das decisões privadas para equilibrar tais relações

Dentre as diferenças acima, ressalte-se o caráter discricionário da norma reguladora, esclarecido por Diogo Moreira Neto:

Portanto, ao optar pelos processos da deslegalização e da regulação, o legislador não está abrindo um campo de ação arbitraria pelo órgão regulador, mas, ao contrário, de modo semelhante como ocorre com a abertura legal de um espaço discricionário de decisão, o legislador delimita para a Administração reguladora um âmbito decisório que esta poderá preencher com decisões normativas ou concretas, desde que o faça sujeita a estritas regras de validação, destinadas a afastar o eventual arbítrio, irrazoabilidade e desproporcionalidade em sua atuação. (2003, p.181) (grifos no original)

Pode-se afirmar que na verdade, as funções legislativa e reguladora não se excluem. Ao contrário, andam juntas, eis que uma complementa o papel da outra. Melhor dizendo, a função reguladora encontra seu fundamento de validade na norma de deslegalização, devendo respeitar os limites e obedecer os critérios de discricionariedade impostos pelo legislador. De acordo com Diogo Moreira Neto,

Isso explica o fato de a norma reguladora não revogar a norma legal que incida sobre a mesma hipótese, pois, na verdade, como ela só se aplica sobre a matéria que venha a ser deslegalizada, será apenas a lei deslegalizadora (e não a norma deslegalizada) que poderá operar a revogação. (2003, p. 171)

Adicione-se que a deslegalização também deverá observar limites das normas hierarquicamente superiores, como a Constituição Federal, conforme salienta Canotilho:

A deslegalização encontra limites constitucionais nas matérias constitucionalmente reservadas a lei. Sempre que exista uma reserva material-constitucional de lei, a lei ou o decreto-lei (e eventualmente, também, decreto legislativo regional) não poderão limitar-se a entregar aos regulamentos a disciplina jurídica da matéria constitucionalmente reservada a lei. (2002, p. 837)

Oportuno dizer que o instituto ora pesquisado não se confunde, em nenhuma medida, com outros poderes ou funções administrativas mais antigos, tal como o poder de polícia, o qual, para Carvalho Filho, consiste na "prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade"(2006, p. 64). Conclui-se que a única correlação entre citados institutos, é de que o último está contido no primeiro.

Acentue-se ainda, que segundo Marcos Juruena Villela Souto, citado por Diogo Moreira Neto, a função reguladora caracteriza-se pela existência de um "novo iter de permanente retroalimentação do sistema setorial a seu cargo" (2003, p. 112). Essa reflexão demonstra que a tendência dessa nova função é de se expandir cada vez mais, na medida em que as mutações sociais também se modifiquem. Isso somente corrobora a relevância jurídica do tema, ainda timidamente discutido no dias de hoje.

O aludido autor pontua de maneira incisiva essa importante característica da função reguladora na seguinte passagem: "considerando a imensa complexidade da administração pública nos Estados contemporâneos e a necessidade de produzir continuamente correções oportunas e flexíveis, o que vem a ser afinal uma das características mais interessantes da função reguladora". (2003, p. 113)

Por fim, não se pode olvidar de ilustrar os principais aspectos da função reguladora, nas suas acepção múltiplas, muito bens resumidos por Eugênio Araújo da seguinte maneira:

- Na regulação de monopólios o objetivo é a minimização das forças de mercado através de controles sobre os preços e qualidade do serviço.

- No aspecto da regulação para competição o objetivo visado é justamente viabilizar a sua existência (competição) e continuidade.

- Na vertente social, a regulação assegura a prestação de serviços de caráter universal e proteção ambiental.

- Um último aspecto é o da regulação como desestatização. Na Inglaterra seu primeiro propósito foi proteger o consumidor contra a ineficiência, altos preços, excesso de lucros, o que, em princípio, só teria solução através de competição, prevenindo os malefícios dos monopólios nos casos em que a competição fosse restrita ou inviável. Buscou-se compatibilizar satisfação do consumidor com eficiência econômica. (2007, p.83)

3.1.Fundamento jurídico da função reguladora

Pontuar o fundamento jurídico da função reguladora é essencial para determinar sua natureza, bem como as formas de controle presentes no ordenamento jurídico que poderão incidir sobre a mesma. Há mais de um posicionamento doutrinário sobre o tema. Vejamos.

Conforme ensina Canotilho, as justificações de que a função reguladora seria um poder próprio e inerente a qualquer administração ou de que tal poder é criado pela lei, devem ser afastadas.

Devido ao facto de se tratar de uma norma jurídica secundária, condicionada por lei, o regulamento está, por um lado, submetido ao princípio da legalidade da administração; por outro lado, o poder regulamentar, ou seja, o poder de administração criar normas jurídicas, deve ter um fundamento jurídico-constitucional. (grifos no original)

E adiciona:

O princípio da legalidade, atrás referido, será aqui entendido no sentido que actualmente dá a doutrina a tal princípio. Isto significa que a administração está vinculada à lei não apenas num sentido negativo (a administração pode fazer não apenas aquilo que a lei expressamente autoriza, mas tudo aquilo que a lei não proíbe), mas num sentido positivo, pois a administração só pode actuar com base na lei, não havendo qualquer espaço livre da lei onde a administração possa actuar como um poder jurídico livre. (grifos no original) (2002, p. 829)

A linha adotada pelo ilustre jurista português deve ser vista com reservas, uma vez que é a Constituição do seu país quem prevê expressamente o poder regulamentar como atribuição da Administração Pública (art. 199.ᵒ, alínea "c"). Assim, o fundamento do poder regulamentar em Portugal decorre, segundo o doutrinador, da própria Constituição. Seria, portanto, um poder fundamentado em previsão no Texto Maior.

Mas e no Brasil? Teria a CF/88 dispositivo semelhante? O fundamento da função reguladora decorre da lei ou da Constituição?

Uma primeira corrente sustenta que a CF/88 expressamente vedou o exercício do poder regulamentar. Eles se socorrem do art. 25, I, do ADCT que determina:

Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a:

I - ação normativa;

[...]

Para os pensadores que adotam essa corrente, o ADCT vedou o exercício da função reguladora pelos órgãos administrativos, cento e oitenta dias após a promulgação da CF/88, logo, tais entes públicos não poderão exercer tal atividade. Contudo, de acordo com a maior parte da doutrina, essa conotação não merece prevalecer.

Partindo-se de uma interpretação lógica, com respaldo no pensamento do grande jurista Rui Barbosa, "quem dá os fins não pode negar os indispensáveis meios", percebe-se que a função reguladora deve ser exercida plenamente, sem quaisquer restrições transitórias.

Para Rui, se a CF/88 atribuiu a incumbência, por exemplo, do Poder Executivo fiscalizar as atividades econômicas do particular enquanto prestador de serviços públicos, não se pode admitir que o mesmo não possa dispor dos meios (normativos regulatórios) para regular tal atividade, sob pena de lhe deixar de mãos atadas. Com efeito, não há como se exigir que a Administração Pública interfira em qualquer setor (econômico, social, jurídico) de maneira a estabelecer o interesse público, perseguindo os fins agudos previstos na Constituição Federal, sem outorgar-lhe a função reguladora. Esses são os argumentos dos que sustentam a existência de um fundamento constitucional para a função reguladora.

Alguns entendem que o art. 87, § único, inciso II, da CF/88, contêm o dispositivo que põe fim à discussão:

Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.

Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:

II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos.

É o caso de Maria Sylvia Zanella Di Pietro. A administrativista entende que o dispositivo, dentre outros artigos da CF/88, é o fundamento constitucional para o exercício da função reguladora. (2004, p. 68)

Já Diogo Moreira Neto deixa entrever que a função reguladora encontra seu fundamento jurídico também no texto constitucional, mas não em um dispositivo, e sim no princípio da eficiência. Para ele, como o exercício da função reguladora se dá por meio de decisões administrativas, estas devem estar impregnadas de eficiência (além da motivação) para demonstrar a justeza da decisão à hipótese submetida (2003, p.100).

Entende-se que assiste razão ao segundo doutrinador. Com efeito, não por acaso, o princípio da eficiência foi elevado ao status constitucional pelo Constituinte Reformador (EC 45) para pautar todas as atividades da administração, nos termos do caput do art. 37 da CF/88.

Afirma-se ainda que o objeto de produção da função reguladora (normativos) também serve de parâmetro para esclarecer o seu fundamento jurídico. Isto, pois, o fundamento de algo é justamente a origem de onde tal objeto retira sua validade, sua existência e regularidade.

E, consoante entendimento doutrinário,

a natureza da norma reguladora, por resultar de uma deslegalização, é a de uma norma de auto-regulação dirigida, ou seja, obedece a princípios e a standards, de resto, já conhecidos, por serem de longa data seu emprego no ordenamento jurídico econômico e social. (MOREIRA NETO, 2003, p. 126) (grifos no original)

Ademais, tais princípios e standards conformam o que se tem como moldura de fins e de valores, que devem balizar a atividade normativa deslegalizada a ser exercida pelo órgão regulador. (MOREIRA NETO, 2003, p. 126)

Conclui-se que, uma norma oriunda da função reguladora (a despeito de não se tratar de lei formal), deve respeito a tais elementos que compõe a moldura (princípios, fins e valores) que a embasa, logo, sua produção necessariamente subsume-se aos mesmos parâmetros.

Em outras palavras, se a função reguladora que é exercida, por exemplo, no âmbito do domínio econômico, violar princípios, fins e valores da Ordem Econômica, estará violando a "moldura" de sua atividade, ensejando controle pelos meios jurídicos disponíveis, na eventualidade da auto-tutela administrativa não se efetivar.

Quer-se dizer que o fundamento da função reguladora não pode ser outro senão a própria CF/88 eis que esta fixa o padrão mínimo que deve seguir toda e qualquer produção normativa, seja formal (Congresso Nacional), seja regulamentar (órgãos reguladores, como por exemplo, a Anatel).

3.2.Legitimidade da função reguladora

O alcance dos efeitos de todos os tipos de "normas administrativas" (regulamentos, resoluções, certificações etc) é indeterminado, pois afeta inúmeros cidadãos jurisdicionados de uma só vez. Essa característica demanda a existência de uma legitimidade prévia, ou seja, deve haver o mínimo de aceitação entre aqueles que serão afetados pelas mesmas.

Considerando-se o Estado Democrático de Direito instituído no Brasil, beira o autoritarismo relegar à Administração, no exercício da sua função reguladora, amplos poderes para editar normativos que afetam a vida de milhões de cidadãos, sem que haja participação destes.

De acordo com Diogo Moreira Neto, para alcançar a desejável legitimidade da função reguladora, os destinatários da norma reguladora devem ser parte no processo decisório da atividade reguladora. Entende-se que o alerta do autor busca efetivar o princípio democrático previsto no caput do artigo 1º da CF/88. A miúde, o que se quer dizer é que uma resolução da Anatel sobre telefonia celular (p.ex. que trate da "portabilidade") para ser legítima, deve considerar os anseios e as necessidades dos usuários desse serviço, o que se torna possível por meio da realização de consultas públicas (aliás, registre-se, prática reiterada dessa agência reguladora; basta acessar o site www.anatel.gov.br).

Assim, pode-se afirmar que, se na elaboração da lei formal há participação popular (ainda que indireta, por meio dos parlamentares eleitos pelo povo) com mais razão ainda, deve haver participação dos cidadãos no processo de elaboração das normas reguladoras. Essa medida ajuda a consolidar a democracia no Brasil e amplia as chances de preservação do interesse público.

3.3.Competência para o exercício da função reguladora

A função reguladora, enquanto atribuição da Administração Pública para disciplinar relações jurídicas complexas dentro do Estado Democrático Brasileiro, é exercida precipuamente pelas agências reguladoras.

O modelo adotado no Brasil, muito festejado em diversas partes do mundo, parte de um tipo de descentralização administrativa, com a criação do ente regulador, pessoa jurídica de direito público interno, com autonomia e independência superiores ao de uma autarquia, daí o adjetivo autarquia especial, cunhado em diversas leis federais: lei nº. 9427/96 – Aneel, lei nº. 9472/97 – Anatel, lei nº. 9478/97 – ANP etc.

No tocante à competência para o exercício regular da função normativa, muito perspicaz a distinção feita por Diogo Moreira Neto:

Com efeito, está na atribuição de uma competência normativa reguladora a chave para operar os setores e matérias em que devem predominar as escolhas técnicas, distanciadas e isoladas das disputas partidárias e dos complexos debates congressuais, pois essas, distintamente, são métodos mais apropriados às escolhas político-administrativas, que deverão, por sua vez, se prolongar em novas escolhas administrativas, sejam elas concretas ou abstratas, para orientar a ação executiva dos órgãos burocráticos da Administração direta.

Como, em princípio, não se fazia a necessária e nítida diferença entre as matérias que exigem escolhas político-administrativas e as matérias em que devam predominar as escolhas técnicas, a competência legislativa dos parlamentos, que, tradicionalmente, sempre lhes foi privativa, na linha do postulado da separação dos Poderes, se exerceu, de início, integral e indiferenciadamente sobre ambas.

Somente com o decorrer do tempo e a crescente complexificacao da convivência social veio o reconhecimento da necessidade de se fazer essa distinção, até mesmo para evitar o grave inconveniente de cristalizarem-se na lei inúmeras decisões técnicas, tornando-as rapidamente obsoletas, desenvolvendo-se, por isso, como opção, as variedades de delegações legislativas. (2003, p. 117) (grifos no original)

O autor deixa muito claro que a função surgiu aos poucos, a partir da distinção que se fez entre as matérias que exigem escolhas políticas daquelas que demandam escolhas técnicas, juntamente com as razões da origem do instituto.

3.4.Controle jurídico do exercício da função reguladora

O controle do exercício da função reguladora pode ser efetivado em diversos âmbitos, dentre os quais citem-se o político, o orçamentário, o administrativo (interno), o social e o jurídico. Somente esse último, dada sua riqueza e relevância será abordado na presente resenha.

Para a doutrina clássica, a regulação dos diversos setores sociais pelos órgãos reguladores por meio do exercício da nova função reguladora deve pautar-se em primeiro lugar, na Constituição Federal e em segundo lugar, na lei formal (norma legal). Ocorre que esta, por vezes, encontra-se repleta de conceitos jurídicos indeterminados, os quais são formados por expressões sem delimitação objetiva e precisa, tanto no seu conteúdo quanto nos efeitos que possam causar.

No entanto, é importante registrar nenhum dos dois fundamentos jurídicos da função reguladora é capaz de afastar o controle do Poder Judiciário sobre os normativos reguladores produzidos pelo Executivo. Ora, se cabe ao Judiciário exercer o controle de constitucionalidade sobre as normas que aduzem "escolhas políticas", com mais razão, caberá ao mesmo exercer o controle de legalidade dos normativos em face da lei de deslegalização. Muito mais danoso seria relegar à Administração Pública o livre exercício da função reguladora, mesmo quando esta venha a violar os interesses da coletividade.

Assim, pode-se dizer que se um regulamento vem a disciplinar estes conceitos jurídicos indeterminados das leis ordinárias de maneira viciada, caberá controle judicial sobre tal ato, nas mesmas bases em que se dá o controle sobre a legislação ordinária que contém tais expressões.

Se a atividade legiferante do Congresso Nacional ofende a CF/88 ou os interesses sociais, ela deve ser repreendida e corrigida pelo Poder Judiciário. No mesmo sentido, a atividade administrativa de regular a economia a partir dos atos normativos, ainda que de natureza técnica, deve sujeitar-se ao mesmo tipo de controle.

No entanto, como bem assevera Canotilho, "no caso de se tratar de verdadeiras entidades reguladoras, os seus regulamentos não poder ser revogados ou anulados por regulamentos do governo, mas estão seguramente sujeitos ao controlo contencioso administrativo". (2002, p. 841)

Em outras palavras, não pode haver ingerência do Executivo anulando regulamento ou ato normativo da ANP ou da Anatel, por exemplo, mas como já restou consignado anteriormente, nada afastará a incidência do judiciário, haja vista o princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no inciso XXXV do artigo 5º da CF/88.

Pontue-se que em Portugal se adotou o sistema do contencioso administrativo (francês) no qual a revisão dos atos prevalece dentro do âmbito da Administração e somente excepcionalmente, como nas causas acerca da capacidade pessoal, propriedade privada e matéria penal, o Judiciário exercerá o controle.

No Brasil, diferentemente, foi adotado o sistema inglês, chamado de jurisdição única, no qual a atividade revisível é exercida predominantemente pelo Judiciário e não pela Administração Pública.

Assim, guardadas essas distinções, certo é que a fiscalização da Administração, bem como seus órgãos e entidades, deve ser efetivada também pelo Judiciário, pois aquela não passa de uma organização subalterna e a serviço da comunidade. O que se quer dizer é que a Administração integra um Poder que se sujeita ao regime de freios e contrapesos adotado pelo Brasil.

3.5.Separação dos poderes e função reguladora

A doutrina mais conservadora sugere que o exercício da função reguladora viola o princípio da separação dos poderes, pois o Executivo estaria usurpando função típica do Legislativo ao editar normativos infra-legais.

Citem-se as reiteradas decisões da Suprema Corte Norte Americana que declararam inconstitucionais mais de cinqüenta textos legais de caráter intervencionista editados para solucionar grave crise econômica que assolava o país. Aquela Corte entendeu que tais textos estariam delegando funções reguladoras do Legislativo a entes do Poder Executivo, e, portanto estariam violando a separação dos poderes. (CARRERO, 2004, p. 278)

De fato, diante da concepção clássica da teoria em exame, proposta por Montesquieu, as decisões jurisprudenciais acima foram acertadas. No entanto, não há como se conceber tal ofensa diante do moderno direito público e das mitigações que sofreu a teoria ao longo do tempo.

A concepção clássica do princípio entende que não pode haver o exercício de uma atividade típica de um Poder pelo outro. Assim, estaria o Executivo, a partir de uma agência reguladora, malferindo a função legiferante do Legislativo?

A doutrina moderna indica a plena compatibilidade dos dois preceitos, principalmente se considerado o princípio da eficiência recentemente alçado a nível constitucional. É que não se deve mais interpretar o princípio da separação dos poderes de maneira hermética, sem considerar outros valores igualmente relevantes. Conforme aponta Diogo Moreira Neto, tudo dependerá da observância dos limites e independência com que cada Poder exerce uma função atípica. (2003, p.153)

Com efeito, salienta o autor que

novas funções são continuamente definidas e acometidas ao Estado, independentemente das divisões e subdivisões orgânicas tradicionais, mas com a predominante preocupação da eficiência do sem desempenho, hoje, um princípio constitucional a ser observado. Tal é o caso de inúmeras modernas funções derivadas dos atualíssimos princípios da consensualidade, da participação e da subsidiariedade, dentre as quais se encontra a função reguladora de atividades sensíveis criticas setoriais, aqui em estudo. (2003, p. 153) (grifos no original)

Adicione-se ainda que a inegável mutação da sociedade traz à lume a necessidade de aperfeiçoamento das atividades e atribuições do Estado, o qual não pode se prender a valores antigos que não respondam aos anseios da ordem social e jurídica contemporânea.

Dessa forma, não há que se falar em qualquer antagonismo entre esta nova função reguladora e o princípio da separação dos poderes. Caso contrário, seria imperioso reconhecer-se que o exercício de outras funções igualmente relevantes por outros entes públicos também ofenderiam o princípio.

Resta confirmado, portanto, que os novos tempos não podem andar com os antigos dogmas do direito clássico, sob pena de negar a existência de institutos jurídicos indispensáveis a sustentação do regime. Deve haver uma mitigação daqueles que se tornem incompatíveis com a situação jurídica posta.

Logo, conclui-se que é plenamente adequada e compatível a edição de normativos infra-legais e a teoria da separação dos poderes.


4.Conclusão

Diante do exposto, pode-se afimar que essa nova atribuição administrativa é essencial para a busca da preservação do interesse público, seja na medida em que impõe regras aplicáveis ao mercado, seja porque (ainda que pareça contraditório) possibilita a entrada de investimento privado no setor público, auxiliando o Estado a cumprir seus deveres constitucionais.

Saliente-se também que a função reguladora é capaz de contribuir para sanar o problema da dicotomia legalidade estática X sociedade dinâmica tão evidente nos dias atuais. Ciente de que deve haver uma constante renovação das normas diante das relações jurídicas que surgem, sem olvidar da necessária contemporaneidade daquelas, uma efetiva disciplina da matéria infra-legal passará pelo crivo da função reguladora da Administração. A morosidade torna a atividade legiferante ineficaz e desatualizada, incapaz de acompanhar as rápidas mudanças dos setores sociais. E, na lição de Konrad Hesse, separar a realidade da norma é um grande equívoco, pois isso causaria um esvaziamento de ambos: de nada valerá uma norma despida de realidade, bem como uma realidade sem qualquer elemento normativo (1991, p. 14).

Não se tenta afirmar que o trabalho das Casas Legislativas deve ser extinto ou substituído pela função reguladora. Jamais! É preciso ter em mente que num Estado de Direito, uma sociedade jamais se organizará por meio de normativos infra-legais tendo em vista o princípio da legalidade. De outro lado, algumas matérias não submetidas ao aludido princípio, chamadas deslegalizadas, demandam uma regulação mais rápida, atual e eficaz, sob pena de causar prejuízos à ordem social e ao interesse público como um todo.

Conclui-se que a tarefa da atividade reguladora é árdua, devendo satisfazer ao mesmo tempo, "gregos e troianos", quer-se dizer, adequando-se ao ordenamento jurídico posto, bem como preservando os interesses do poder público, do particular-investidor e do usuário-consumidor. Mais que árdua, a função reguladora é uma forma de intervenção do Estado que visa impor normativos que protegem o interesse público.


REFERÊNCIAS

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STF Informativos. Disponível em: <http://www.stf.gov.br> Acesso em: 01 de jun. de 2008.


Autor

  • Roberto Mizuki Santos

    Advogado-sócio MDL Advogados Associados. Procurador do Estado da Paraíba. Professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Faculdade Internacional da Paraíba (FPB) onde leciona Direito Administrativo e Processo Civil. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito do Estado pela Unyahna/BA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Ex-Procurador Federal (2008) e Ex-Procurador do Estado do Piauí (2009-2012). Ampla experiência em concursos públicos: aprovado nos certames para procurador da PGF(AGU), PGE/PI, PGE/CE, PGE/PB e PGM/SP. Autor de artigos e capítulos publicados em revistas e livros jurídicos.

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SANTOS, Roberto Mizuki. Deslegalização e a função reguladora da administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2266, 14 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13506. Acesso em: 29 mar. 2024.