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Crime continuado: distinções

Crime continuado: distinções

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Resumo: O vertente artigo tem como escopo analisar o fenômeno do crime continuado sob a perspectiva diferenciadora em relação à reiteração criminosa e aos crimes habitual e permanente.

Sumário: 1. Crime Continuado e Reiteração Criminosa; 2. Crime Continuado e Crime Habitual; 3. Crime Continuado e Crime Permanente.

Palavras-Chaves: Dogmática Penal; Teoria do Delito; Concurso de Crimes; Crime Continuado; Reiteração Criminosa; Crime Habitual; Crime Permanente.


1. CRIME CONTINUADO E REITERAÇÃO CRIMINOSA.

Estas são duas figuras que não se confundem. Aliás, este também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual "a reiteração criminosa indicadora de delinqüência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado". [01]

A continuidade delitiva representa, na verdade, conforme já destacado inicialmente, ficção jurídica inspirada em política criminal e na menor censurabilidade do autor de crimes plurais da mesma espécie e praticados de modo semelhante, a indicar continuidade (ou seja, que os subseqüentes devem ser havidos como continuação do primeiro).

Diferente, no entanto, é a hipótese de simples reiteração ou habitualidade criminosa, em que, muito embora haja pluralidade de delitos, ainda que da mesma espécie, ausente as similitudes; ou, ainda que verificadas as similitudes, estas não são bastantes a indicar continuidade.

Tome-se, por emprestado, hipótese concreta julgada pelo Supremo: "No caso dos autos, os modos de execução são distintos e os delitos estão separados por espaço temporal igual a seis meses. Não se cuida, portanto, de crime continuado, mas de reiteração criminosa. Incide a regra do concurso material". [02]

Nos casos de mera reiteração criminosa, é claro que o tratamento penal deve ser endurecido (leia-se: maior pena), uma vez que a culpabilidade (no sentido de censurabilidade ou reprovabilidade) é maior.

Indispensável, neste ponto, o magistério de Cernicchiaro, segundo o qual só se pode entender a continuação, desde que a seqüência das ações ou omissões diminuam a censura. "Ao contrário, se as circunstâncias evidenciarem, por exemplo, propensão para o delito, raciocínio frio, calculista, reiteração que se projeta todas as vezes que o agente encontra ambiente favorável aos delitos, pouco importa a conexão objetiva. A reiteração que, se transforma em habitualidade, atrai, sem dúvida, maior culpabilidade", o que significa maior pena, em virtude de não se reconhecer o benefício dogmático e político-criminal da continuidade delitiva. [03]

Acompanhe, nesta linha, clássicos julgados do Egrégio Supremo:

- "As características reveladas pelo modo de ação do paciente na perpetração dos cinco crimes de estelionato revelam que houve mera reiteração no crime, e não continuidade delitiva, convergindo para a condução de que o paciente adotou o crime como meio de vida. Firmou-se a jurisprudência do STF no sentido da descaracterização do crime continuado ‘quando, independentemente da homogeneidade das circunstâncias objetivas, a natureza dos fatos e os antecedentes do agente identificam reiteração criminosa indicadora de delinqüência habitual ou profissional’ (STF – Primeira Turma – HC 70.891/SP - Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ de 01.07.94, p. 17498)". [04]

- "Quem faz do crime sua atividade comercial, como se fosse profissão, incide nas hipóteses de habitualidade, ou de reiteração delitiva, que não se confunde com a da continuidade delitiva. O benefício do crime continuado não alcança quem faz do crime a sua profissão". [05]

- "Habeas Corpus - Crime de Roubo - Práticas Sucessivas - Condenações Penais Diversas - Pretendido Reconhecimento do Nexo de Continuidade Delitiva - Inocorrência - Mera Reiteração de Crimes - Ordem Denegada. - A prática reiterada e habitual do crime de roubo, por delinqüentes contumazes - que fazem, de seu comportamento individual ou coletivo (reunidos, ou não, em quadrilha), uma atividade profissional ordinária - descaracteriza a noção de continuidade delitiva. O assaltante, que assim procede, não pode fazer jus ao benefício derivado do reconhecimento da ficção jurídica do crime continuado. A mera reiteração no crime - que não se confunde, nem se reduz, por si só, à noção de delito continuado - traduz eloqüente atestação do elevado grau de temibilidade social daquele que incide nesse gravíssimo comportamento delituoso. - O reconhecimento do crime continuado - que afasta a incidência da regra do cúmulo material das penas - reveste-se de caráter excepcional, devendo, para os efeitos jurídico-penais dele resultantes, ficar plenamente configurado em todos os elementos e pressupostos que lhe compõem o perfil legal e a noção conceitual. Precedentes". [06]

- "’Habeas Corpus’. Pedido de unificação de penas relativas a doze condenações por delito de roubo. Indeferimento pelo Tribunal. Reexame pela via do "habeas corpus", HC 68.864 e HC 69.224. Caráter excepcional da unificação. Mera reiteração de pratica criminosa. Configuração que não prescinde do concurso, necessário e essencial, de outros elementos e fatores, de ordem objetiva, referidos pela lei. Crimes subseqüentes que não resultavam do aproveitamento das condições objetivas da pratica dos delitos anteriores. Inexistência das condições objetivas: tempo, lugar e maneira de execução. Atos isolados, independentes, sem seqüência ou continuidade. Variação constante de comparsas. Ausência de homogeneidade ou uniformidade nas ações criminosas e nos desígnios do paciente. Continuidade não caracterizada, HC 68.124. Reiteração criminosa por quem faz do crime de roubo meio de vida. Descabe o beneficio da continuidade delitiva, em se tratando de pratica habitual e reiterada do crime: HC 68.626, HC 69.899, HC 69.059". [07]


2. CRIME CONTINUADO E CRIME HABITUAL.

O critério distintivo entre crime habitual e crime continuado reside exatamente na natureza jurídica dos atos integrantes e, conseqüentemente, no número de delitos praticados. Deve-se verificar se foram vários os crimes cometidos (em continuidade delitiva) ou apenas um delito (na forma habitual).

O crime habitual significa a repetição de certos atos, tidos como indiferentes penais (se considerados isoladamente), mas que, à luz do todo, manifestam estilo de vida censurável e incriminado. Em detalhes, são características do crime habitual: a) repetição de atos; b) atos que, se considerados isoladamente, seriam indiferentes penais; c) estes atos, no entanto, quando analisados à luz do todo, traduzem um estilo de vida; d) modo de vida, este, reprovável e previsto em lei como crime.

Já o crime continuado significa, em verdade, uma série (ou pluralidade) de crimes, todos eles ligados pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, de maneira que os subseqüentes devem ser havidos como continuação do primeiro. Trata-se, de fato, como o próprio nome indica, de vários crimes cometidos em continuidade ou, então, de uma continuidade delitiva.

Observe a diferença entre os institutos. No crime habitual, os atos que o compõem são, por si mesmos, irrelevantes penais (ou seja, não constituem crimes isoladamente); apenas a soma destes atos, o todo, que configura um delito, chamado de habitual, pois manifesta o estilo de vida do sujeito ativo. Ex.: curandeirismo (art. 284 do CP). Diferentemente, no crime continuado, as partes integrantes do todo são, de per si, crimes, configurando o todo apenas uma pluralidade de delitos, reunidos sob o nome de continuidade criminosa, tendo em conta os elementos especiais que os identificam enquanto verdadeira "cadeia de delitos". Ex.: homicídios em continuidade delitiva (art. 121 c.c. 71, ambos do CP).


3. CRIME CONTINUADO E CRIME PERMANENTE.

O crime permanente é aquele cuja consumação se protrai (ou prolonga) no tempo. Já o crime continuado, repita-se, são vários delitos, porém ligados um ao outro devido a condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, de forma que os subseqüentes devem ser havidos como continuação do primeiro. O paradigma de diferenciação é o mesmo da hipótese anterior (crime continuado x crime habitual), qual seja, a natureza jurídica dos atos integrantes e, conseqüentemente, do número de delitos praticados. O crime permanente é crime único cuja consumação se arrasta no tempo. Ex.: seqüestro (art. 148 do CP). Já a continuidade delitiva indica número plural de crimes (dois ou mais). Ex.: furtos em continuidade delitiva (art. 155 c.c. 71, ambos do CP).


Notas

  1. STF - Primeira Turma – RHC 93.144/SP – Rel. Min. Menezes Direito – j. em 18.03.08.
  2. STF - Segunda Turma –HC 93.824/RS – Rel. Min. Eros Grau – j. em 13.05.08 – DJe 152 de 14.08.08.
  3. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Código Penal – Concurso de Pessoas. Crime continuado. Penas – Aplicação e Execução. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 8. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 89.
  4. STF – Primeira Turma – HC 72.848/SP - Rel. Min. Ilmar Galvão – j. em 03.10.95 – DJ de 24.11.95, p. 40389.
  5. STF - Segunda Turma – HC 74.066/SP – Rel. Min. Maurício Corrêa – j. em 10.09.96 – DJ 11.10.96.
  6. STF - Primeira Turma – HC 70.794/SP – Rel. Min. Celso de Mello – j. em 14.06.94 – DJ 13.12.02, p. 72.
  7. STF - Segunda Turma – HC 71.019/SP – Rel. Min. Paulo Brossard – j. em 18.10.94 – DJ de 19.12.94, p. 35182.

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2007). Especialista em Ciências Penais pela UNISUL/IPAN (2008). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC/ULCA/UNINTER (2013). Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2014-2016). Professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal na Academia de Polícia Civil de Santa Catarina e no Centro Universitário Católica de Santa Catarina. Professor na Especialização em Direito Penal e Processual Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), de Ciências Criminais do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC) e de Ciências Penais e Segurança Pública da Associação Catarinense de Ensino (ACE-FGG). Professor convidado da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Porta-Voz da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP-Brasil). Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRASPP) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Delegado de Polícia Civil em Santa Catarina. Examinador Titular do Concurso para Delegado de Polícia Civil/SC (2014-2015). Colunista da Revista Eletrônica Consultor Jurídico (ConJur). Coautor da obra: "Investigação Criminal pela Polícia Judiciária" (Editora Lumen Juris - 2016) e "Polícia Judiciária no Estado de Direito" (Editora Lumen Juris - 2017). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Processual Penal, além de Criminologia. Site: www.leonardomarcondesmachado.com.br Rede Social: https://www.facebook.com/leonardomarcondesmachado

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Leonardo Marcondes. Crime continuado: distinções. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2440, 7 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14457. Acesso em: 28 mar. 2024.