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Direito, literatura e a Lei de Introdução ao Código Civil.

Um estudo reflexivo-comparativo acerca do Direito e da Lei de Introdução ao Código Civil, partindo do auxílio literário

Direito, literatura e a Lei de Introdução ao Código Civil. Um estudo reflexivo-comparativo acerca do Direito e da Lei de Introdução ao Código Civil, partindo do auxílio literário

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Resumo: O presente texto visa ensinar determinados artigos da Lei de Introdução ao Código Civil, mas com três premissas: primeiramente, um estudo sucinto do direito lato sensu; além disso, uma leitura rápida a respeito da LICC, com comentários a respeito de cada artigo aqui utilizado; por fim, uma análise relacionando a LICC com a literatura – a partir de "O mercador de Veneza", de William Shakespeare; "Frankenstein", de Mary Shelley; e "O pagador de promessas", de Dias Gomes –, incitando ao estudioso do direito a criatividade e até mesmo uma análise crítica. A dogmática somente não basta, um operador do direito precisa ter um diferencial. O artigo, além de ensinar pontos específicos da LICC, resgata a criatividade do leitor, o que pode vir a ser um diferencial.

Palavras-chave: Literatura; lei de introdução; Civil


Introdução

O escopo deste breve esboço de direito civil é explicar a Lei de Introdução ao Código Civil (ou LICC, conforme é informalmente chamada) a partir de três diferentes obras literárias, tentando inicialmente facilitar a compreensão (função didática); alcançar a práxis (função pragmática, embora com criatividade do leitor); exercitar o raciocínio jurídico por meio de textos clássicos (na literatura), inclusive incitando a hermenêutica subjetiva do leitor (função exegética); e tornar mais palpável o enunciado abstrato (graças à Tatbestand, fattispecie ou hipótese normativa) presente na LICC (função compreensiva). As obras são: "O mercador de Veneza", de William Shakespeare; "Frankenstein", de Mary Shelley; e "O pagador de promessas", de Dias Gomes.

Ainda assim, um enunciado restrito à LICC não é muito amplo. Diversos livros da literatura auxiliam na compreensão do Direito lato sensu. Os estudos, inclusive, cada vez mais intensos sobre a relação direito-literatura, ressaltam este fato.

Apesar desta novidade, nada afasta a necessidade do conhecimento da dogmática. Esta, invariavelmente, mostra-se importante, pois subsidiárias são as elucubrações literárias – insuficientes sem a ciência em si. Por outro lado, a ciência jurídica, per si, também é insuficiente, tendo em vista a dinâmica realidade social que nos é apresentada.

O capítulo inicial tenta dar o impulso necessário para a compreensão dos temas específicos, a partir da chamada teoria (geral) do direito, e, logo depois, relacionando ao direito civil. No capítulo dois, são vistos aspectos gerais da LICC para, no terceiro, estudar cada artigo que aqui interessa. Como ela é uma lei extensa, mesmo se contar apenas os artigos referentes ao direito civil (não de direito internacional privado – vide infra), são tomados apenas os artigos (e partes de artigos) que aqui interessam, e é feito um breve comentário a respeito do artigo – afinal, a dogmática ainda é indispensável.

Vejamos, antes de começar a essência deste estudo, exemplos de reflexões jurídicas a partir de temas cuja essência não é (ao menos unicamente) do direito.

Niklas Luhmann, renomado sociólogo alemão, formula uma teoria de que os (sub)sistemas sociais estão isolados no espaço, ou seja, existem no ambiente mas não se enxergam uns aos outros (o direito não enxerga a política, a religião, etc.). Todos os subsistemas possuem um código binário próprio e característico (no caso do direito, um código binário legal/não-legal). O exame dos casos que necessitam do direito seria visto com uma legalidade em conformidade para com o código binário legal/ilegal, que é o que rege o funcionamento do sistema jurídico. A teoria, embora tenha um viés, a priori, fechado, por trás apresenta uma idéia mais complexa. Conforme enuncia o próprio autor, "trata-se (, em seu estudo,) de localizar (...) o direito através de sua função". [01] Propositalmente, Luhmann une o direito e a sociologia, demonstrando e evidenciando uma relação.

A filosofia também possui encaixe com o direito. O estudo dos paradigmas, e. g., segundo Celso Ludwig: Thomas S. Kuhn foi o original elaborador do conceito de paradigma, mas ele "não se preocupa em definir objetivamente o conceito de paradigma. Porém, utiliza-o para explicar que a transformação do conhecimento científico não cresce de modo cumulativo e contínuo." [02] Na jusfilosofia, são três os paradigmas em sentido amplo: jusnaturalismo, positivismo jurídico e pós-positivismo jurídico. Outra evidência do direito relacionado a temas que não essencialmente jurídicos. Ambos, por sinal, auxiliam em uma compreensão de qualidade da ciência jurídica, que é o objetivo de qualquer estudo.

Esta fala se deu, prioritariamente, para mostrar que é possível explicar o direito a partir de realidades que o cercam, sejam elas a sociologia, a filosofia, ou até mesmo a literatura. O momento não é oportuno para um aprofundamento maior destas teorias, quiçá em outra oportunidade o façamos.

O próximo passo é uma dogmática inicial a respeito da teoria do direito, para dar o impulso necessário para o alcance da LICC, e a relação literária que se pretende – o método, no caso, se inicia do simples para o mais complexo e abstrato.

Iniciemos, portanto.


Capítulo I – Impulso da Teoria do Direito

Como dito, é necessário ter como impulso inicial a teoria do direito. O motivo é explicitar que a Lei de Introdução ao Código Civil está inserida no Código Civil, e este, por sua vez, no Direito – e é aí que a teoria do direito auxilia. A título comparativo, de que adiantaria estudar Teoria do Crime sem entender os princípios regentes do Direito Penal? Mais que isso: como se estudar o Direito Penal sem ter antes um mínimo de introdução ao Direito?

I.1. Tentativa de conceituação.

Logicamente, é vã. Apesar de nenhum doutrinador ter chegado a um conceito completo, as tentativas devem ser apreciadas e estudadas.

Procurando em um dicionário jurídico, como o de Deocleciano Torrieri Guimarães, o verbete direito é explicado como:

Ciência que sistematiza as normas necessárias para o equilíbrio das relações entre o Estado e os cidadãos e destes entre si, impostas coercitivamente pelo Poder Público. Universalidade das normas legais que disciplinam e protegem os interesses ou regulam as relações jurídicas. (...) O direito objetivo (jus norma agendi) recebeu a seguinte definição de Miguel Reale (e é este que nos interessa no momento): ‘Vinculação bilateral imperativo-atributiva da conduta humana para a realização ordenada dos valores de convivência’. [03]

Tentativa, não muito mais que isso.

Um leitor mais atento pode questionar o motivo para tentar conceituar o Direito, algo que mesmo os maiores doutrinadores não conseguiram. De nada adiantaria estudar a Lei de Introdução ao Código Civil sem estabelecer uma relação com o Direito lato sensu, e para isso, é mais lógico iniciar pela conceituação. O conceito, por si só, já fornece um grande esclarecimento a respeito de qualquer tema – mesmo que um conceito insuficiente (o que necessariamente é o caso), gera reflexão, a partir do momento que estudado.

I.2. Direito e direito civil

Logo no primeiro ano da faculdade, ao estudante é apresentada a clássica divisão entre direito público e privado, e diz-se que o direito civil está no setor privado.

Para Maria Helena Diniz, "o direito civil é (...) o ramo do direito privado destinado a reger relações familiares, patrimoniais e obrigacionais que se formam entre indivíduos encarados como tais, ou seja, enquanto membros da sociedade" [04].

Já segundo Francisco Amaral, "direito civil é o conjunto de princípios e normas que disciplinam as relações jurídicas comuns de natureza privada (...), é o direito que regula a pessoa, na sua existência e atividade, a família e o patrimônio" [05].

Passemos à LICC propriamente dita.


Capítulo II – A Lei de Introdução ao Código Civil

Antes de se fazer a relação da LICC com a literatura aqui selecionada, é necessário uma introdução, mesmo que básica. O escopo não é primordialmente ensinar a LICC (embora seja isso também uma conseqüência direta), mas abrir caminho a novos métodos de estudo e reflexão. Manuais e Códigos comentados nada acrescem quanto à produção de conhecimento, ensinam a matéria, mas não ensinam a pensar a matéria – e as duas atividades serão aqui feitas.

II.I. A (atual) LICC

"Tal como ocorre com o Código civil alemão, o brasileiro tem, na atualidade, uma Lei de introdução, que, como a daquele, o acompanha" [06].

No Brasil hodierno, está vigente o Decreto-lei n. 4657/42, que institui a atual LICC, e que revogou a antiga LICC n. 3071/16.

O Decreto-lei n. 4657/42 foi publicado no Diário Oficial da União em 1942, retificado um mês depois da publicação, e novamente alguns meses depois.

É interessante também notar que ela é válida de modo amplo, ou seja, por ser um agrupamento de normas que se refere a outras normas, rege questões importantes a todas as normas, como o início da sua vigência. Assim, ainda que anexa ao Código Civil, é um conjunto autônomo de leis, com caráter universal e aplicação a todos os ramos do direito.

Ainda assim, não é uma lei introdutória ao Código Civil, afinal, refere-se a normas de direito lato sensu, não apenas a normas de direito privado. Por ter como abrangência todos os discursos legais, é uma lei de introdução às demais leis.

Assinala Maria Helena Diniz:

É uma Lex legum, ou seja, um conjunto de normas sobre normas, constituindo um direito sobre direito (...), um superdireito, ou melhor, um direito coordenador de direito. Não rege, portanto, as relações da vida (ao menos diretamente), mas sim as normas, indicando como aplicá-las, determinando-lhes a vigência e eficácia, suas dimensões espácio-temporais, assinalando suas projeções nas situações conflitivas de ordenamentos jurídicos nacionais e alienígenas, evidenciando os respectivos elementos de conexão determinantes das normas substantivas, deste ou daquele outro ordenamento jurídico (...). [07]

Didaticamente, os autores de direito civil partem a LICC em duas partes: a primeira, de interesse nesta disciplina, por regulá-la mais que a segunda parte, refere-se do artigo 1º ao 6º; e a segunda, que a maioria dos doutrinadores de direito civil não tratam, vale do artigo 7º ao 19, e seu tema prioritário é o direito internacional privado. Fica como opção do civilista tratá-la, ou não.

Seus dois primeiros artigos tratam da vigência das leis, da vacatio legis, da eficácia das normas e quanto ao vigor das normas; o art. 3º trata da inalegabilidade da ignorantia iuris; o art. 4º prevê utilização de analogia em caso de lacunas, além de outros recursos (costumes e princípios) em situação de omissão legal; o art. 5º adianta os critérios de hermenêutica na aplicação; o art. 6º regula a solução de casos de conflito de normas no tempo, para garantir segurança (em casos de ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada); por fim, o art. 7º e seus seguintes, até o 19, tratam de uma disciplina específica, conforme já dito, que é o direito internacional privado (basicamente, quando ao conflito de normas no espaço)

A restrição que a LICC se impõe é a descrição das linhas iniciais do ordenamento jurídico; ou seja, a LICC, ao estabelecer os princípios regentes de todas as outras normas que a cercam, evidencia que a sua limitação é a temática normativa, apesar da aplicação geral. Deste modo, não seria plausível à Lei de Introdução tematizar diretamente sobre um tema de direito material, pois não cabe a ela esta regulação, mas sim ao Código Civil, que recebe grande espaço para tal encargo jurídico.

No capítulo seguinte, os principais artigos comparados com a literatura são rapidamente explicados, para iniciar o trabalho de nexo.


Capítulo III – Os artigos da LICC que interessam ao estudo – breves comentários [08]

Novamente, aqui consta a dogmática, necessária e sempre presente, em seu auge neste texto. Abaixo, rapidamente, constam os artigos e sua interpretação, mas apenas os que interessam ao trabalho. O art. 1º, e.g., possui a mesma importância que o art. 6º para os aplicadores do direito, mas aqui não será estudado e comparado com a literatura.

III.I. Artigo 2.º

Art. 2.º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique e revogue.

Comentário: A lei pode ter caráter definitivo, ou seja, sua duração não é determinada por um prazo, ou pode ter vigência temporária, valendo para uma margem de tempo predeterminada.

O caput utiliza o termo "revogação". Os Códigos de outros países também tratam desta matéria. Segundo o Código da Argentina, em seu art. 17, "Las leyes no pueden ser derogadas en todo ó en parte, sinó por otras leyes. El uso, el costumbre ó práctica no pueden crear derechos, sino quando las leyes se refieren a ellos". Na Guatemala, no art. 6º de seu Código, "Contra a observância da lei não se pode alegar desuzo, costume ou prática em contrário". Por fim, no art. 7º do Código venezuelano, "Las leyes no pueden derogarse sino por otras leyes; y no vale alegar contra su observancia el desuso, ni la costumbre o práctica en contrario, por antiguos y universales que sean". A revogação, segundo vários doutrinadores, afirma que a revogação é um ato que faz com que outra lei cessa sua existência, no todo ou em parte, ou seja, é quando uma lei validada a posteriori retira a eficácia de uma lei validada anteriormente. Quando a cessação se dá inteiramente, ocorre a chamada ab-rogação (revogação total), e, quando a revogação é parcial, o termo usado é derrogação. Além disso, existe a classificação de revogação expressa e revogação tácita. "A revogação expressa é, algumas vezes, singular, taxativa, e refere-se especialmente à disposição abolida; noutras, porém, é geral, compreensiva, e aplica-se a todas as disposições contrárias, sem individualização." [09] A revogação tácita é a situação em que uma lei, por apresentar antinomia com relação a outra, anterior, faz com que esta deixe de viger, sem apresentar, entretanto, menção (ao menos escrita formalmente) para tanto. De modo geral, a expressão usada é "revogam-se as disposições em contrário". Também existe a chamada "revogação de fato", que é quando a lei entra naturalmente em desuso na sociedade.

§ 1.º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Comentário: Na primeira situação, o legislador trata da revogação expressa, enquanto que, no segundo caso, a revogação citada é a tácita (vide supra).

§ 2.º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

Comentário: No caso em questão, o que ocorre é que a lei nova acaba complementando as anteriores, sem, entretanto, modificá-las.

III.II. Artigo 3.º

Art. 3.º Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.

Comentário: Na realidade, o artigo trata de um princípio básico do direito. "Do exposto se dá conta do relevante papel que a publicação desempenha na obrigatoriedade da lei." [10] É conhecido como o princípio da inalegabilidade da ignorantia iuris, ou seja, não é possível a um sujeito alegar que, por desconhecimento (ou ignorância) de determinada lei, não a cumpriu. É um subterfúgio não admitido pelo direito.

Alguns autores, entretanto, tentam trazer uma visão mais crítica. Segundo Paolo Grossi, o direito aparece para os indivíduos como algo que vem do alto e de longe, um comando que lhe aparece. Diz Grossi:

Tudo isso transforma o direito para o homem comum numa realidade comum, e, em todo caso, numa realidade estranha, que ele sente como enormemente distante de si e de sua vida. Com um resultado que é duplamente negativo para o cidadão e para o direito: o risco provável de uma separação entre direito e sociedade, ficando o cidadão mais pobre porque lhe escapa das mãos um instrumento precioso do convívio em sociedade, com um direito substancialmente exilado da consciência comum, e ficando o jurista – ou seja, aquele que conhece o direito – relegado a um canto e participando muito pouco da complexa circulação cultural. [11]

Apesar da incontestabilidade desta visão crítica, o direito não pode aceitar a alegação de ignorantia iuris. Primeiramente, seria impossível provar se existia realmente ignorância. Além disso, é dever do cidadão ter um mínimo domínio jurídico do ordenamento que lhe é pátrio. Supondo uma situação de um debate a respeito do tema de aborto. Um indivíduo que inicie sua retórica afirmando que o aborto é crime no Brasil. De fato, o Código Penal, em seus arts. 124-127, localiza o ato do aborto como crime. No entanto, a proibição não é absoluta, pois, segundo o art. 128, o aborto é tido como permitido, desde que a vida do nascituro concorra com a vida da gestante, ou que a consumação da gestação tenha se dado por estupro. Deste modo, ao se alegar que ele é totalmente proibido, o indivíduo está cometendo um equívoco, e demonstra que não possui conhecimento pleno do direito que o rege.

Para provar que é um princípio geral do direito, é possível utilizar, novamente, o direito comparado. A Colômbia, no art. 9º de seu Código, mostra que "La ignorancia de las leyes no sirve de excusa", semelhante no artigo 2º do espanhol, em que "La ignorancia de las leyes no excusa de su complimento". No Código chileno, em seu art. 8º, "No podrá alegarse ignorancia de la lei por ninguna persona, despues del plazo comum o especial, sino cuando por algun accidente hayan estado interrumpidas durante dicho plazo las comunicaciones ordinarias entre los dos referidos departamentos. En este caso dejará de correr el plazo por todo el tiempo que durare la inconmunicacion". Em Portugal, "Ninguem póde eximir-se de cumprir as obrigações impostas por lei, com o pretexto de ignorancia desta, ou com o do seu desuso" (art. 9º). Na Luisiânia, "After the promulgation, no one can allege ignorance of the law" (art. 7º).

III.III. Artigo 4.º

Art. 4.º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Comentário: Sobre este artigo, só com as quinze primeiras palavras já seria possível elaborar um livro, de tão vasto que o tema é. O artigo trata das fontes do direito, e expressa a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito como as fontes formais (ou diretas) do direito. Muitos doutrinadores falam também na doutrina e na jurisprudência como fontes, mas são não-formais (ou indiretas), por serem apenas fontes de fato, não expressas ou positivadas. É necessário que, diante de uma lacuna, o juiz resolva o caso (afinal, o juiz não pode abster-se de decisão) de acordo com as fontes formais do direito que encontrar. É importante lembrar que a lei também é uma fonte, a chamada fonte por excelência do direito.

Novamente, a metodologia de (tentativa de) conceituação é, no mínimo, plausível.

Analogia é um processo em que se tem como embasamento situação semelhante, a qual é utilizada – fazendo-se, logicamente, as alterações necessárias para adquirir coerência – como dispositivo básico justificador de uma decisão, em que a lei se apresenta omissa para decidir.

Costume é a reiteração (repetição) de determinada conduta, uniforme e constantemente, de tal modo que a conduta é encarada como obrigatória. É algo mais presente em países de tradição jurídica costumeira, como a Inglaterra e os EUA (países com sistema chamado "common law"), sendo que, em países de sistema romano-germânico (como o Brasil), o costume é elemento subsidiário. É um "procedimento social reiterado, espontâneo, com a convicção de que é necessário e correto. (...) No Brasil ele está mais presente no Dir. Comercial." [12]

Em relação à lei, o costume pode apresentar-se numa das seguintes categorias: praeter legem, secundum legem e contra legem. No primeiro caso, ele se caracteriza pelo seu cunho supletivo só intervém na ausência ou omissão da lei; no segundo, o preceito, não contido na norma, é reconhecido e admitido com eficácia obrigatória; no terceiro, surge como norma contrária à lei. [13]

O costume, se comparado à lei, oferece vantagens – é flexível, pois pode alterar-se de acordo com sua sociedade –, mas também desvantagens – é mais obscuro, incerto. [14]

Por fim, a última fonte apontada na LICC, em caso de omissão legal, são os princípios gerais de direito. São eles que encaminham o correto entendimento do sistema jurídico lato sensu. "São decorrentes do subsistema normativo" ou "são derivados das idéias políticas, sociais e jurídicas vigentes". "Não são preceitos de ordem ética, política, sociológica ou técnica, mas elementos componentes do direito." São, ainda, dispositivos "de valor genérico que orientam a compreensão do sistema jurídico", positivados ou não. [15] Como exemplos, o rol mais vasto é, indiscutivelmente, a Constituição brasileira. Ela possui incontáveis princípios, mas o critério para estabelecê-los não é taxativo numerus clausus, pois nenhuma positivação encerra as possibilidades. Para dar apenas um exemplo, é possível citar o princípio da função social da propriedade, presente no art. 5º, XXIII (e outros artigos).

III.IV. Artigo 5.º

Art. 5.º  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Comentário: Este é mais um tema vasto que certamente renderia um livro inteiro a ele dedicado. É preciso, ao interpretar este artigo, compreender a intenção do legislador ao elaborá-lo. O aspecto teleológico é, basicamente, os "fins sociais a que ela (a lei) se dirige", além do bem comum. A função social da propriedade (vide supra) é exemplo típico da preocupação com tais fins. O aspecto do bem comum é a ponderação necessária do juiz, os fins sociais devem ser atingidos, desde que no viés de um bem comum. A Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, também tem esta imposição judicial, pois, segundo seu art. 6º, "o juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum". Hermenêutica é um termo essencial: o juiz, para aplicar uma lei, precisa, primeiramente, interpretá-la, ao menos para uma aplicação correta e de acordo com todas as bases teóricas do direito.

Sendo a interpretação um conceito tão essencial, é preciso uma noção mais aprofundada sobre este tema.

Explica Espinola que "procura-se, interpretando a norma jurídica, explicar-lhe o sentido; e, pois, a interpretação, em referência às fontes do direito objetivo [16], vem a ser a declaração precisa do conteúdo e do sentido da norma jurídica." [17] Aduz ainda "que, podendo o direito escrito" – novamente aqui o direito objetivo – "e o direito consuetudinário ter papel e eficácia diversos no ordenamento jurídico positivo de cada povo, os critérios para a respectiva interpretação têm de variar, conforme essa finalidade e essa importância". [18]

No Código Civil português, "A lei que faz exceção às regras gerais não pode ser aplicada a nenhum caso, que não esteja especificado na mesma lei" (art. 11). Na Venezuela, no art. 4º de seu Código, "Cuando se trate de aplicar la ley debe atribuirsele el sentido que aparece evidente del significado proprio de las palavras, según la conexión de ellas entre si y según la intención del legislador". Ainda no mesmo Código, "Las disposiciones contenidas em los Códigos y leyes nacionales especiales, se aplicarán con preferencia a las de este Código em las materias a que ellas se contraigan" (art. 14).

O juiz, na aplicação a que o artigo se refere, pode, quando achar conveniente, recorrer às fontes do direito (vide supra) para explicar ou encontrar os fins sociais. Em outras palavras, as fontes do direito (e.g., a doutrina) podem exercer imensurável auxílio para o juiz encontrar os fins sociais a que a lei se refere. Logicamente, não há doutrina que encerre tal tema, pois a seara jurídico-social não pode ser finalizada em nenhum critério taxativo numerus clausus. A sociedade sempre exerce sobre o direito grande necessidade de dinamicidade, com suas novas demandas, novos problemas e novas exigências. Afinal, que fim teriam os operadores do direito, sem as demandas sociais? Onde estaria o direito, sem os problemas da sua sociedade?

III.V. Artigo 6.º

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

Comentário: A Constituição federal, em seu art. 5º, XXXVI, anuncia preceito semelhante – utiliza a expressão "não prejudicar" ao invés de respeitar.

Após o cumprimento da sua vacatio legis, a lei deve ser aplicada indistintamente – nesse caso, novamente está a consagração (ou simplesmente uma "positivação conforme" [19]) de um princípio constitucional, o da igualdade, perante a lei, descrita no caput do art. 5º da CF –, mas com a ressalva do respeito ao ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

Basicamente, o que ocorre é que, em casos de ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, o efeito é ex nunc, ou seja, ocorre irretroatividade (o oposto é a retroatividade, com efeito ex tunc) [20]. "É retroativa a norma que atinge os efeitos de atos jurídicos praticados sob o império da norma revogada. É irretroativa a que não se aplica a qualquer situação jurídica constituída anteriormente". [21]

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

Comentário: Segundo Maria Helena Diniz, "ato jurídico perfeito é o que já se consumou segundo a norma vigente ao tempo em que se efetuou" [22].

Conforme o art. 104 do Código Civil brasileiro, os requisitos para um ato jurídico ser considerado perfeito são: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei.

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

Comentário: Segundo Maria Helena Diniz, "direito adquirido é o que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular" [23].

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.

Comentário: Maria Helena Diniz explica que "coisa julgada é a decisão judiciária de que já não caiba mais recurso". [24] Diz Eduardo Espinola:

A compreensão generalizada, na doutrina pátria, é de que se considera caso julgado a sententia judicis, de que não caiba recurso algum. Daí, a distinção entre sentença passada em julgado e coisa julgada, ou caso julgado; a sentença se diz que passou em julgado, quando pode ser executada, embora seja ainda suscetível de reforma, por virtude de algum recurso; a coisa julgada, ou o caso julgado, só se tem, quando nenhum recurso, absolutamente nenhum, pode haver, que eventualmente leve a modificá-la; seja embora recurso extraordinário, ou ação rescisória. [25]

Como o tema também é presente no Direito Processual Civil, o CPC não se mostra omisso: no seu art. 467, aduz que "denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário".

E assim fica encerrada a parte dogmática dos aspectos da LICC que serão estudados para relacionar com obras literárias. Que venha a literatura.


Capítulo IV – LICC e a literatura

As três obras aqui utilizadas serão "O mercador de Veneza", de William Shakespeare; "Frankenstein", de Mary Shelley; e "O pagador de promessas", de Dias Gomes.

IV.I. "O mercador de Veneza" e a LICC

Esta é uma história sobre Antônio (o mercador), que pretende ajudar seu amigo Bassânio, o qual deseja viajar para ficar com sua amada Pórcia (nobre rica, que, para ter marido, o pretendente devia resolver um problema de lógica, elaborado pelo pai da moça). Antônio, para tanto, necessita emprestar dinheiro ao amigo, o que não tem. Com isso, pede empréstimo a um judeu agiota, Shylock, que recebia tratamento desumano (de muitos, mas em especial de Antônio), e vê na oportunidade uma vingança. O trato feito com o judeu foi que Antônio deveria pagar no prazo determinado, e, caso não o fizesse, pagaria com uma libra da carne de seu corpo (usando o argumento de que nunca faria isso, que era uma brincadeira). Enquanto Bassânio havia obtido sucesso no pedido de casamento com Pórcia; no mar, os barcos de seu amigo, que eram garantia para o pagamento do empréstimo, eram destruídos. Bassânio, temendo pela vida de Antônio, volta à Veneza, deixando Pórcia esperando-o em seu vilarejo. Pórcia, disfarçada como magistrado, vai à Veneza defender a causa de Antônio. Com um duro e instável julgamento, ela sai vitoriosa e finalmente revela sua identidade, para surpresa de Bassânio. Shylock, portanto, não atinge sua vingança, apesar de muito insistir – como fala "Só reclamo a aplicação da lei, a pena justa cominada na letra já vencida" [26] –, e o amor e a amizade prevalecem no final.

Do ponto de vista jurídico, a parte do julgamento em que Pórcia aparece disfarçada como magistrado, é a mais relevante. O argumento por ela usada para que Shylock não ferisse Antônio foi que o acordo possibilitava tirar carne ("Pertence-te uma libra aqui da carne do mercador; a corte o reconhece, porque a lei o permite" [27]), mas não sequer uma gota de sangue. Diz ela: "(...) Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: ‘Uma libra de carne’. (...) se acaso derramares (...) uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens (...) para o Estado passarão (...)" [28]. Com isso, Shylock acaba aceitando o pagamento posterior. Hoje, no direito, existem métodos de interpretação (gramatical, com exame detalhado do ponto de vista das normas gramaticais; lógica, usando raciocínios lógicos, com deduções e induções; sistemática, que leva em conta o sistema no qual a norma está inserida; histórica, analisando o que a precedeu; e a sociológica ou teleológica, que busca a finalidade da norma), e, analisando o argumento utilizado por Pórcia, pode-se dizer que sua interpretação foi do tipo lógica, ao admitir o que está contido na norma, mas proibindo o que não é permitido (mediante pena), embora não explícito no acordo, mas com argumentos jurídicos. Comparando com a LICC, esta estabelece, em seu artigo 5º, a interpretação sociológica ou teleológica, determinando que as leis devem ser lidas de acordo com os fins sociais para os quais são elaboradas. [29] Esta é a primeira relação.

Apesar de Pórcia afirmar que Shylock não poderia tirar sangue de Antônio, isso não está presente no acordo. Ela apenas apresenta uma pena por tirar sangue de cristão, permitindo o corte. Dessa forma, existe uma lacuna no acordo, que necessitou de integração, conforme prevista na LICC. Nesta, é possível integrar a norma (preencher a lacuna) com analogia – a qual ela utilizou, retomando uma lei de Veneza –, costume – não há relação – e utilização de princípios gerais de direito. No livro de Shakespeare, depreende-se que Pórcia utilizou, além da norma, o princípio (não-escrito, mas subentendido mesmo naquela sociedade) da integridade física do homem – portanto, Shylock podia cortar Antônio (idéia atrelada à pacta sunt servanda, perfeitamente compreensível à época), mas não tirar sangue do mesmo, pois não estava determinado no contrato, e era proibido conforme à lei. Mesmo que o princípio não houvesse, podemos considerar que foi o uso da equidade (uso de bom senso) que norteou o falso magistrado, pois o agiota estaria agredindo o mercador. A equidade não está prevista na LICC, mas é evidentemente utilizada em casos concretos por parte do juiz, inclusive presente na doutrina.

Por fim, está presente, no mesmo ciclo, uma antinomia (lei particular do acordo, que permitia a Shylock cortar Antônio versus lei geral de Veneza, que não permitia tirar sangue judeu, sob pena de perda dos bens para o Estado). Logicamente, era impossível a Shylock cortar Antônio sem tirar sangue – daí a antinomia. As antinomias podem ser aparentes (que são solúveis a partir das próprias normas do ordenamento), ou reais (quando não há critério normativo para a solução, necessitando, portanto, de nova norma) [30] – ressaltando que, conforme estabelece Norberto Bobbio, existem critérios para resolução de antinomias aparentes, que são o cronológico (lei posterior derroga lei inferior), o hierárquico (lei superior derroga lei inferior) e o da especialidade (lei especial derroga lei geral). [31] Pórcia usa o critério hierárquico, pois a lei de Veneza impera frente à determinação do acordo.

IV.II. "Frankenstein" e a LICC

Frankenstein conta a história de Victor Frankenstein, estudante de medicina que, revoltado pela morte de sua mãe, isola-se das outras pessoas e burca a imortalidade. Com isso, deu vida a uma criatura que montou, a partir de partes de pessoas mortas – portanto, a criatura tem marcas profundas das cirurgias. A criatura não recebe nome de seu criador e, graças a isso, e graças à sua assustadora forma, não consegue relacionar-se com as outras pessoas, sentindo profunda tristeza, como quando diz "Maldito criador! Por que vivi?" [32]·. O estudante abandona a criatura (graças ao nojo e o medo que sente da mesma) e esta, sozinha, esconde-se, aprendendo muito a partir da leitura de diversos livros. A criatura passa a adotar o nome de seu criador (Frankenstein), e pede ao seu criador que criasse para ele uma companheira. Com a negativa, ele decide matar as pessoas mais próximas e Victor (amigos, irmão e noiva), e consegue. O criador tenta caçar o monstro para matá-lo, mas Frankenstein se jogou em uma fogueira para afogar sua mágoa e tristeza. Victor, também consternado, e não sabendo que a criatura cometera suicídio, e temendo morrer no lugar dela, diz "Sua alma é tão infernal quanto sua figura, cheia de traição e perfídia" [33].

Para estabelecer a relação com o direito e, em especial, com a LICC, é necessário um mínimo de criatividade. Supondo que fosse possível aos homens criar outros monstros como Frankenstein, não apenas uma, mas várias criaturas. Além disso, se as criaturas quisessem interagir com a sociedade – nesse caso, seria necessária uma regulamentação mínima. Como não haveria, ab initio, tal regulação, haveria, portanto, uma lacuna. Em caso de lacuna, a LICC estabelece, em seu artigo 4ºٰ que, em caso de "lei omissa" (lacuna), a decisão se daria a partir de analogia, costume ou princípios gerais do direito. Era necessária, assim, integração (preenchimento de lacunas com normas individuais).

Se a integração se desse por meio de analogia, o que seria mais conveniente: legislação de proteção aos animais, ou os direitos humanos e fundamentais? Em caso de costume, não há possibilidade de ligação. Quanto aos princípios gerais do direito, talvez os direitos humanos coubessem. Ainda assim, a equidade (vide supra) fosse a mais adequada, neste tipo de lacuna. Apesar de ser uma relação de extrema ficção, não está tão distante da realidade, afinal, há pouco tempo atrás não era cabível imaginar o controle do sexo e outras características de um embrião, cura para doenças como tuberculose, telefone celular, a clonagem de animais, entre outras novidades inimagináveis anteriormente. Deste modo, apesar de irreal hodiernamente, não é tão absurdo um esforço para imaginar a situação e enquadrá-la no cenário acima descrito.

Outra possibilidade também seria a seguinte: supondo uma realidade em que a criação de seres como Frankenstein fosse comum, e o assassinato de um destes seres fosse considerado homicídio, encarando-os analogamente como seres humanos. Nesse caso, imaginando que determinado indivíduo alegasse não saber que matar uma criatura fosse ilícito, estaria atingindo diretamente o art. 3º da LICC, que é o princípio da inalegabilidade da ignorantia iuris (vide supra), ou seja, ele não poderia alegar desconhecimento de uma lei, para explicar uma fuga à mesma.

IV.III. "O pagador de promessas" e a LICC

"O pagador de promessas" é a história de Zé-do-Burro, um homem simples que tem alta estima por seu animal de "estimação", um burro (por isso Zé é assim apelidado), chamado por ele de Nicolau. Certo dia, o burro fere-se com um galho de árvore que na sua cabeça cai, e seu dono fica preocupadíssimo, decidindo fazer uma promessa para que o animal sarasse. Zé decide que, se o burro sarasse, ele daria parte de suas terras às pessoas mais necessitadas, e que levaria uma cruz tão pesada quanto à de Cristo até o altar de uma igreja de Santa Bárbara. Como a cidade de Zé não tinha a igreja desta santa, ele faz a promessa em um terreiro de candomblé, onde Santa Bárbara é conhecida como Iansan. Como o animal melhorou, Zé divide suas terras, e começou a caminhada de quarenta e dois quilômetros carregando a cruz, seguido por sua esposa Rosa, até chegar à igreja de Salvador. Chegaram no dia de Santa Bárbara de madrugada, cansados e com fome. Ao amanhecer, o padre chega e vê Zé e sua cruz nas escadas da igreja, e soube que a promessa foi feita para Iansan em um terreiro de candomblé, para curar o burro. Assim, o padre não aceitou receber Zé e sua cruz, acusando-o de herege e de culto ao demônio. "Um ritual pagão, que começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na nave de uma igreja!" [34]. O padre só abriria as portas quando Zé desistisse e fosse embora. Zé estava decidido a cumprir a promessa, e não iria sair. Ao final, com a notícia correndo graças a um repórter sensacionalista, aumentando o fato, envolvendo até política, chega um delegado, que vai prender Zé. Este, assustado, não aceita, alegando inocência e decidido a cumprir a promessa, resistindo à prisão e dizendo que de lá só sairia morto. "Agora eu decidi: só morto me levam daqui. Juro por Santa Bárbara, só morto" [35] . Com uma confusão entre todos no ambiente, Zé é ferido mortalmente. Os policiais foram embora, o padre ficou arrependido e com sentimento de culpa, e as pessoas da rua levaram o corpo de Zé sobre a cruz até dentro da igreja. Existem outros fatos na história, envolvendo Rosa e Bonitão, um gigolô, mas que aqui não serão relevantes.

Supondo que a igreja, por norma (direito canônico), determinasse que aceitava promessas do candomblé, e supondo que as normas da igreja fossem regidas pela LICC. Nesse caso, haveria retroatividade?

A LICC determina, em seu art. 6º, que a regra geral é a irretroatividade (ou seja, as leis novas são feitas para regulamentar situações futuras, não admitindo que regulem fatos pretéritos), a não ser que seja determinado no ato retroatividade, desde que respeitados o ato jurídico perfeito (§1º) – "o que já se consumou segundo a norma vigente ao tempo em que se efetuou" –, o direito adquirido (§2º) – "que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular" – e a coisa julgada (§3º) – "decisão judiciária que já não caiba mais recurso" [36] .

Analisemos se o caso de Zé-do-Burro se encaixa em alguma destas situações, para fins de entendimento dos três casos de admissão de retroatividade respeitando as três possibilidades. Seria ato jurídico perfeito se Zé já houvesse chegado à cidade, e recebido a negativa do padre, não possibilitando retroatividade. Se, ao contrário, não chegasse à cidade, não seria ato jurídico perfeito, admitindo retroatividade. Não há encaixe com o direito adquirido. Quanto à coisa julgada, se Zé já tivesse ouvido o padre (considerando o padre um juiz, que já tivesse dado sua palavra final), seria coisa julgada, não sendo possível retroatividade. Por outro lado, se Zé ainda não tivesse ouvido o padre, não seria coisa julgada, admitindo retroatividade.


Conclusão

Embora, a priori, as relações acima estabelecidas assustem um leitor mais conservador e acostumado com a dogmática estrita, uma das idéias deste ensaio é justamente abrir a mente do mesmo. A lei, e consigo sua hermenêutica, não deve ser levada ipsis litteris, e o jurista deve ter em mente que são necessárias criatividade e inteligência para lidar competentemente com a ciência jurídica. Ad tempus, a idéia de relacionar o plano legislativo com o plano literário (portanto fictício) parece fugir demasiadamente à realidade – e foge, mas o direito já é repleto de abstrações diversificadas: o caráter deontológico do direito (o "dever-ser" do direito) garante abstrações. As abstrações, por conseguinte, geram vagueza e ambiguidade [37], entre diversos outros fatores, que possuem grande rendimento na pesquisa, em especial em direito constitucional (pela abstração demasiada dos princípios).

Ainda assim, pari passu, esses recursos auxiliam uma compreensão de qualidade da abstrata Lei de Introdução ao Código Civil, sob o prisma, principalmente, dos artigos comentados.

O objetivo parece ter sido cumprido (vide introdução) e, apesar de a relação entre o direito e a literatura parecer esdrúxula, de certa forma é essa a idéia: chamar a atenção, facilitar o entendimento de forma que possa entreter, e ajudar em uma produção de conhecimento. Através da metodologia da tripartição lógica do trabalho – a primeira parte, com considerações a respeito do direito e da própria LICC, em caráter amplo; a segunda parte, com comentários dos artigos utilizados, ainda sem grandes elucubrações; e, por fim, o exercício abstrato de relacionar o direito com a literatura. Exercício, aliás, sem grau de concretude, mas propositalmente. O aprendizado da dogmática estrita é por muitos alcançado, mas é necessário ter um diferencial, e aí está um possível papel para a criatividade.

Mais que isso: os três livros abordados, de caráter extremamente diferente (uma história medieval clássica, um terror famoso, e uma peça brasileira, de grande importância no território nacional), são apenas exemplos. O ideal seria que, após encerrar a leitura deste artigo, todos pudessem exercer sua criatividade e relacionar o direito – não apenas a LICC, mas outros ramos também – a outros gêneros literários, como a ficção e até mesmo a poesia.

Ensinar um jurista é incitar produção de conhecimento, não bitolá-lo e fechar sua mente. Como diz a famosa frase shakespeariana: "As possibilidades do universo do texto são infindáveis".


Bibliografia

AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6. ed., rev., atual., e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

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ESPINOLA, Eduardo. A Lei de introdução ao Código civil brasileiro: (Dec.-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, com as alterações da Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957, e leis posteriores) comentada na ordem de seus artigos. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

GOMES, Alfredo Dias. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

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GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário técnico jurídico. 10. Ed. São Paulo: Rideel, [s.d.].

LUDWIG, Celso. Para uma Filosofia Jurídica da Libertação: Paradigmas da Filosofia da Libertação e Direito Alternativo. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.

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SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Martin Claret, 2001.


Notas

  1. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Pág. 109.
  2. LUDWIG, Celso. Para uma Filosofia Jurídica da Libertação: Paradigmas da Filosofia da Libertação e Direito Alternativo. Pág. 23.
  3. GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário técnico jurídico. 10ª ed. Pág. 259.
  4. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 26ª ed. Pág. 47.
  5. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6ª ed. Pág. 107.
  6. ESPINOLA, Eduardo. A Lei de introdução ao Código civil brasileiro: (Dec.-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, com as alterações da Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957, e leis posteriores) comentada na ordem de seus artigos. 3ª ed. Pág. 5.
  7. DINIZ, M. H. Obra citada. Pág. 59-60.
  8. Neste capítulo, serão apresentados e traduzidos apenas os artigos (incluindo caput, incisos, alíneas e parágrafos) que aqui interessarem ao estudo, conforme já dito. Uma parte de um artigo que não interessa será ignorado. Além disso, a formatação se dá com a transcrição do artigo, e um breve comentário explicativo. Além disso, quando possível será feita uma breve exposição de direito comparado, mostrando, quando possível, similitudes brasileiras com relação a alguns outros países.
  9. ESPINOLA, E. Obra citada. Pág. 61
  10. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v. 1: parte geral. 42ª ed. Pág. 28.
  11. GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Pág. 2.
  12. GUIMARÃES, D. T. Obra citada. Pág. 221.
  13. MONTEIRO, W. de B. Obra citada. Pág. 21.
  14. MONTEIRO, W. de B. Idem. Pág. 21.
  15. DINIZ, M. H. Obra citada. Pág 80-82.
  16. Direito objetivo é o direito posto, ou seja, aquele que está escrito, o que deve ser seguido. É conceito que se opõe ao direito subjetivo. Esta é uma noção indispensável em direito civil, juntamente com relação jurídica e situação jurídica.
  17. Quanto ao direito subjetivo, para Savigny e Windscheid, é o poder da vontade que a ordem jurídica reconhece – esta é a chamada doutrina voluntarista. No entanto, há um equívoco, pois existem direitos em que a vontade do titular inexiste (como no caso de direitos do nascituro). A segunda doutrina – chamada doutrina do interesse –, de Ihering, defende que o direito subjetivo é o interesse juridicamente tutelado por um ordenamento. Possui também objeções, já que existem direitos em que não há interesse do titular, como em casos de tutela. Por fim, existe a chamada teoria mista, de Jellinek e Saleilles, que ensina que o direito subjetivo é o poder da vontade admitido e tutelado pelo direito – noção que recai nos mesmos problemas.

    Em suma, o direito subjetivo é uma faculdade que o sujeito tem, admitida e regulamentada pelo direito objetivo.

    segundo conceito, da relação jurídica, é o nexo reconhecido juridicamente entre indivíduos (ou grupos de indivíduos), imputando-lhes direitos e obrigações. Por fim, o terceiro conceito, também importante, é o da situação jurídica, que é um agrupamento de direitos e obrigações imputados a determinadas pessoas.

    Para informações detalhadas, vide Francisco Amaral, op. cit.

  18. ESPINOLA, E. Obra citada. Pág. 140.
  19. ESPINOLA, E. Idem. Pág. 141.
  20. A expressão "positivação conforme" está sendo utilizada em analogia à expressão "interpretação conforme". Enquanto esta é doutrinariamente entendida como a situação em que o juiz, diante de uma legislação infraconstitucional, a encara e a aplica de acordo com a CF, ou seja, é quando o juiz interpreta legislação ordinária de acordo com o viés constitucional. Por outro lado, aqui utiliza-se a expressão "positivação conforme", pois há concordância entre o direito positivado no artigo da LICC e a CF.
  21. Novamente, questões de retroatividade e irretroatividade, por si só, renderiam um livro. Segundo Roubier, os efeitos de uma lei são dois: o efeito retroativo, que consiste na aplicação concreta da lei a um caso pretérito; e o efeito imediato (ou irretroativo, como é mais consagrado hodiernamente), que é a aplicação em um caso presente.
  22. DINIZ, M. H. Obra citada. Pág. 101.
  23. DINIZ, M. H. Idem. Pág. 101.
  24. DINIZ, M. H. Idem. Pág. 101.
  25. DINIZ, M. H. Idem. Pág. 101.
  26. ESPINOLA, E. Obra citada. Pág. 281.
  27. SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. Pág.130.
  28. SHAKESPEARE, W. Idem. Pág. 135.
  29. SHAKESPEARE, W. Idem. Pág. 136.
  30. DINIZ, M. H. Obra citada. Pág. 66-69.
  31. DINIZ, M. H. Idem. Pág.87-88.
  32. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. Pág. 228-242.
  33. SHELLEY, Mary. Frankenstein. Pág. 130.
  34. SHELLEY, M. Idem. Pág. 194.
  35. GOMES, Dias. O pagador de promessas. Pág. 38.
  36. GOMES, D. Idem. Pág. 94.
  37. DINIZ, M. H. Obra citada. Pág. 101.
  38. Existem, inclusive, teses que tratam destes temas, exclusivamente, a nível de pós-graduação.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANASSÉS, Diogo Rodrigues. Direito, literatura e a Lei de Introdução ao Código Civil. Um estudo reflexivo-comparativo acerca do Direito e da Lei de Introdução ao Código Civil, partindo do auxílio literário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2329, 16 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13845. Acesso em: 29 mar. 2024.