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Desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público.

Incompatibilidades com o sistema jurídico brasileiro

Desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Incompatibilidades com o sistema jurídico brasileiro

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo a análise do Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, situando-o e observando-o nos sistemas de normas e regras brasileiras, em especial, avaliando sua congruência e adequação com os mesmos. Discorre sobre a relação Constituição e Supremacia do Interesse Público e tece considerações sobre sua possibilidade e viabilidade. Faz considerações sobre o Princípio em comento e sua adequação com outros postulados, axiomas e princípios diversos. Agride-o por sua origem, em verdade, autoritária e vinculada ao ‘Antigo Regime’. Elenca casos concretos relevantes e singulares, que tratam dos assuntos propostos. O artigo tem como principais referencias teóricos: Alexandre Santos de Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila, Paulo Ricardo Schier.

PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Supremacia do Interesse Público; Postulado da Ponderação; Proporcionalidade; Inconstitucionalidade; Filtragem Constitucional.


INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objetivo questionar um dos "princípios" base do Direito Administrativo, o da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular. Para tanto, questiona-se: De fato, trata-se de um princípio no seu sentido técnico? A Supremacia do Interesse Público é compatível como o sistema de normas e regras? Há constitucionalidade, quando da sua aplicação clássica?

Essas perguntas são de vital importância para se bem compreender o objeto desse trabalho.

Com o objetivo de respondê-las satisfatoriamente, consultaram-se decisões de nossos tribunais e, até mesmo, fatos históricos relevantes, bem como os mais balizados autores que, corajosamente, enfrentam o assunto com muita propriedade e dedicação.

O estudo proposto foca, em especial, as lições de Alexandre Santos de Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila, Paulo Ricardo Schier, sem, no entanto, deixar de citar outros autores, cuja posição é oposta ao que se quer defender nesse artigo.

Antes de adentrar nas especificidades do tema, parece necessário descrever de forma sucinta os conceitos básicos envolvidos: Direitos Fundamentais, Interesse Público e o entendimento clássico do princípio questionado.

Feito isso, e definidos os elementos com que se iria laborar, passa-se a agredir a ideia de supremacia do interesse público por vários ângulos distintos.

Questiona-se sobre a constitucionalidade das decisões, cuja escolha, no caso concreto, se dá de antemão em prol do - por muitas vezes - suposto interesse público. Sugere-se que a questão da constitucionalidade seja tratada por um prisma que coloca o cidadão e suas garantias básicas em primeiro plano, tal como faz nossa Carta Magna.

Em outro ponto do trabalho, o foco é determinar se há adequação do princípio ora estudado com o sistema normativo brasileiro, em especial, com a Constituição e a lógica dela decorrente. A harmonia do sistema também é verificada por comparação com outros princípios do Direito. Na linguagem da Teoria Geral do Direito, adequação com axiomas, postulados (ponderação, proporcionalidade, razoabilidade) e normas-princípios. Tal ponto é tratado fundamentalmente com lições de Humberto Bergmann Ávila.

No mesmo sentido, vários outros autores – agora com outros argumentos – também tratam da relação do princípio em comento com os princípios (postulados para Bergmann) da proporcionalidade e ponderação.

Ademais, diferentemente de outros trabalhos sobre o assunto, também se questiona a origem e consequente vício do princípio ora atacado. Observadas, portanto, questões pertinentes à origem e a fatos históricos ligados ao nascimento do Direito Administrativo, e a consequente legitimação e fundamentação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Assim, o assunto é abordado por vários enfoques.


1 CONCEITOS BÁSICOS

O presente tópico tem por função explicar de forma concisa os conceitos que irão ser trabalhados neste ensaio: Direitos Fundamentais, Interesse Público (Primário e Secundário) e Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado.

1.1.DIREITOS FUNDAMENTAIS

Em pesquisa sobre o assunto, propõe Alexandre de MORAIS, como "adequado conceito de direitos humanos fundamentais, o conjunto de direitos e garantias do ser humano, com o objetivo de respeito a sua dignidade e o estabelecimento das condições mínimas de vida, através da proteção contra o abuso do poder estatal" [01].

O ilustre autor utilizou-se do termo "direitos humanos fundamentais", mas, para esclarecer, em que pese sejam ambos os termos – direitos fundamentais e direitos humanos – comumente utilizados como sinônimos, há distinção entre ambos. O primeiro termo, "direito fundamental", é aplicado para aqueles direitos do ser humano descritos em uma constituição, o segundo, "direito humano", guarda relação com o direito internacional, é reconhecido de forma universal, por todos os povos, não guardando relação alguma com um caráter nacional (constitucional interno), ou seja, independe de uma vinculação com determinada ordem constitucional [02].

1.2 DO INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO

O interesse público não se configura como conveniência egoística da Administração Pública. O interesse secundário (Alessi) ou interesse da Administração Pública não é público. O Estado, segundo Marçal JUSTEN FILHO, não possui interesses qualitativamente similares aos interesses dos particulares, pois não foi instituído para buscar satisfações similares às que norteiam a vida dos particulares [03].

Nesse contexto, o professor Celso Antonio Bandeira de MELLO ensina: o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem [04].

Com tal acepção, o professor Bandeira de MELLO pretende demonstrar a linha tênue existente entre o interesse público e o particular e, ao mesmo tempo, corrigir dois conceitos. São eles: o conceito de que o interesse público está desvinculado do interesse particular e que, em decorrência disto, não poderia o particular, individualmente considerado, defender aquele primeiro interesse; e o segundo, o que afirma a necessária coincidência entre o interesse público (primário) e o interesse imediato do Estado (secundário).

Assim como os particulares, o Estado apresenta interesses que são tão somente seus (interesse público secundário) e que em nada coadunam com o interesse público propriamente dito (primário). O mestre Celso Antônio Bandeira de MELLO ainda afirma;

[...] independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais [05] [...].

Não iguais, segundo o ilustre doutrinador, porque os particulares podem defender tais interesses intrínsecos à sua personalidade, quando bem entenderem, enquanto que o Estado somente os poderá tutelar quando não forem contrários ao dito interesse público primário e quando com este possuírem coesão. Renato ALESSI possui o mesmo entendimento quando elucida "(...) os interesses secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente ditos [06]".

É o que o mesmo ALESSI, de outra forma explica: " La peculiaridad de la posición jurídica de la Administración pública radica precisamente en esto, en que su función consiste en la realización del interés colectivo, público, primario [07]".

Com tal noção de interesse público primário e secundário, estaria, por exemplo, o Estado agindo segundo um interesse secundário, quando fechasse uma creche ou um posto de saúde com o simples intuito de diminuir despesas. De outra forma, estaria agindo na defesa de um interesse primário, quando abrisse creches e postos de saúde, pois aí estaria garantindo direitos fundamentais como educação e saúde. Ou ainda, noutro exemplo estampado por ALESSI, caso a Administração reduzisse ao mínimo possível o salário do funcionalismo e aumentasse ao máximo possível os impostos, com finalidade de maior arrecadação (interesse secundário ou do aparato); do contrário, o interesse público (primário) exige, respectivamente, que os funcionários sejam pagos suficientemente, a fim de que seus serviços sejam eficazes, e que aos cidadãos não sejam impostas altas cargas tributárias, mas sim, que sejam limitadas de forma proporcional às contraposições ofertadas pelo Estado [08].

Sendo assim, o Estado, quando da prática de atos fundados tão somente em um interesse secundário, deixando de lado aquele outro interesse, verdadeiramente coletivo (primário), além de agir como se particular fosse, portar-se contra o regime jurídico administrativo e a ordem constitucional.

O que se quer com o presente tópico é afirmar que o "princípio" da supremacia do interesse público – se é que existe – apenas tutelaria o dito interesse público primário. Quanto a isso não há discussão doutrinária pátria.

1.3.PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

Hely Lopes MEIRELLES conceitua o princípio em questão na sua forma clássica:

Interesse público ou supremacia do interesse público – Também chamado de princípio da supremacia do interesse público ou da finalidade pública, com o nome de interesse público a Lei 9.784/99 coloca-o como um dos princípios de observância obrigatória pela Administração Pública, correspondendo ao "atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competência, salvo autorização em lei" (art. 2°, parágrafo único, II).

O princípio do interesse público está intimamente ligado ao da finalidade. A primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral. Em razão dessa inerência, deve ser observado mesmo quando as atividades ou serviços públicos forem delegados aos particulares [09].


2 DA INCONSTITUCIONALIDADE DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

Critica-se, aqui, o princípio em tela – em seu clássico entendimento – sob o fundamento de ofensa ao sistema jurídico brasileiro. A referida ofensa se dá por meio de inconstitucionalidade por desrespeito aos Direitos Fundamentais, que são desconsiderados "a priori", quando confrontados com um dito interesse público supremo e inquestionável.

Quando o juiz depara-se com qualquer caso concreto, busca no sistema jurídico vigente um supedâneo de regras e princípios harmônicos entre si, para auxiliá-lo na busca pela solução mais adequada do conflito que lhe é apresentado.

Mas, nesse caso, para que se alce a medida mais adequada àquele fato específico, o juiz deve contar com um repertório amplo e confiável de princípios que o orientem. Tal repertório deve ser condizente com a lógica do sistema adotado, não fazendo sentido qualquer contradição entre o sistema e os postulados de orientação. Nesse sentido, para Celso Antonio Bandeira de MELLO, princípio é:

... mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere tônica e lhe dá sentido harmônico [10].

E é justamente nesse ponto – relação de harmonia entre o sistema e os princípios - que o Direito Administrativo tem faltado. Pecando sistematicamente quando há necessidade de uma hermenêutica mais adequada ao conflito público e privado. Sofre de uma verdadeira carência no tocante a técnicas hermenêuticas. E opta, infelizmente, por uma solução simplista: tomando partido sempre do interesse público.

Nesse sentido, CANOTILHO, citado por Daniel SARMENTO ensina:

Na verdade, parece-nos que a questão das restrições aos direitos fundamentais justificadas com base no interesse público não pode ser enfrentada com soluções simplistas, como a baseada na suposta supremacia do interesse público sobre o particular. Elas demandam um exame mais complexo, que leve em consideração toda a constelação de limites às restrições de direitos fundamentais, que vem sendo desenvolvida pela doutrina. Assim, é preciso primeiramente recordar que os limites aos direitos fundamentais podem apresentar-se, basicamente, sob três formas diferentes: a) podem estar estabelecidos diretamente na própria Constituição; b) podem estar autorizados pela Constituição, quando esta prevê a edição de lei restritiva; e c) podem, finalmente, decorrer de restrições não expressamente referidas no texto constitucional [11].

Observa-se que o citado autor critica a posição atual – simplista - e tenta delimitar o assunto elaborando diretrizes para que se possa tratar dos direitos fundamentais, não aceitando decisões prévias em prol de um ou de outro interesse.

Com igual pensamento, Daniel SARMENTO fala sobre a singeleza do tratamento tradicional sobre o conflito público versus privado:

Portanto, a clivagem público/privado torna-se por demais singela para explicar o cenário atual, em que há múltiplos espaços da vida humana, pautados por lógicas diversas. Tais espaços, na verdade, não são separados de modo tão rígido e esquemático, penetrando-se e entrecruzando-se freqüentemente. E, muito embora eles possuam características e peculiaridades próprias, devem ser cortados transversalmente pelos princípios emancipatórios atrelados aos direitos humanos e à democracia, que não podem mais permanecer cingidos com exclusividade à esfera das relações em que o Estado se faça presente [12].

E SARMENTO continua - em outro ponto de seu texto - não mais falando da simplicidade com que o assunto é tratado, mas de outras falhas da interpretação majoritária ora questionada, quais sejam, a inadequação da supremacia do interesse público com a ordem jurídica e o perigo aos direitos fundamentais, o que, por via reflexa, acaba por abalar a própria democracia:

E, como já afirmamos antes, nosso propósito no presente ensaio é o de juntarmo-nos ao coro destes autores, não só porque divisamos uma absoluta inadequação entre o princípio da supremacia do interesse público e a ordem jurídica brasileira, como também pelos riscos que sua assunção representa para a tutela dos direitos fundamentais. Parece-nos que o princípio em discussão baseia-se numa compreensão equivocada da relação entre pessoa humana e Estado, francamente incompatível com o leitmotiv Democrático de Direito, de que as pessoas não existem para servir aos poderes públicos ou à sociedade política, mas, ao contrário, estes é que se justificam como meios para a proteção e promoção dos direitos humanos. Tentaremos, enfim, demonstrar que a cosmovisão subjacente ao princípio em debate apresenta indisfarçáveis traços autoritários, que não encontram respaldo numa ordem constitucional como a brasileira, em cujo epicentro axiológico figura o princípio da dignidade da pessoa humana [13].

Detectado o problema, a prática administrativa manteve-se inerte, ao arrepio de outros ramos do Direito – que consoante suas realidades e especificidades - implementaram necessárias e modernas práticas hermenêuticas que vislumbraram as mudanças sociais e inovaram, acertadamente, na interpretação dos casos concretos que lhe são apresentados hodiernamente. Como exemplo mais recente, temos o processo de ‘repersonalisação’ do Direito Civil – que foca o entendimento dos fatos propostos aos operadores do direito, no individuo como sujeito de direitos constitucionais e, não mais, na propriedade como valor absoluto. Outro exemplo de ramo do direito cuja adequação a realidade se deu de forma satisfatória, ocorre nas interpretações do Direito de Consumo: em que há inversão do ônus da prova decorrente da hiposuficiência do consumidor. Nesse, há critérios para se inverter o ônus probatório, que não é aplicado de forma automática ou singela.

Já no Direito Administrativo, infelizmente, não se têm tais mecanismos de modulação, se aplica à supremacia indiscriminadamente, sem questionamentos ou qualquer forma de ponderação. Ou seja, o Direito Administrativo parou no tempo e não se ateve, como ocorreu com o Direito Civil, às mudanças da sociedade contemporânea e a suas novas necessidades.

Ademais, como dito acima, as decisões "a priori" padecem por falta de harmonia com o sistema jurídico por, também, infringirem as liberdades mais fundamentais do cidadão.

A Constituição Federal tem como principal característica à insistência na proteção dos direitos que são mais caros aos sujeitos, demonstrando que é "a partir dos direitos fundamentais (pois são os direitos vinculados à proteção do homem) que se deve compreender uma Constituição" [14].

Preocupado com a questão, Paulo Ricardo SCHIER afirma que a questão da Supremacia Estatal vem servindo como cláusula geral de restrição de direitos fundamentais. Vejamos nas palavras do autor:

A conclusão (...) dá-se no sentido de que a assunção prática da supremacia do interesse público sobre o privado como cláusula geral de restrição de direitos fundamentais tem possibilitado a emergência de uma política autoritária de realização constitucional, onde os direitos, liberdades e garantias fundamentais devem, sempre e sempre, ceder aos reclames do Estado que, qual Midas, transforma em interesse público tudo aquilo que toca.

(...) O que se questiona, logo, não é o conteúdo, mas sim, a forma: a entronização do interesse público num pretenso patamar hierárquico superior àquele ocupado pelos direitos e liberdades individuais [15].

A comprovação dos abusos que decorrem da limitação sistemática dos direitos fundamentais é descrita por Alexandre Santos ARAGÃO, em um caso ocorrido durante a 2°guerra mundial nos EUA. Então vejamos:

A sobrepujança na ponderação de interesses de argumentos retóricos em prol do "interesse público" ou de seus subvalores já possibilitou nos EUA fortes restrições à liberdade de manifestação de idéias que fossem consideradas esquerdistas ( Dennis v. United States), ou que cidadãos norte-americanos de origem japonesa ficassem confinados em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial (Korematsu v. United Estates).

O fundamento dessas decisões foi que, na ponderação entre os valores da segurança nacional (interesse público) e os da liberdade, deveriam prevalecer aqueles em detrimento desse [16].

Comentando o caso Korematsu v. United States, Daniel SARMENTO afirma:

Discutia-se naquele processo, a constitucionalidade da lei federal que estabelecera severas limitações à liberdade de locomoção de cidadãos norte-americanos de ascendência japonesa, permitindo o seu confinamento em ‘centros de relocação de guerra’. Embora a jurisprudência em vigor inclinasse-se no sentido da inconstitucionalidade das discriminações fundadas em critério racial, a Suprema Corte manteve a validade da lei impugnada, após ponderar a magnitude da restrição à liberdade gerada pela norma, com a proteção à segurança nacional que ela ensejava, já que à época era grande o receio de que os sino-americanos pudessem conspirar contra os Estados Unidos, na guerra então travada com o Japão. Nesta lamentável decisão, o uso do método da ponderação prestou-se à finalidade de coonestar juridicamente o confinamento de cidadãos americanos em campos de concentração, emprestando legitimidade constitucional a um verdadeiro crime de guerra [17].

Ressalta-se, neste ponto, que apesar de o exemplo ser de décadas atrás, continua atual. Afinal, a atual guerra contra o terrorismo - implantada por todo o mundo - tem justificado alguns atos que violam os Direitos Humanos. Cita-se, aqui, o caso de supostas torturas implementadas contra "terroristas" na prisão americana de Guantánamo, cuja defesa da segurança nacional – interesse público – também suplantou os Direitos mais básicos daqueles prisioneiros.

Para demonstrar a importância e gravidade de se suplantar os Direitos Fundamentais, seja qual for o motivo, o Ministro do STF Gilmar Ferreira MENDES ensina que "em sua concepção clássica, os direitos fundamentais são direitos de defesa, protegendo posições subjetivas contra a intervenção do Poder Público, seja pelo não impedimento à prática de determinado ato, seja pela não-intervenção em situações subjetivas ou pela não-eliminação de posições jurídicas [18]".

Ou seja, os direitos básicos servem de escudo ao cidadão contra abusos estatais, e retirá-los, ou mesmo, flexibiliza-los seria uma temeridade, especialmente em se tratando de um ataque provindo de uma construção conceitual absurda de supremacia do interesse público engendrada pelo próprio ente estatal.

Ademais, além de tudo que foi exposto até aqui, devemos observar e aprender com outros países que adotaram teorias semelhantes ao do Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, e que, por óbvio, também falharam na adequação de conflitos de interesses distintos (público vs. privado). Esse é o caso da Alemanha da década de 50, cujo Tribunal Federal Administrativo elaborou doutrina conhecida como "cláusula de comunidade", segundo o qual a proteção dos Direitos Fundamentais cede quando oposta ao que se chamou de bens jurídicos da comunidade.

Sobre a referida teoria, ensina SARMENTO, dizia-se:

...que ela (a teoria da cláusula de comunidade) abria amplas possibilidades para abusos e arbitrariedades, em razão do seu caráter vago e indeterminado, pondo os direitos fundamentais à disposição dos Poderes Públicos. Ademais, argumentava-se, com razão, que ela degradava os direitos fundamentais, na medida em que permitia o seu sacrifício em nome de interesses da coletividade que muitas vezes sequer possuíam estatura constitucional. Tamanha fragilização da força normativa dos direitos fundamentais não seria compatível com regime constitucional que lhes atribui eficácia reforçada, e coloca num primeiro plano o princípio da dignidade da pessoa humana [19].

A citada teoria foi à época amplamente criticada pela doutrina e acabou sendo revista [20]. Devemos repetir o erro?


2 DA ORIGEM AUTORITÁRIA DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA EM UM DIREITO ADMINISTRATIVO A SERVIÇO DOS DETENTORES DO PODER

Ademais, tal uso do princípio em tela falha também por basear-se numa visão que guarda resíduos de Estado Absoluto, ao classificar a relação entre cidadão e Estado como de subordinação tão somente. Não bastasse, ele abstrai da tendência contemporânea a consensualidade nas relações travadas entre a Administração Pública e os administrados [21].

A dogmática administrativista estruturou-se em função de um princípio de preservação da autoridade e não, como se tem difundido, como garantia do cidadão.

Nas palavras de Gustavo BINENBOJM:

O direito administrativo, nascido da superação histórica do Antigo Regime, serviu como instrumento retórico para a preservação daquela mesma lógica de poder.

Uma das categorias forjadas desde essa origem autoritária foi o chamado princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular [22].

Em regra, se afirma, erroneamente, que o Direito Administrativo surgiu a partir do momento em que o poder se submeteu a lei. Tal pensamento é claramente percebido nas palavras de Caio TÁCITO:

O episódio central da história administrativa do século XIX é a subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como expressão da vontade coletiva, incide tanto sobre os indivíduos como sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa onde principia a vedação legal. O Executivo opera dentro dos limites traçados pelo Legislativo, sob a vigilância do Judiciário [23].

Entretanto, Gustavo BINENBOJM, acompanhado de outros autores, discorda frontalmente de tal posição. Então vejamos em suas palavras:

Tal história (origem do Direito Administrativo) seria esclarecedora, e até mesmo louvável, não fosse falsa. Descendo-se da superfície dos exemplos genéricos às profundeza dos detalhes, verifica-se que a história da origem e do desenvolvimento do direito administrativo é bem outra. E o diabo, como se sabe, está nos detalhes. A associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de direito e do princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária caracteriza erro histórico e reprodução acrítica de um discurso de embotamento da realidade repetido por sucessivas gerações, constituindo aquilo que Paulo Otero denominou ilusão garantística da gênese. O surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras), representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime que a sua superação. A juridicização embrionária da Administração Pública não logrou subordiná-la ao direito; ao revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para sua perpetuação fora da esfera de controle dos cidadãos [24].

E o mesmo autor, continua no mesmo sentido:

O direito administrativo não surgiu da submissão do Estado à vontade heterônoma do legislador. Antes, pelo contrário, a formulação de novos princípios gerais e novas regras jurídicas pelo Conseil d’État em França, que tornaram viáveis soluções diversas das que resultariam da aplicação mecanicista do direito civil aos casos envolvendo a Administração Pública, só foi possível em virtude da postura ativista e insubmissa daquele órgão administrativo à vontade do Parlamento. A conhecida origem pretoriana do direito administrativo, como construção jurisprudencial do Conselho de Estado derrogatória do direito comum, traz em si esta contradição: a criação de um direito especial da Administração Pública resultou não da vontade geral, expressa pelo Legislativo, mas de decisão autovinculativa do próprio Executivo [25].

Se algum objetivo de garantia embasou o surgimento e desenvolvimento da teoria administrativista, este foi em favor da Administração, e não de direitos intrínsecos e minimamente necessários ao cidadão.

Paulo OTERO afirma "que só por manifesta ilusão de ótica ou equívoco se poderá vislumbrar uma gênese garantística no direito administrativo – o direito administrativo nasce como direito da Administração Pública e não como direito dos administrados [26]".

Observe-se que a interpretação clássica, ora criticada, nasceu em um Estado com realidade distinta da atual. Hoje, depois de transições entre ideologias de esquerda (comunismo), de direita (fascismo) e liberais, o Estado é inquestionável e encontra-se consolidado em todo o mundo, não carecendo de quaisquer mecanismos absolutórios para resguardar sua existência e estabilidade. Consequentemente o argumento de que a supremacia é obrigatória para o alcance de segurança jurídica está mais do que superado.

Alçá-lo a uma hierarquia tal que inquestionáveis suas decisões é ser radical na interpretação. Lembrando-se sempre que o atual modelo de Estado veio, justamente, para combater qualquer forma de radicalismo, comum em um passado recente, naqueles Estados em que nasceu a interpretação que se quer superar.

Ressalta-se que em países adotantes do contencioso administrativo, justificado pelo "princípio supremo", o dano à legalidade é ainda maior do que no Brasil. Ao mesmo tempo em que justifica a existência do contencioso extrajudiciário, o pseudoprincípio impede o controle eficiente do Judiciário sobre o Executivo.

Com o mesmo entendimento BINENBOJM:

É curioso anotar como a separação de poderes serviu, contraditoriamente, a esse processo de imunização decisória dos órgãos do Poder Executivo. O mesmo princípio que justificara a criação do contencioso administrativo, intestino ao Executivo, será invocado para impedir que os órgãos de controle exerçam sobre os outros órgãos da Administração poderes de injunção e substituição, em princípio da mesma estrutura de Poder. Em outras palavras, criou-se no interior da Administração um contencioso que não oferecia ao administrado as mesmas garantias processuais dos tribunais judiciários, mas, estranhamente, estava sujeito aos mesmos limites externos de atuação, como se se tratasse do próprio Poder Judiciário [27].

Denota-se que em função de prejuízos causados aos administrados, por um pretenso princípio de supremacia, os países vinculados ao commow law relutam em reconhecer a autonomia científica ao direito administrativo e afastam a jurisdição administrativa (aquela em que há decisão final irrecorrível). Tal fato se deve à tradição daquelas nações de submissão das relações entre Administração e cidadão aos mesmos tribunais e normas que aquelas estabelecidas entre particulares. Não houve formação de uma estrutura dogmática munida de categorias a serviço do poder [28].

Com o presente tópico – Da origem autoritária do Princípio da Supremacia em um Direito Administrativo a serviço dos detentores do poder – pretendeu-se atacar o referido principio por um enfoque diferente do que vem sendo realizado usualmente em outros artigos sobre o tema, ou seja, agride-se o mesmo já em sua origem, demonstrando os traços de absolutismo vinculados ao ‘Antigo Regime’ e sua sustentação como técnica mantenedora de prerrogativas desnecessárias e conflitantes com o sistema vigente e sua filosofia de fundo, que vai na defesa do cidadão.


3 DESCARACTERIZAÇÃO COMO PRINCÍPIO – POSIÇÃO DE HUMBERTO BERGMANN ÁVILA

Ademais, não bastasse o vício de inconstitucionalidade, há incompatibilidade da Supremacia do Interesse Público com o Postulado da Ponderação, que critica qualquer decisão jurisdicional cuja escolha em favor de um, ou de outro interesse, seja particular ou coletivo, realize-se de antemão.

O referido princípio supremo não pode ser considerado como tal, pois não se adéqua a nenhum dos vários significados atribuídos ao termo "princípio", quais sejam, princípio como axioma, princípio como postulado e princípio como norma.

Segundo Humberto Bergmann ÁVILA, o axioma é tido como uma afirmativa aceita por todos, que decorreria do simples raciocínio lógico, portanto, autoexplicativa e não sujeita ao debate. O postulado - em suma - seria uma condição de possibilidade do conhecimento de determinado objeto, sendo que tal objeto não poderia ser compreendido senão através do próprio postulado. [29]

Quanto ao princípio como norma, ÁVILA afirma "que este encontra seu fundamento de validade tão somente no direito positivo, de modo expresso ou implícito [30]", não obtendo, portanto, fundamento de validade autoevidente como o axioma. "Daí dizer-se que os princípios, à diferença das metanormas de validade, instituem razões prima facie de decidir. Os princípios servem de fundamento para a interpretação e aplicação do Direito. Deles decorrem, direita ou indiretamente, normas de conduta ou instituição de valores e fins para a interpretação e aplicação do Direito [31]". A norma princípio depende de possibilidades normativas advindas de outros princípios, que podem derrogá-la em determinado caso concreto. A resolução da colisão de normas princípios depende da instituição de regras de prevalência entre os princípios envolvidos, não se admitindo, uma pré-concepção de supremacia de um para com outro princípio.

Definidos os conceitos com que se vai trabalhar, passa-se a desconstrução conceitual do "princípio" em estudo.

Quanto ao princípio como norma, a crítica se faz porque o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não está em consonância com o que se define como princípio-norma jurídica, cujo significado resulta de uma adequação e harmonia entre princípios, e que avalia seu fundamento de validade com a ponderação do caso concreto, ao contrário do princípio aqui criticado, em que a prevalência do interesse público é a única possibilidade de aplicação, e todas as outras possibilidades de concretização somente consistem em exceções, não dependendo de averiguação fática.

Sobre o tema, ALEXY registra: "Essa relação de tensão não poderia ser resolvida no sentido de uma absoluta prevalência de uma dessas obrigações do Estado, nenhuma dessas obrigações ganha diretamente a prevalência. O conflito deve ser resolvido, muito mais, por meio de uma ponderação entre os interesses conflitantes" [32].

Sobre o mesmo assunto, Humberto ÁVILA ensina:

A solução de uma colisão de normas princípios depende da instituição de regras de prevalência entre os princípios envolvidos, a ser estabelecida de acordo com as circunstancias do fato concreto e em função das quais será determinado o peso relativo de cada norma princípio. A solução de uma colisão de princípios não é estável nem absoluta, mas móvel e contextual [33].

A segunda crítica acerca do princípio como norma, prossegue no sentido de que o princípio em estudo carece de suporte/fundamento jurídico-positivo de validade, que é característica marcante do princípio-norma, esta situação se expressa bem nos excelentes comentários do professor ÁVILA que merecem transcrição literal.

Ele [princípio] não pode ser descrito como um princípio jurídico –constitucional imanente, mesmo no caso de ser explicado como um princípio abstrato e relativo, pois ele não resulta, ex constitutione, da análise sistemática do Direito.

Primeiro, porque a Constituição brasileira, por meio de normas-princípios fundamentais (arts. 1º a 4º), dos direitos e garantias fundamentais (arts. 5º a 17º) e das normas-princípios gerais (por exemplo, arts. 145º, 150º e 170°), protege de tal forma a liberdade (incluindo a esfera intima e a vida privada), a igualdade, a cidadania, a segurança e a propriedade privada, que se se tratasse de uma regra abstrata e relativa de prevalência seria (não o é , como se verá) em favor dos interesses privados em vez dos públicos. A Constituição brasileira institui normas-princípios fundamentais, também partindo da dignidade da pessoa humana, direitos subjetivos são protegidos, procedimentos administrativos garantidos, o asseguramento da posição dos indivíduos e de seus interesses privados é estabelecido frente ao concorrente interesse público, etc. A Constituição brasileira, muito mais do que qualquer outra, é uma Constituição cidadã, justamente pela particular insistência com que protege a esfera individual e pela minúscula com que define as regras de competência da atividade estatal [34].

Aclarada a situação, o princípio em comento deve ser repensado, uma vez que esse apresenta contradição absoluta com outras normas-princípios ou mesmo normas materiais de categoria constitucional, o que sem sombra de dúvida não lhe dá fidedignidade como princípio. Como se não bastasse, há também incompatibilidade com postulados normativos, como o da proporcionalidade e o da concordância prática. Estes dois pregam o sopesamento de direitos, princípios e garantias, como forma de realização do Direito [35], no entanto a única possibilidade prevista pelo principio basilar do Direito Administrativo é a supremacia do interesse público.

Tais postulados são aceitos de forma inconteste na prática jurídica brasileira. E, mais uma vez, afirmar-se, absolutamente incompatíveis com decisões a priori.

A proporcionalidade – na lição de ALEXY – "não consiste em uma norma-princípio, mas consubstancia uma condição mesma da realização do Direito, já que não entra em conflito com outras normas-princípios, não é concretizado em vários graus ou aplicado mediante criação de regras de prevalência diante do caso concreto, e em virtude das quais ganharia, em alguns casos, a prevalência [36]".

Em suma, o que existe – quando se fala em interesse público – é uma "regra condicional concreta de prevalência" não uma norma-princípio, que depende de possibilidades normativas concretas, e nem um postulado, cuja definição independe de casos concretos e se harmoniza como o sistema.

Exatamente nesse ponto – em que se requer uma nova formulação para a dita supremacia do interesse público – é necessário citar um outro ponto de vista defendido pela autora Odete MEDAUAR, que reconhece a existência do "princípio" supracitado, já com outro nome, princípio da preponderância do interesse público sobre o particular, mas que afirma: "... vem (o princípio de supremacia) sendo matizado pela idéia de que à Administração cabe realizar a ponderação de interesses presentes numa determinada circunstância, para que não ocorra o sacrifício ‘a priori’ de nenhum interesse [37]".

Segundo a posição de MEDAUAR, o interesse público em regra prevalece sobre o privado, mas em algumas situações o oposto ocorre. Para tal entendimento, de forma simplificada, o ônus probatório é maior para aquele que defende o particular e somente ocorreria à vitória do interesse privado por um motivo muito ‘forte’.

Entretanto, cita-se, aqui, a posição de MEDAUAR, apenas para fins de conhecimento, uma vez que os autores defensores da inexistência do princípio da supremacia [38], também não concordam com tal posição.

Vejamos a posição de um deles, Daniel SARMENTO, sobre o ponto de vista de MEDAUAR:

Todavia, esta visão também é francamente incompatível com o nosso sistema constitucional, por fragilizar em demasia os direitos fundamentais. Com efeito, se é verdade, como afirmamos acima, que o entrincheiramento dos direitos fundamentais não significa a sua imunização absoluta diante da possibilidade de ponderações com interesses coletivos, também parece certo, por outro lado, que, no mínimo, há de se exigir no processo ponderativo uma fortíssima carga argumentativa para superação do direito fundamental em proveito do interesse público em confronto.

Mas, para a teoria "fraca" da supremacia do interesse público sobre o particular - como aqui a batizamos -, dá-se o contrário, pois os direitos fundamentais, já na largada do processo ponderativo, partem em franca desvantagem em relação aos interesses públicos. Ela desconsidera que os direitos fundamentais, pela sua própria natureza, visam resguardar para os particulares certos bens jurídicos considerados essenciais para a promoção da sua dignidade, e que devem por isso beneficiar-se de vigorosa proteção diante dos poderes públicos, inclusive quando estes afirmem estar perseguindo interesses da coletividade. Enfim, a teoria "fraca" – e muito mais ainda a "forte", por óbvias razões – debilita a proteção dos direitos fundamentais, subtraindo a exigência de que qualquer restrição a eles seja submetida a um rigoroso escrutínio, em que caiba à medida restritiva, ainda que inspirada no interesse público, e não ao direito contraposto, a maior carga argumentativa [39].


4 DA RELAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E PONDERAÇÃO

O Postulado da Proporcionalidade é indispensável para adequar princípios e interesses conflitantes. Da sua aplicação busca-se o alcance da decisão mais acertada no caso concreto ou em um eventual choque abstrato de normas – princípios.

Daniel SARMENTO conceitua:

O emprego do princípio da proporcionalidade busca otimizar a proteção aos bens jurídicos em confronto, evitando o sacrifício desnecessário ou exagerado de um deles em proveito da tutela do outro. Neste sentido, ele é de especial importância no campo dos direitos fundamentais, como fórmula de limitação de medidas que restrinjam estes direitos. Um dos seus objetivos, como o nome já revela, é a busca de uma justa e adequada "proporção" entre os interesses em pugna. Por isso, a aplicação do princípio da proporcionalidade exige a realização de ponderações minuciosas e devidamente motivadas, nas quais se torna fundamental a atenção sobre as particularidades da situação concreta sob análise [40].

Percebe-se do conceito acima que a flexibilidade de análise nos conflitos da sociedade é indispensável ao bom andamento e ‘justiça’ das decisões judiciais. Por certo, não há compatibilidade entre um pensamento de proporcionalidade e uma decisão antecipada em prol do interesse público. Com o mesmo fundamento, SARMENTO:

Talvez a mais séria objeção dogmática ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular seja a de que ele não é compatível com o princípio da proporcionalidade, que constitui importantíssimo parâmetro para aferição da constitucionalidade das restrições aos direitos fundamentais. Com efeito, o princípio da proporcionalidade, cuja vigência no ordenamento brasileiro é hoje reconhecida, em uníssono pela doutrina e jurisprudência, estabelece critérios intersubjetivamente controláveis para resolução de colisões envolvendo interesses constitucionais [41].

Ademais, além de impedir qualquer possibilidade de sopesamento de interesses, o ‘princípio’ base do Direito Administrativo também é incompatível com a hermenêutica constitucional da concordância prática [42], como visto no tópico 2 deste trabalho.


CONCLUSÃO

O artigo tem inicio com as seguintes problemáticas sobre o "princípio" supremo do interesse público: "De fato, trata-se de um princípio no seu sentido técnico? A Supremacia do Interesse Público é compatível como o sistema de normas e regras? Há constitucionalidade, quando da sua aplicação clássica?".

Após os argumentos apresentados, se chega a uma resposta negativa para todas essas questões, ou seja, não há que se falar em princípio da supremacia – mas, sim, em regra de prevalência -, não há harmonia do citado princípio administrativo com o sistema e muito menos adequação com a Constituição de 88, especialmente por abalar os Direito Fundamentais.

Por certo, possuir uma visão prévia, cuja preponderância do interesse público é soberana e inconteste, atrapalha sobremaneira o alcance da decisão ideal no caso concreto. Não se questionou que o Estado, em determinadas situações, possuísse vantagens – prerrogativas, na linguagem administrativa –, mas que tais vantagens sejam determinadas quando apresentadas a um fato (mundo real), não de antemão e de forma abstrata (até porque não se fala em princípio, mas em regra de prevalência). Se o ato administrativo necessita de imperatividade, autoexecutoriedade e presunção de legitimidade para possibilitar uma boa administração, que tenha tais características, mas não definidas sem análise das necessidades reais de um fato apresentado.

Ademais, a crítica se acirra quando se verifica que a postura atacada ofende sobremaneira garantias adquiridas com muito empenho histórico. Até mesmo porque nasce contaminada pelo absolutismo e autoritarismo de regimes anteriores que tratavam os cidadãos, ou melhor, os sujeitos apenas como subordinados.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional: Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.


Notas

  1. MORAIS, Alexandre. Direitos Fundamentais: teoria geral, comentários aos art. 1° a 5° da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2000, p. 39.
  2. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 33.
  3. JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de Interesse Público e a "Personificação" Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros. n° 26, p. 118.
  4. MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 53.
  5. Ibidem, p. 57.
  6. ALESSI, Renato. Sistema Istituzionale Del Diritto Amministrativo Italiano. 2ª ed. Milão: Giuffrè, 1960, p. 197 e notas de rodapé 3 e 4. apud MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 57.
  7. ALESSI, Renato. Institucines de Derecho Administrativo. Tomo I. Traducción dela 3ª edición italiana por Buenaventura Pellisé Prats. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1970, p. 183.
  8. Ibidem, p. 185.
  9. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros Editoras, 2007. p. 103.
  10. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.572.
  11. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, Coimbra: Coimbra, 1994, p. 1142-1143 apud SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (organizador). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Descontruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 91.
  12. SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: SARMENTO, Daniel (organizador). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Descontruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 48.
  13. Ibidem, p. 27.
  14. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. pg.38 apud SCHIER, Paulo Ricardo.Ensaios sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos Direitos Fundamentais. Disponível em: www.mundojuridico.com.br Acesso em 18.06.2008.
  15. SCHIER, Paulo Ricardo. Artigo: Ensaios sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos Direitos Fundamentais. Disponível em: www.mundojuridico.com.br Acesso em 18.jun.2008. p.1 e 2.
  16. ARAGÃO, Alexandre Santos. A "Supremacia do Interesse Público" no Advento do Estado de Direito e na Hermenêutica do Direito Contemporâneo.In: SARMENTO, Daniel (organizador). Interesses Públicos versus Interesses Privados: Descontruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 7.
  17. SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 161.
  18. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Brasília: Celso Bastos Editor, 1998, p. 32 – 33.
  19. SARMENTO, Daniel. Interesse..., p. 88.
  20. Ibidem, p. 87.
  21. Sobre a consensualidade na Administração Pública, veja-se MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Administração Pública Consensual. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 37.
  22. BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um novo Paradigma para o Direito Administrativo. In: SARMENTO, Daniel (organizador). Interesse Público versus Interesse Privado: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 165-166.
  23. TÁCITO, Caio. Evolução Histórica do Direito Administrativo. Disponível em : <htttp://www.mundojuridico.com.br/artigo/adm/03/F.PDF> Acesso em: 25 mar. 2009.
  24. BINENBOJM, op. cit., p. 119.
  25. Ibidem, p.120.
  26. OTERO, Paulo. Direito Administrativo – Relatório. Coimbra: Coimbra Editora. 2001. p. 227.
  27. BINENBOJM, op. cit., p. 123.
  28. Ibidem, p. 125.
  29. ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o "Princípio da supremacia do interesse público sobre o particular". In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O Direito Público em Tempos de Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 102 – 103.
  30. Ibidem, p. 104.
  31. Ibidem, p. 105.
  32. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2 ed. Frankfurt am Main, 1994, p.80. apud ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o "Princípio da supremacia do interesse público sobre o particular". In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O Direito Público em Tempos de Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p.108.
  33. ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. Cit., p. 105.
  34. ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. Cit., p.108.
  35. HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschaland. 20 ed. Heidelber: Müller, 1995, p.28. apud ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o "Princípio da ... p.112-113.
  36. ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 2. es. Frankfurt am Main, 1994, p. 100. apud. ÁVILA, Humberto Bergmann. Op. Cit,. p. 112.
  37. MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo Moderno. 5. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 153.
  38. Alexandre Santos de Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila, Paulo Ricardo Schier, dentre outros.
  39. SARMENTO, Daniel. Interesse..., p. 102.
  40. SARMENTO, Daniel. Interesse..., p. 100.
  41. Ibidem, p. 99.
  42. SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional: Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Wayne Vinicius Di Francisco. Desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Incompatibilidades com o sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2353, 10 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13992. Acesso em: 19 maio 2024.