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Do positivismo jurídico na era da hermenêutica constitucional

Do positivismo jurídico na era da hermenêutica constitucional

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O artigo busca analisar se há ainda espaço para uma abordagem positivista do fenômeno jurídico, na contemporaneidade, em que cresce a importância da Hermenêutica Constitucional.

Sumário: Introdução; 1 Positivismo e Pós-Positivismo; 2 Direito e Moral; 3 Direito e Política; 4 Direito e Interpretação; Conclusão; Referências.

Resumo: O artigo que se apresenta tem o escopo primordial de analisar se há, ainda, espaço para uma abordagem positivista do fenômeno jurídico, na contemporaneidade, em que cresce a importância da Hermenêutica Constitucional. Propõe-se, ainda, a avaliar, em linhas gerais, os possíveis papéis desempenháveis pela Hermenêutica, dentro do modelo positivista.

Palavras-Chave: Positivismo Jurídico. Hermenêutica Jurídica. Interpretação de Normas.


INTRODUÇÃO.

Tem sido lugar comum a afirmação de que o positivismo jurídico [01] precisa ser superado (ou mesmo que já o foi totalmente), porque, supostamente, não atenderia às necessidades das sociedades atuais, caracterizadas pela complexidade, e que vêm sendo denominadas de "pós-modernas".

Todavia, esta impressão não é uníssona e unânime, e se acredita, ainda, que uma análise cuidadosa e apurada, que parta do plano conceitual fundamental, renunciando a algumas críticas caricatas, pode levar à conclusão de que o modelo positivista merece ser retomado e reconstruído, ao invés de superado.

É necessário que tal análise leve em conta, portanto, as reais distinções ontológicas existentes entre o modelo positivista e a proposta pós-positivista, a fim de se evitar a repetição irrefletida de argumentos falhos.

Pretende-se, por meio deste modesto estudo, pela utilização do método histórico dedutivo, demonstrar, em linhas gerais, que é falsa a afirmação de que o modelo positivista esteja necessariamente superado, e debater as funções que a Hermenêutica deve desempenhar, mesmo dentro deste modelo, na era das cláusulas abertas e da supremacia dos princípios.

É claro, contudo, que o trabalho que ora se apresenta não pode ter o escopo de esgotar o tema proposto – dada, inclusive, sua diferenciada complexidade –, mas tão somente de chamar a atenção dos estudiosos para um campo do conhecimento extremamente interessante, e ensejar o debate acadêmico, que se mostra tão necessário.


1 POSITIVISMO E PÓS-POSITIVISMO.

O tratamento do tema que constitui objeto deste estudo pressupõe a compreensão, em linhas gerais, ao menos, do que efetivamente são os modelos positivista e pós-positivista de análise e tratamento do fenômeno jurídico.

Tal se faz necessário, porque as caracterizações do que venham a ser tais modelos são elaboradas, no mais das vezes, de maneira caricata, e sem um razoável compromisso conceitual, "de forma puramente retórica" (DIMOULIS: 2006, p. 45). [02]

A este respeito, afirma, já no início de suas considerações, Calsamiglia (1998, p. 209), que "deveríamos ter um critério claro do que é o positivismo e em que difere o positivismo do pós-positivismo" (tradução nossa).

Assim, afirma o autor que

A teoria positivista do direito sustenta basicamente que o único objeto da ciência do direito é o direito ditado pelos homens [...]. O positivismo conceitual se associa com duas teses importantes. Em primeiro lugar, a defesa da teoria das fontes sociais do direito e em segundo lugar a tese da separação entre o direito, a moral e a política (CALSAMIGLIA, 1998, p. 209 e 210, tradução nossa).

De outro lado, assevera Calsamiglia (1998, p. 209) que as teorias pós-positivistas "põem acento nos problemas da indeterminação do direito e das relações entre o direito, a moral e a política" (tradução nossa).

De acordo com o autor, portanto, o cerne das discussões contemporâneas está em se saber se as conexões entre Direito, Moral e Política é contingente ou necessária (CALSAMIGLIA: 1998, p. 215).

É essa a principal controvérsia existente entre os teóricos que se posicionam nos dois modelos sob análise – o que está, aliás, intimamente ligado à questão de se saber quais são as fontes do Direito, e qual é a sua função.

Segundo Dimoulis (2006, p. 43),

A pergunta fundamental é saber o que se entende como direito. O operador pode ignorar essa pergunta, desqualificando-a como estéril, puramente teórica e, afinal de contas, irritante porque questiona incessantemente sua prática cotidiana. Mas a pergunta sempre ressurge e a resposta pressupõe uma detida reflexão sobre as teorias do direito.

Do exposto até este ponto, é possível afirmar, em linhas gerais, que o positivismo afirma, em síntese apertada, que as fontes do Direito são sociais; [03] e que a definição e interpretação do fenômeno jurídico não depende, necessariamente, de considerações de ordem moral ou política. [04]

De outro lado, de acordo com o modelo pós-positivista, de um modo geral, pode-se dizer (de maneira um tanto simplista, é verdade), que o Direito seria um sistema aberto de valores, compromissado especificamente com a realização da Justiça, ligada às ideias de "valor" e de "Verdade" (DIMOULIS, 2006, p. 51 e 52).

É claro que estas distinções conceituais básicas implicam, também, em uma série de outras diversidades, em pontos mais específicos.

Todavia, a exposição detalhada das características de cada modelo e das diferenças específicas entre eles é tarefa que foge do âmbito deste trabalho.

De qualquer forma, as implicações das oposições mais fundamentais entre os modelos positivista e pós-positivista estarão, também, inevitavelmente, nos capítulos seguintes em que se tratará de forma perfunctória, inclusive, das relações entre Direito e Moral, das conexões entre Direito e Política, e sobre o problema da interpretação, em Direito.


2 DIREITO E MORAL.

Também no que se refere, mais especificamente, às relações entre Direito e Moral, deve-se iniciar a análise a partir do plano conceitual.

Isto porque é comum que se trate deste tema sem se esclarecer qual o conceito que se tem de Moral e também de Direito.

Este panorama é bastante problemático, na medida em que tais conceitos são um tanto controvertidos, o que torna os trabalhos que a eles fazem referência, sem um esclarecimento prévio, também, um tanto quanto imprecisos.

É elucidativo mencionar, a título de exemplo, que há obras de Filosofia que se limitam a identificar o conceito de Moral, em geral, com a noção de Ética, ou, mais especificamente, com os "costumes, valores e normas de conduta específicos de uma sociedade ou cultura" (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2001, p. 134).

Ocorre, também, de o termo Moral ser ligado à ideia de oposição às ciências naturais, marcada pelo espírito subjetivo; estando, também, relacionada à noção de sentimento em contraposição ao intelecto (MORA, 1978, p. 117).

Mesmo no círculo especificamente jurídico, há quem identifique a Moral, simplesmente, com os costumes, com a vaga afirmação de que não se confunde ela com o Direito, mas que é aquela inspiradora deste último (SANTOS, 2001, p. 163).

Parece, todavia, que o conceito de Moral com o qual se deve trabalhar, para que façam sentido as mais diversas argumentações a respeito das suas relações com o Direito, é aquele que tem raiz no pensamento de Kant.

Assim, em linhas gerais, poder-se-ia classificar como Moral o conjunto de regras (não necessariamente legisladas), que, de acordo com um exercício de razão objetiva, obedecem a um imperativo categórico, podendo ser consideradas, simultaneamente, universais e benéficas para todos os homens (ALEXANDRIA, 2001).

Há algumas considerações de suma importância, a este respeito, que podem ajudar a esclarecer um vasto campo de marcantes controvérsias.

Em primeiro lugar, é de se notar que, de acordo com o conceito exposto, a ideia de Moral não é dada em função da ideia de Ética. [05]

Cabe destacar, ainda, que, portanto, para o modelo kantiano de Moral, é imprescindível que as suas prescrições sejam, indubitavelmente, universais e benéficas, e que resultem elas, exclusivamente, de um exercício de razão objetiva. [06]

É muito provável que seja este o ponto nevrálgico de discordância entre os partidários dos modelos positivista e pós-positivista.

Isto porque há, de um lado, por parte dos pós-positivistas, a convicção de que o condicionamento da Moral a um exercício de razão objetiva, que independeria, em tese, de fatores culturais e religiosos, por exemplo, justifica plenamente a necessidade de se conceituar e aplicar o Direito em função (ou em decorrência) dela.

Por outro lado, por parte dos positivistas, há um ceticismo marcante a respeito das próprias possibilidades de tal exercício de razão, puramente objetiva, ser realizado.

Isto porque, segundo os positivistas, em geral, é, no mais das vezes, impossível que alguém faça um exercício de universalização, a respeito de questões controvertidas, para se chegar a uma proposição que seja considerada válida, por meio de um raciocínio exclusivamente objetivo, despindo-se total e completamente de influências culturais e religiosas, entre outras.

Pode-se argumentar, de qualquer forma, que há um mínimo de regras que poderiam, eventualmente, ser consideradas universais e benéficas, sem que haja grandes controvérsias a respeito de tais proposições.

O fato é que estas regras estão, em geral, já, devidamente positivadas (por meio de processo legislativo cujos parâmetros são previamente estabelecidos), sendo completamente desnecessário (e talvez, mesmo, descabido), portanto, traçar considerações supralegais a respeito delas.

Tome-se, por exemplo, a conduta genérica de se matar outro ser humano.

Inexistem grandes dúvidas, atualmente, de que tal conduta não pode ser considerada universalmente benéfica, e que pode ser considerada, desta forma, "imoral".

Ocorre que não há notícia de ordenamento jurídico, na atualidade, que não tenha uma regra, devidamente positivada, determinando que tal conduta é, de fato, ilegal.

O grande problema está, contudo, nas exceções, que geram, estas sim, enormes controvérsias.

A título de exemplo, pode-se trazer à baila a questão da conduta de matar outro ser humano, em situação de legítima defesa.

Não há consenso universal a respeito da moralidade (ou não) das mais variadas formas possíveis e imagináveis de se exercer a aludida conduta.

Há uma tendência, no mundo ocidental, de se considerar os posicionamentos que rejeitam a moralidade da legítima defesa frutos de influências meramente culturais ou religiosas, e vice versa. [07]

O ponto é, todavia, que não se consegue resolver a questão, de forma definitiva, lançando-se mão, exclusivamente, da razão objetiva, ao que tudo indica.

Outro exemplo interessante é a questão do aborto.

Há diversos países em que se defende que o aborto é, em qualquer caso, imoral (e isso, é claro, gera consequências no próprio Direito positivado).

Existem outros países em que prevalece a ideia de que o aborto é, sempre, imoral, mas que é, em alguns casos, aceitável.

Em alguns países, o aborto nem sempre é considerado imoral, e os casos em que ele é considerado aceitável são, precisamente, os casos em que se enxerga uma característica de moralidade em tal conduta.

Em outros países, ou mesmo em algumas regiões, acredita-se que o aborto não constitui, absolutamente, objeto da Moral.

Vê-se, portanto, que a controvérsia é bastante considerável, e que não há consenso (muito pelo contrário) sobre a universalidade e sobre os benefícios de se considerar moral uma única determinada proposição.

O mesmo se dá, também, por exemplo, com os casos de antecipação terapêutica do parto, na hipótese de fetos anencéfalos. [08]

Enquanto não há regra clara a respeito da legalidade ou não de tal possível conduta, é verdade que o Poder Judiciário tem a responsabilidade de dar respostas às demandas que lhe forem propostas. [09]

De qualquer forma, é bastante questionável a possibilidade de se chegar a uma conclusão moral definitiva sobre o problema, por meio, exclusivamente, de um exercício de razão puramente objetiva.

O próprio conceito de vida, [10] de seus limites, de seu início e fim, neste caso, dependerá, ao que tudo indica, de impressões subjetivas de quem analisa o caso.

Dentre inúmeros outros exemplos ilustrativos possíveis, há, ainda, um bastante interessante, inclusive porque não é comum que se reflita sobre ele.

Trata-se da utilização, por parte dos seres humanos, de outras espécies de seres sencientes, para alcançar fins que interessam, exclusivamente, àqueles primeiros.

Há um numero enorme de situações que se enquadram nesta possibilidade, o que inclui a utilização de animais em testes farmacológicos e, mesmo, em última análise, o uso de seus vários derivados (inclusive de sua própria carne) na alimentação humana.

A questão ganha contornos de complexidade, quando se leva em conta que se sabe, já há alguns anos, que alguns animais (como os orangotangos e os chimpanzés) desenvolvem cultura, própria de cada grupo particular, e que é passada para as gerações mais jovens (ORANGOTANGO, 2003).

Leve-se em conta, também, aliás, que se descobriu, igualmente há alguns anos, já, que há animais (como os golfinhos, os chimpanzés e os elefantes) que são capazes de reconhecer a própria imagem em espelhos, o que constitui, segundo estudiosos, prova de que têm consciência de sua própria individualidade (ELEFANTES, 2006).

Estes dados, meramente exemplificativos, demonstram, de certa forma, que os motivos que costumam ser utilizados para fundamentar uma suposta superioridade humana têm sido, paulatinamente, relativizados por descobertas científicas contemporâneas.

É claro que se pode discutir a legitimidade das proposições legais que permitem ou proíbem o uso de animais para fins que beneficiam, tão somente, os interesses humanos (e esta discussão, aliás, pode ser bastante desejável). [11]

Contudo, fora do âmbito da estrita legalidade, quaisquer argumentos de ordem moral dependerão, sempre, ao que parece, de uma carga bastante considerável de subjetivismos, e a formulação de uma proposição resolutória que seja fruto de uma razão puramente objetiva mostra-se, no mínimo, improvável.

Vale ressaltar, neste ponto, a título de esclarecimento, que, como visto, uma consequência lógica importante das características do modelo proposto por Kant é que as proposições morais seriam, em virtude da própria condição de exercício de razão objetiva, imutáveis. [12]

Um dado interessante, contudo (e reiteradamente ignorado pelos teóricos), são as considerações do próprio autor paradigma sobre as relações entre Moral e Religião.

A moral conduz [...] infalivelmente à religião, ampliando-se desse modo até a idéia de um legislador moral todo-poderoso, exterior ao homem, na vontade do qual reside um fim último (da criação do mundo), o que pode e deve ser igualmente o fim último do homem (KANT, 200-, p. 13).

Aliás, neste ponto, em nota de rodapé, repisa o autor que

Se [...] a observância mais estrita das leis morais deve ser concebida como causa da produção do soberano bem (enquanto fim), é necessário admitir, porque o poder do homem não é suficiente para realizar no mundo a harmonia da felicidade com o mérito de ser feliz, um ser moral todo-poderoso como mestre do mundo, com os cuidados do qual isso se cumprirá, isto é, que a moral conduz infalivelmente à religião (KANT, 200-, p. 15).

Até aqui, portanto, em resumo, há um conceito razoavelmente claro de Moral, com o qual parece ser o mais correto trabalhar na controvérsia entre os modelos positivista e pós-positivista; e se esclareceu que o ponto crítico da questão está, precisamente no fato de haver, por parte dos positivistas, um elevado grau de ceticismo no que se refere à possibilidade de construção de proposições válidas para os casos complexos, com apoio, exclusivamente, na razão objetiva. [13]

Cabe, agora, todavia, traçar algumas considerações a respeito do conceito de Direito, e realizar um esforço, no sentido de se verificar se as aplicações de tal conceito dependem, necessariamente, do conceito de Moral, ou não.

Aqui, também, há notável complexidade.

A este respeito da "definição" do que venha a ser Direito, pontua Dimoulis:

Os únicos elementos de definição que todos admitem são a coação e a finalidade de regulamentar condutas sociais. Mas esses elementos não são específicos para o direito, encontrando-se em variados sistemas de normas.

[...] não há nenhuma definição que possa encontrar aprovação geral, nem pode ser feita uma lista de elementos que caracterizam de forma específica o direito, sendo aceitos pela maioria dos pensadores (DIMOULIS, 2006, p. 34).

Para se entender um dos motivos das dificuldades de que ora se trata, é útil referir os esclarecimentos de Machado Neto, no que diz respeito à questão da multiplicidade de significados do termo "direito":

[...] se estudar a vida é tema do biólogo, quando se está definindo a ciência da vida, a biologia, não se está ainda estudando a vida, mas uma ciência, embora aquela que leva a vida em seu nome. O tema não será aí, pois, a vida (bios) – biologia, mas uma ciência (episteme) – epistemologia. Não se estará fazendo então ciência, mas epistemologia, teoria da ciência.

Sem dúvida, o mesmo se passa com o direito. Tratar de direito é fazer ciência jurídica, dogmática ou jurisprudência, mas tratar da ciência do direito, ainda que para o mister elementar de defini-la, é fazer epistemologia (Machado Neto, 1975, p. 5)

Há, portanto, pelo menos três sentidos diversos importantes para a palavra "direito". O primeiro significado diz respeito ao Direito enquanto objeto de estudo; o segundo se refere à Ciência que se dedica, primordialmente, ao estudo de tal objeto; e, por último, o terceiro significado, que é utilizado em referência a "direito subjetivo" ao qual corresponde determinado "dever jurídico".

Neste trabalho, pretende-se tratar do conceito de Direito enquanto objeto de estudo, e não como Ciência propriamente dita.

Na tarefa de se conceituar o Direito, portanto, é necessário levar-se em conta as suas características gerais, assim como os fins a que se propõe.

Segundo Garner (1999, p. 889), o Direito pode ser entendido como o regime que ordena as atividades e relações humanas por meio da aplicação sistemática da força da sociedade politicamente organizada.

Para Hans Kelsen, "o Direito é uma ordem da conduta humana" e "um conjunto de regras que possui o tipo de unidade que entendemos por sistema" (2000, p. 5).

Leva-se em conta, aqui, que o Direito é um conjunto de regras que traduz a expressão do poder, em uma sociedade politicamente organizada, ou seja, o Direito (ainda que possa ser, eventualmente, injusto), [14] não pode ser confundido com o arbítrio. [15]

De outro lado, é necessário apontar que a função primordial a que se propõe o Direito é garantir a segurança social e institucional.

O fato é, todavia, que as normas, em geral (assim como o seu coletivo, isto é, o ordenamento jurídico), não são criadas com a função primordial de promover mudanças, [16] mas, sim, de garantir determinado nível de segurança.

Não é o Direito que modifica a realidade. O Direito é um dos instrumentos, modesto instrumento, de transformação da sociedade. O Direito é acima de tudo um instrumento de consagração de uma dada realidade (MELLO, 1985, p. 97).

Do dito até este ponto, é possível extrair, em linhas gerais, que o Direito é expressão do poder, em uma sociedade politicamente organizada, que tem como função primordial garantir a segurança social e institucional, e que a sua aplicação não deve depender de fatores de ordem moral, por dependerem as convicções morais, inevitavelmente, de elementos de natureza eminentemente subjetiva.

De acordo com Dimoulis (2006, p. 104 e 105),

A tese da separação entre direito e moral é sinônima da distinção entre o direito "como ele é" e o direito "como deveria ser".

[...] A reflexão sobre o direito como deveria ser está no centro das preocupações juspositivistas [...], mas os adeptos da corrente a separam claramente das análises sobre a validade e a interpretação do direito positivo.

O palco principal de mutação e evolução social é o campo da Política, tema será tratado, em linhas gerais, no próximo capítulo.


3 DIREITO E POLÍTICA

Conforme mencionado no primeiro capítulo deste estudo, Calsamiglia aponta que uma das diferenças importantes entre o modelo positivista e a proposta pós-positivista se refere às características da relação entre Direito e Política.

É importante destacar, portanto, que a eventual afirmação de que o modelo positivista negaria as relações entre Direito e Política, ou as influências desta última naquele são, no mínimo, desinformadas.

O cerne das divergências encontra-se, na realidade, nos limites da atividade política dos juízes.

Isto fica patente, quando se considera a afirmação de Guerra Filho de que "o centro de decisões politicamente relevantes, no Estado Democrático contemporâneo, sofre um sensível deslocamento do Legislativo e Executivo em direção ao Judiciário" (2001, p. 161).

De acordo com o conceito de modelo positivista que vem sendo trabalhado neste estudo, a afirmação de Guerra Filho seria um tanto quanto questionável, porque ajudaria a promover, a um só tempo, a usurpação de funções do Legislativo, pelo Judiciário, e o próprio esvaziamento da esfera de poder daquele primeiro.

É de se destacar que a Constituição Federal vigente estabelece, já de início, entre os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, a independência e a harmonia entre os Poderes da União.

Ressalte-se, também, que é função do Poder Legislativo, e não do Poder Judiciário, desempenhar a tarefa de definir políticas públicas.

Isto se dá, inclusive, porque é no âmbito do Poder Legislativo que há verdadeiro espaço para o debate democrático e para a iniciativa popular, [17] levando-se em conta, aliás, que os seus membros são eleitos por sufrágio universal e direto, e que os seus mandatos têm tempo delimitado, o que, é válido mencionar, não ocorre com os integrantes do Poder Judiciário. [18]

Não se pretende, todavia, de qualquer forma (conforme já ressaltado, aliás), que a Política não tem influência no Direito, ou que com ele não tenha conexões, haja vista, inclusive, que "o problema de legislação é um problema político" (MELLO, 1985, p. 81).

Há estreita vinculação entre o Direito e a Política, já que "a validade das normas jurídicas decorre de imposição feita pelo poder político" (DIMOULIS, 2006, p. 105).

A questão é, todavia, que, mesmo sendo o ordenamento jurídico oriundo do cenário político legislativo, "o direito e a política estão separados em nível conceitual", isto é, "o conceito de direito não inclui em sua definição referências à política" (DIMOULIS, 2006, p. 106 e 107).

Aliás, neste ponto cabe mencionar que é possível detectar as influências da Moral e da Religião, por exemplo, na atividade política, mas, segundo Dimoulis, "mesmo quando a norma espelha convicções morais de seu criador, é imposta porque seu criador possuía a vontade e capacidade política para tanto e não porque sua convicção moral era a melhor" (2006, p. 106).

É necessário destacar, portanto, que "o papel do aplicador do direito consiste em implementar os comandos jurídicos e, indiretamente, a vontade política neles incorporada e não promover opções políticas pessoais" (DIMOULIS, 2006, p. 107).

A questão de como deve o julgador implementar as opções políticas resultantes do debate democrático, ocorrido no âmbito do Poder Legislativo, constitui objeto do próximo capítulo.


4 DIREITO E INTERPRETAÇÃO.

É provável que as maiores implicações das divergências existentes entre o modelo positivista e a proposta pós-positivista recaiam sobre as questões que envolvem Direito e interpretação, e sobre os papéis que a Hermenêutica pode desempenhar junto às Ciências Jurídicas.

O grande problema é se saber quais os limites que o julgador tem ao interpretar as normas que devem ser aplicadas aos casos concretos que são levados à sua apreciação judiciosa.

É elucidativo destacar que o debate é atual e pertinente, mormente quando se tem legado ao Supremo Tribunal Federal a função de decidir casos de extrema complexidade e que envolvem grandes controvérsias, como a constitucionalidade da utilização de células embrionárias em pesquisas científicas e da antecipação do parto em casos clínicos de fetos anencéfalos, por exemplo. [19]

Enquanto não há norma regulamentadora de tais condutas, é praticamente pacífico o entendimento de que deve, realmente, o Poder Judiciário decidir, de forma pontual, as demandas em que se solicita a sua intervenção.

O grande problema é saber o alcance da legitimidade do Supremo Tribunal Federal (e, no mais, dos julgadores em geral) de declarar a inconstitucionalidade de determinada norma, por ser ela, em tese, incompatível com um determinado princípio.

Vale ressaltar a observação de Repolês de que

A conseqüência mais grave da definição de Constituição como ordem concreta de valores é que a generalidade e imprecisão de suas formulações permite que as Cortes ampliem voluntaristicamente os princípios a ponto de criar critérios de interpretação que não encontram o menor ponto de apoio no texto constitucional (2003).

Ainda, neste sentido, interessantes as ponderações de Neves de que "dado o forte componente ideológico e a profunda imprecisão semântica (vagueza e ambigüidade) das normas programáticas, é muito difícil a caracterização da incompatibilidade de lei ordinária com norma programática" (1988, p. 103).

Há, sem sombra de dúvidas, entre os mais respeitáveis doutrinadores, uma preocupação praticamente uníssona com a necessidade de se garantir a margem mais ampla possível de objetividade, e, a respeito da aplicação de princípios, assevera Guerra Filho que "a discussão gira menos em torno de fatos do que de valores, o que requer um cuidado muito maior para se chegar a uma decisão fundamentada objetivamente" (2002, p. 19).

Ocorre, todavia (e aqui há um ponto de sensível discordância entre os estritamente positivistas e os pós-positivistas, em geral), que Guerra Filho afirma, também, que a interpretação e aplicação do Direito pode ocorrer contra legem (GUERRA FILHO, 2002, p. 39).

Esta visão, todavia, é extremamente controvertida, e Dimoulis aponta o risco de a interpretação jurídica ser vista e utilizada "como pretexto para impor aquilo que o intérprete considera como a melhor solução de um conflito social" (2006, p. 60).

Aliás, o autor aponta que

[...] na perspectiva juspositivista, é preciso rejeitar os métodos teleológicos que adulteram os conteúdos normativos fazendo referência a uma suposta e oculta vontade do legislador (teleologia subjetiva) ou a necessidade de modificação da norma em detrimento de seu conteúdo (teleologia objetiva). Nos dois casos, o intérprete faz um indevido recurso a elementos que não pertencem ao sistema jurídico (DIMOULIS, 2006, p. 244).

Estas considerações já fazem alguns esclarecimentos, a respeito dos posicionamentos positivistas (e de suas divergências com a proposta pós-positivista, que partem, como visto, do plano conceitual), mas cabe faze, ainda, alguns importantes apontamentos.

Diversamente do que se pode pensar, em uma análise simplista e apressada, o modelo positivista contemporâneo não nega a normatividade dos princípios.

Muito pelo contrário, aliás.

Já há quase 50 anos, a proposta de Bobbio ressaltava a plena normatividade dos princípios, inclusive daqueles não expressos que decorrem do sistema (1995, p. 158 e 159).

Destaque-se, contudo, que há estudos de boa qualidade, bastante mais contemporâneos, que analisam especificamente a questão da inquestionável normatividade dos princípios, e os seus reflexos no modelo positivista (DIMOULIS e LUNARDI, 2008).

O ponto, todavia, é que o modelo positivista, mesmo admitindo, plenamente, a normatividade dos princípios, não considera que a interpretação contra legem seja possível.

A este respeito, esclarece Bobbio que

O positivismo jurídico põe um limite intransponível à atividade interpretativa: a interpretação é geralmente textual e, em certas circunstâncias (quando ocorre integrar a lei), pode ser extratextual; mas nunca será antitextual, isto é, nunca será contra a vontade que o legislador expressou na lei (1995b, p. 214)

A questão que se pode colocar, neste ponto, diz respeito às formas de interpretação que se deve utilizar, nos casos em que a interpretação textual não oferece respostas claras. [20]

É neste ponto que a Hermenêutica dá as suas mais notáveis e inegavelmente necessárias contribuições ao Direito.

Cabe destacar que esta era uma preocupação de Bobbio, já há quase 50 anos, e que o autor já sinalizava que a interpretação, nos casos complexos, deveria se dar levando em conta múltiplas (mesmo que, ainda, naquela época, limitadas) perspectivas, ou "meios", como, por exemplo, o que chama de "léxico", o "sistemático" e o "histórico" (1995b, p. 214 e 215).

É claro que não se pode ignorar, contudo, todos os avanços que foram feitos no campo da Hermenêutica e da Semiótica, principalmente, nas últimas cinco décadas.

Assim sendo, há de se levar em grande conta as contribuições de Hesse, em adição ao que chama de regras tradicionais de interpretação de normas constitucionais, por exemplo (1992, p. 35 a 48).

Destaque-se, todavia, que o próprio autor refere que há limites claros na interpretação constitucional, que não podem ser ultrapassados pelo julgador, no exercício de suas funções (HESSE, 1992, p. 48 e 49).

Merecem destaque, também, as propostas de Gomes, que aconselham a utilização de múltiplas perspectivas na concretização de normas (2008, p. 156 a 203).

A este respeito, são novamente pertinentes as observações de Dimoulis, que aponta que

O resultado da interpretação deve estar acompanhado de uma completa justificativa tanto em relação aos métodos escolhidos como em relação à proposta interpretativa sugerida. Em seguida, deve ser realizada uma discussão crítica entre pessoas que compartilham a finalidade da interpretação objetiva. O debate permitirá confirmar ou corrigir a proposta interpretativa com base em argumentos objetivos (2006, p. 245).

O fato é, todavia, que, de acordo com o modelo positivista, apesar das múltiplas perspectivas que deve levar em conta, o julgador nunca tem liberdade para decidir fora dos limites da "moldura" (KELSEN, 2000) que foi previamente estabelecida pelo legislador.

Isto, inclusive, em virtude do próprio conceito de Direito com que se trabalha.

Afinal, ao se admitir que pudesse o julgador decidir, ao seu próprio arbítrio, sem respeitar absolutamente os limites previamente traçados, deixaria o Direito de cumprir a sua função primordial, isto é, de garantir segurança social e institucional.

As considerações traçadas até este ponto não querem dizer, todavia, que o modelo positivista pretenda legitimar o Direito que se encontra positivado, especificamente, em um determinado tempo e espaço (o que se poderia, equivocadamente supor).

[...] o positivismo jurídico é uma teoria do direito que não professa a neutralidade do estudioso no sentido de um imperativo de reserva política e de abstenção da crítica. A neutralidade é uma opção metodológica que permite um clara distinção entre as abordagens descritivas do sistema jurídico "como ele é" e as críticas elaboradas pelo estudioso em relação ao objeto descrito (DIMOULIS, 2006, p. 40).

Com isto, talvez seja possível compreender que o modelo positivista não compõe odes a um passado de trevas, que não pretende justificar absurdos e nem significar um óbice ao progresso.

É possível enxergar que há uma interessante controvérsia, no plano conceitual, entre os partidários dos modelos positivista e pós-positivista, e que talvez aquele primeiro não esteja tão "morto" ou "superado" como se poderia imaginar, e que, ao invés disto, merece ele (como, ademais, qualquer modelo teórico) ser continuamente reconstruído, por meio do processo dialético a que são submetidas todas as propostas sérias.


CONCLUSÃO

O estudo que se apresenta se propôs, de início, a analisar, a partir do plano conceitual, a controvérsia que existe entre os modelos positivista e pós-positivista, e o papel que poderia a Hermenêutica desempenhar dentro do positivismo jurídico.

A partir de tal ponto, procurou-se demonstrar que as diferenças de opinião entre positivistas e pós-positivistas têm raiz, principalmente, no ceticismo dos primeiros a respeito das possibilidades de se realizar um exercício de universalização de proposições dependente, exclusivamente, da razão objetiva.

Este fato tem consequências marcantes na forma como positivistas e pós-positivistas enxergam as relações entre Direito, Moral e Política e, também, sobre o papel da Hermenêutica na atividade dos juristas em geral e, principalmente, dos julgadores.

Procurou-se, neste estudo, esclarecer, portanto, as razões fundamentais das controvérsias entre positivistas e pós-positivistas; assim como demonstrar que o modelo positivista não se encontra superado, e que se mostra, sim, pertinente o debate acerca dos papéis que a Hermenêutica pode cumprir neste panorama.

Tal debate é de suma importância, mormente levando-se em conta o advento da era da normatividade dos princípios gerais, inclusive em nível constitucional.

Não se pretendeu, com este estudo, destarte, encerrar o debate ou dar respostas definitivas, senão reavivar o aludido debate, e incentivá-lo.

É bastante possível que, ao invés de superado e morto, esteja o modelo positivista mais vivo do que nunca, e esta possibilidade merece ser levada em conta.


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Notas

  1. Utilizar-se-á, no decorrer deste estudo, senão quando expressamente excepcionado, indistintamente as expressões "positivismo" e "positivismo jurídico", com a significação específica desta segunda, sem que se pretenda referir ao "positivismo filosófico". Aliás, neste sentido, é válida a advertência de que "a afirmação do liame entre o positivismo jurídico e o positivismo filosófico ou sociológico ensina muito pouco sobre as características do primeiro" (DIMOULIS, 2006, p. 67).
  2. Levando-se em conta que, neste seara é comum a utilização da falácia do "homem de palha" (por ambos os lados do debate, diga-se de passagem), é útil ressaltar que são de pouco valor científico as inferências extremistas que se limitam a classificar o positivismo de mero dogmatismo exacerbado e de justificador dos absurdos nazistas, por exemplo, da mesma forma que em nada auxiliam as afirmações de que o pós-positivismo não passaria, supostamente, de um amontoado de devaneios ingênuos.
  3. O modelo positivista não reconhece, portanto, a existência de fontes "naturais" ou "transcendentais" do Direito; vale dizer, os partidários do positivismo jurídico rejeitam a "dependência do ordenamento jurídico de elementos metafísicos e tendencialmente imutáveis, tais como os mandamentos divinos ou os imperativos da razão humana (DIMOULIS, 2006, p. 79).
  4. Destaque-se que esta afirmação não implica em negação da existência de influência por parte da Moral e da Política no Direito (ou, ainda, da íntima relação que têm, principalmente, Política e Direito), o que será tratado mais detalhadamente nos capítulos seguintes.
  5. Tomando-se a Ética, aqui, como o conjunto de regras tomado como válido por determinada comunidade, ou por determinada classe, sem se questionar, especificamente, a respeito de sua universalidade. Neste panorama, por exemplo, pode-se falar em Ética do Advogado, com referência aos valores que são eleitos por tal classe profissional, sem que sejam, necessariamente, válidos para outras diversas classes, em virtude de suas particularidades. A Moral, por outro lado, a partir do conceito ora trabalhado, é sempre universal, e nunca particular de uma determinada comunidade ou classe específica.
  6. Há, aqui, outro ponto de destacada importância, já que, como visto, há autores que trabalham o conceito de Moral a partir da expressão do espírito subjetivo (MORA, 1978, p. 117), e não de um exercício de razão puramente objetiva.
  7. Destaque-se, aqui, outro ponto de diferenciada importância. Se as influências culturais e religiosas, por exemplo, devem ser afastadas, o que deve substituí-las? Não deve ser, por certo, um suposto "senso natural", já que, na natureza, verbi gratia, as condutas promíscuas são comuns, ao mesmo passo que são tidas, sem grandes problemas, por "imorais", precisamente, ao que tudo indica, em virtude de construções culturais e religiosas, ou, simplesmente, por assim dizer, "anti naturais".
  8. Também denominada, comumente, é verdade, de "aborto" de anencéfalos.
  9. O que será melhor analisado no capítulo 4.
  10. A respeito do que, aliás, não há consenso mesmo nos círculos médicos.
  11. Neste particular (e apenas a título ilustrativo), são interessantes as ponderações de Kundera, na "Insustentável Leveza do Ser", quando afirma: "No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. [...] bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: ‘Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas’, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado por um habitante da Via-láctea – talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca" (1995, p. 287, 288).
  12. Se as proposições morais são imutáveis, é claro que a prevalência do Sistema Moral implica em um perfil conservador, e não na tendência de evolução social, como equivocada e ingenuamente poder-se-ia supor.
  13. É claro que o tema é caracterizado pela complexidade, e que não se pretendeu, com estas considerações, esgotá-lo, nem, tampouco, estabelecer uma resposta definitiva.
  14. Ressalte-se que o problema da "justiça" ou "injustiça" de um determinado ordenamento jurídico está ligada a um "julgamento subjetivo de valor" (KELSEN, 2000, p. 9), e que, portanto, aqui aplicam-se, com as devidas proporções, as considerações tecidas a respeito do problema da Moral.
  15. Esta característica do Direito será melhor analisada no próximo capítulo, em que se tratará de suas relações com a Política.
  16. É claro que a promoção de mudanças e de evolução é, também, uma das múltiplas funções que podem ser atribuídas ao ordenamento jurídico.
  17. É importante destacar que não há consenso, entre os positivistas, a respeito da relevância do "fator democrático", já que se reconhece, comumente, a positividade de normas legisladas por entes políticos não eleitos, mesmo em Estados onde não vige o regime democrático (DIMOULIS, 2006, p. 255). Não se nega, todavia, a importância deste fator nos países onde o regime democrático é observado.
  18. Aliás, é válido destacar que há respeitados autores alemães que atribuem ao Poder Judiciário, e não ao Poder Legislativo, como se poderia pensar, a responsabilidade pelos absurdos do nazismo, com referência expressa e literal, inclusive, ao antipositivismo e antiformalismo "primários da doutrina nazista" e ao "juiz-rei do povo de Adolf Hitler" (MAUS, 2000, p. 197).
  19. Veja-se, v. g., que, já no início de 2009, era publicada, em revista de grande circulação nacional, sob o título "Toga em evidência", a notícia de que "a pauta do STF [...] continuará polêmica [...]. O tribunal vai decidir a legalidade da união entre homossexuais, o aborto de fetos com má-formação cerebral [...]" (AITH, 2009).
  20. Mormente levando-se em conta, também, o aumento do número das chamadas "cláusulas abertas" positivadas, por exemplo.

Autor

  • Thiago Caversan Antunes

    Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Direito Civil e Processo Civil (UEL) e Mestre em Direito Negocial (UEL). Doutor em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR). Professor do curso de graduação em Direito da Universidade Positivo (UP Londrina), e de diversos cursos de pós-graduação. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). Autor de livros e artigos científicos. Atua como advogado.

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ANTUNES, Thiago Caversan. Do positivismo jurídico na era da hermenêutica constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2300, 18 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13706. Acesso em: 2 maio 2024.