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A evolução do consumo de drogas.

Aspectos históricos, axiológicos e legislativos

A evolução do consumo de drogas. Aspectos históricos, axiológicos e legislativos

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1.1 Buscando a origem do consumo de drogas

O consumo de substâncias não produzidas pelo organismo humano, capazes de atuar sobre um ou mais de seus sistemas e de produzir alterações em seu funcionamento, algumas delas classificadas atualmente como drogas, acompanha a humanidade desde seus primórdios.

Não existem indícios históricos das primeiras experiências humanas com plantas e seus princípios ativos, mas, ainda que de forma especulativa, algumas referências podem ser encontradas em antigas lendas de diversas civilizações que associavam determinados frutos à idéia de paraíso. [01]

A sedentarização dos grupos humanos pré-históricos, ocorrida no período Mesolítico, permitiu a obtenção de conhecimentos acerca do ciclo de vida de certos cereais, o desenvolvimento da agricultura e a domesticação de animais, acarretando significativas transformações principalmente nos modelos de agrupamento humano, constituindo o que se resolveu chamar de Revolução Neolítica.

À medida que se intensificava a ação do homem sobre a natureza foram surgindo grupos familiares cada vez maiores, tornaram-se mais complexas as relações no seio de tais organizações e fixaram-se as bases para o surgimento de grandes civilizações.

Nessas sociedades o uso de certas substâncias relacionava-se a ritos de passagem e de iniciação à maturidade, e a rituais que buscavam satisfazer os mais variados deuses.

Acerca do uso ritualístico de certas substâncias psicotrópicas, cabe transcrever excerto da obra de Antônio Escohotado:

As culturas de caçadores-colectores – sem dúvida as mais antigas do planeta – têm em comum uma pluralidade aberta ou mesmo interminável de deuses. Actualmente sabemos que numa proporção muito elevada dessas sociedades os sujeitos aprendem e reafirmam a sua identidade cultural passando por experiências com alguma droga psicoativa. (...) Antes de o sobrenatural se concentrar em dogmas escritos, e de castas sacerdotais interpretarem a vontade de qualquer deus único e omnipotente, o fulcro de inúmeros cultos era o que se percebia em estados de consciência alterada, e foi-o precisamente a título de conhecimento revelado. As primeiras hóstias ou formas sagradas eram substâncias psicoativas, como o peyotl, o vinho ou certos cogumelos [02].


1.2 A Idade Antiga e o consumo de drogas

Com o advento da escrita, em 4.000 a.C, tem início, utilizando-se o recurso didático da periodização da história, a Idade Antiga, em que se destaca o surgimento de duas principais formas de organização socioeconômica: as sociedades baseadas no regime de servidão coletiva (sociedades asiáticas) e as sociedades escravistas (em especial, as sociedades grega e romana). [03]

São desse período as primeiras referências escritas acerca de plantas e substâncias psicoativas extraídas das mesmas.

A papoula ou dormideira, planta da espécie Papver sommiferum L., aparece descrita em placas sumérias do terceiro milênio a.C., representada em cilindros babilônicos, imagens da cultura creto-micênica e em hieróglifos egípcios.

O cânhamo (cannabis sativa) tem sua origem na China, país em que foram encontrados os primeiros restos desta fibra. Surgem também indícios de seu uso na Índia, para tratamento de febre, insônia, tosse seca e disenteria, e na civilização da Mesopotâmia, empregada como incenso cerimonial.

O arbusto de coca, planta do gênero Erythroxylon, originário da região de Macchu-Yunga, no antigo Alto Peru (hoje Bolívia), fora disseminado pelos incas. [04]

Desde o século III a.C., o hábito da mastigação das folhas de coca é representado em esculturas dos povos andinos, encontrando-se presente em manifestações ritualísticas e utilizado como forma de aliviar o esforço físico e mental relacionado ao trabalho em altas altitudes. [05]

Podem ainda ser encontrados relatos sobre o uso de álcool, em especial na sociedade egípcia, na região da Ásia Menor e na Bíblia judaica.

O Código de Hamurabi, por exemplo, em sua ordenação 108, mandava executar os donos de tabernas que adulterassem a qualidade de bebidas como o vinho e a cerveja. [06]


1.3 As civilizações grega e romana

A civilização grega influenciou profundamente a cultura ocidental, sendo responsável pela produção de significativo conhecimento político, filosófico e científico, e de variadas formas de expressão artística.

A produção filosófica presente nas obras de Sócrates, Platão, Aristóteles e outros, foi responsável pela disseminação das idéias de leis e princípios universais reguladores da natureza. Rompe-se, portanto, com a concepção de conhecimentos secretos e místicos somente obtidos por meio da religião. [07]

Diante dessa nova perspectiva, plantas como a dormideira, o cânhamo, a beladona, a mandrágora, e as drogas por elas produzidas, passam a ser abordadas não mais como substâncias sobrenaturais, mas como mecanismos de cura, sendo ainda utilizadas para fins lúdicos.

De igual forma, na civilização romana o uso de certas drogas encontrava-se inserido nos costumes, em especial o ópio, sobre o qual foram erigidas leis para regular os preços de mercado [08].

Percebe-se, portanto, que o consumo de drogas nas sociedades grega e romana apresentava-se bastante difundido, seja na forma de medicamentos, seja de forma recreativa. Entretanto, tal fenômeno não se constituiu como um problema de ordem social, política ou jurídica.

Para Antônio Escohotado as drogas nas civilizações antigas clássicas não representavam um problema de toxicomania primeiramente por encontrarem-se inseridas no complexo arcabouço de costumes dessas sociedades.

Esclarece o citado autor:

...este formidável consumo não cria problemas de ordem pública ou privada. Embora se contem aos milhões, os consumidores regulares de ópio não existem nem como casos clínicos nem como marginais de sociedade. O costume de tomar esta droga não se distingue de qualquer outro costume – como madrugar ou tresnoitar, fazer muito ou pouco exercício, passar a maior parte do tempo dentro ou fora de casa -, e daí que não haja em latim expressão equivalente a ‘opiómano’, ainda que exista pelo menos uma dúzia de palavras para designar o dipsómano ou alcoólico [09]

Ainda segundo Escohotado, o juízo de valor negativo das sociedades em análise recaiu sobre o álcool, que absorveu toda a nocividade social e individual que, atualmente, recai sobre drogas como maconha, inalantes, solventes, estimulantes, cocaína e crack [10].

As convicções acerca da neutralidade das drogas e dos benefícios da automedicação, características dos cultos pagãos, começam a entrar em colapso com o processo de cristianização do Império romano.

O cristianismo surge à época do alto Império romano, proveniente da religião judaica. Durante os três primeiros séculos da era cristã, os adeptos dessa nova religião foram perseguidos por questionarem os valores e as instituições de Roma.

Entretanto, o cristianismo começa a se fortalecer, tornando-se, no início do século IV, a religião mais popular do Império romano. Em 325, por meio do Concílio de Nicéia, o imperador Constantino promove a união entre Estado e Igreja. [11]


1.4 A Idade Média

Durante a Idade Média, a Igreja cristã alcança o posto de maior instituição feudal do Ocidente europeu, exercendo sua hegemonia ideológica e cultural, estabelecendo normas e comportamentos. [12]

O conhecimento pagão, inclusive no que se refere ao uso terapêutico ou recreativo de drogas, passa a ser considerado heresia, contaminado por práticas de bruxaria.

Durante esse período, acusadas de práticas contrárias aos ideais cristãos, inúmeras pessoas foram perseguidas por inquisidores.

Antônio Escohotado descreve os meios empregados contra os "infiéis":

Perante tais evidências, o uso de drogas diferentes do álcool castiga-se com tortura e pena capital, tanto se for religioso como se for simplesmente lúdico. Ao mesmo tempo, as drogas não são corpos precisos, mas uma coisa entre aspiração infame e certa pomada. (...); isto permitia ser queimado vivo por guardar uma pomada para luxações, sempre que a pessoa parecesse suspeita ou tivesse inimigos; igualmente possível era que, noutro domicílio, a presença de pomadas muito psicoativas fosse considerada inocente. Mas elaborar plantas e beberagens parecia às autoridades aproximar-se demasiado da abominação, e punha em perigo o seu relato dos factos; a saber, que o mundo – castigado por Deus – estava cheio de bruxas com poderes sobrenaturais, devido à sua aliança com Satanás. [13]

As transformações sociais, políticas e econômicas que tiveram início na baixa Idade Média, representadas principalmente pela reforma religiosa, absolutismo político e expansão comercial, deram azo ao movimento denominado Renascimento cultural, ocorrido entre os séculos XIV e XVI.

O Renascimento inspirou-se na Antiguidade clássica e foi buscar na cultura greco-romana, principalmente no antropocentrismo, valores pertinentes à nova realidade urbana e comercial. [14]

Com essa volta de valores pagãos, as drogas retomam seu lugar de destaque como substâncias terapêuticas, passando a ser utilizadas principalmente por médicos e boticários europeus e como meio recreativo, constatando-se também um aumento significativo no consumo de bebidas. [15]

Para evitar as perseguições dos inquisidores pelo uso de substâncias tidas como contrárias aos postulados cristãos, foi necessário separar a farmacologia da magia, de forma a "reduzir o reputadamente sobrenatural a uma coisa prosaica, como as propriedades de certas plantas" [16], e ainda "mostrar que o prosaico apresentava grande utilidade para todos, sendo pura e saudável medicina" [17].


1.5 O processo de expansão marítima e comercial e sua relação com as drogas.

Todo esse processo de desenvolvimento econômico, que começa a se intensificar no século XVI com as grandes navegações e tem seu auge com a Revolução Industrial, foi responsável pela mudança de perspectiva das nações em relação às drogas.

Antes tidas como elementos terapêuticos ou recreativos, determinadas substâncias passam a ser encaradas sob sua potencial capacidade de gerar receita econômica aos países colonizadores, inseridos em uma realidade de expansão comercial.

Os primeiros estados a se lançarem ao mar, principalmente Portugal e Espanha, mantiveram intenso contato com o significativo arcabouço botânico das Américas e, consequentemente, com as substâncias estimulantes, perturbadoras ou depressoras do sistema nervoso central, obtidas por meio das mais variadas ervas.

A interação entre colonizadores e colonizados permitiu a obtenção de conhecimento acerca dessas novas drogas e a conseqüente introdução das mesmas na Europa.

Comentando acerca da produção e comércio de cocaína na América espanhola, Eduardo Galeano conta que:

Os espanhóis estimularam intensamente o consumo de coca. Era um negócio esplêndido. No século XVI, gastava-se tanto, em Potosí, em roupa européia para os opressores como em coca para os índios oprimidos. Quatrocentos mercadores espanhóis viviam, em Cuzco, do tráfico de coca; nas minas de Potosí, entravam anualmente cem mil cestos, com um milhão de quilos de folha de coca. A Igreja cobrava impostos sobre a droga. O inca Garcilaso de la Veja nos diz, em seus ‘comentários reais’, que a maior parte da renda do bispo, dos cônegos e demais ministros da igreja de Cuzco provinha dos dízimos sobre a coca, e que o transporte e a venda deste produto enriqueciam a muitos espanhóis. [18]

Além da cocaína produzida na América espanhola, outros produtos passaram a ser também explorados, entre eles a erva-mate, o cacau, o guaraná, e principalmente o tabaco, droga mais difundida na América.

Buscando a adequação a essa nova realidade econômica mundial, países como Inglaterra, França e Holanda vão exercer seu imperialismo principalmente sobre o continente asiático.

Acerca do processo de transformação das drogas em produtos comerciais e a sua comercialização em larga escala, exerceu papel pontual o conflito entre Inglaterra e China conhecido como Guerra do Ópio, ocorrido nos idos de 1839 a 1842.

A compreensão das diferenças existentes entre a civilização chinesa e os Estados do Ocidente, não apenas sob o aspecto econômico, mas também social e cultural, e a percepção do desenrolar das questões relativas ao ópio, permitem traçar as bases do surgimento da ideologia do proibicionismo e, consequentemente, das discussões interestatais sobre a questão das drogas.


1.6 As bases históricas da Guerra do Ópio

Até meados do século XIX, os chineses baseavam suas relações com os demais Estados na premissa de que a China representava o reino central do mundo, enquanto os demais países mantinham-se em posição periférica.

Durante a dinastia Qing o Estado chinês não se preocupava com os ganhos que poderiam ser obtidos com o comércio exterior e, de igual forma, não defendia os interesses chineses nas regiões em que tais práticas comerciais eram efetuadas, como por exemplo, no sudeste asiático.

A China reservava-se o direito absoluto de impor regras rígidas sobre o comércio com outros povos, controlando os sujeitos das relações mercantis, a localização e freqüência das trocas e até mesmo os produtos a serem envolvidos nas transações.

No início da dinastia Qing, missões portuguesas e holandesas, que buscavam privilégios comerciais com a China, restaram frustradas ao se depararem com as tendências isolacionistas do Império do Oriente, sendo obrigadas a respeitar intervalos estipulados pela Casa Imperial chinesa, instituição burocrática autônoma que controlava os negócios do imperador, para a efetivação das trocas comerciais.

Com o aumento do interesse ocidental pelo seu extenso mercado, a China tornou ainda mais rígida sua barreira de proteção econômica, limitando, em 1760, o comércio europeu ao porto de Cantão.

Em pleno século XVIII, tais diretrizes mercantis chocavam-se com aquelas adotadas pelas novas potências ocidentais – Inglaterra, França e Holanda – que buscavam mercados para seus produtos.

Observava-se também o aumento da demanda de produtos chineses como chá, porcelana, seda e artigos decorativos na Europa e na América, fenômeno esse que não fora acompanhado pelo aumento da demanda chinesa por produtos de exportação ocidental, como algodão, lã, pele, estanho e chumbo.

O ano de 1770 foi marcado pelo desequilíbrio da balança de exportação e importação do Ocidente com a China, desequilíbrio esse agravado ainda mais pelo intenso fluxo de prata rumo ao Império do Oriente, já que os produtos chineses eram principalmente adquiridos em troca do metal precioso.

A Inglaterra, exercendo suas pretensões imperialistas, havia estabelecido diversas colônias na Índia, nas quais explorava a produção de ópio, aproveitando a fertilidade da terra indiana e a grande disponibilidade de mão-de-obra.

Nesse ínterim, a Companhia das Índias Orientais, fundada pelos britânicos em 1600, tornara-se um grande empreendimento, atraindo vultosos investimentos, conquistando territórios e estabelecendo o monopólio da compra do ópio indiano.

No final do século XVIII, a exportação de ópio para a China surgia como solução para o problema de balança comercial desfavorável enfrentado pelos ingleses.

Ao invés de envolver-se diretamente com o transporte do produto da papoula, a Companhia das Índias Orientais concedia licença a mercadores, que vendiam o ópio na China, depositavam a prata obtida nessa comercialização com agentes da Companhia instalados no porto de Cantão, e recebiam cartas de crédito.

Estabelecia-se portanto um comércio triangular bastante lucrativo entre Inglaterra, Índia e China: O ópio produzido na Índia era vendido a comerciantes chineses, que pagavam em prata pelo produto indiano; com o metal precioso, a Companhia das Índias Orientais adquiria os produtos tão em voga na Europa, os quais eram vendidos na Inglaterra.

A primeira proibição de comercialização de ópio com os europeus ocorreu em 1729, estabelecida pelo imperador Yougzheng, da dinastia Qing, preocupado com o fluxo de metais preciosos da China para a Europa em função da aquisição da droga. Entretanto, vale ressaltar, essa primeira medida do Império chinês não proibiu o cultivo da dormideira em seu território.

Em 1793, fora expedido édito que proibia não só a importação de ópio, mas também seu cultivo na China, estabelecendo punições para aqueles que fossem pegos comercializando e até mesmo fazendo uso do entorpecente.

No entanto, tais medidas proibitivas somente estimularam o contrabando e aumentaram o lucro dos países exportadores, desencadeando de igual forma uma onda de corrupção entre os altos funcionários da burocracia chinesa.

Sobre as práticas de contrabando, Jonathan D. Spence escreveu que:

os mercadores de Cohong não se atreviam mais a fazer negócios com ópio, mas os comerciantes estrangeiros descobriram que, se ancorassem em pontos selecionados da costa da China, havia muitos aventureiros chineses dispostos a vir comprar seus carregamentos de ópio. Grandes balsas fortificadas ancoradas perto da ilha de Lintin, na baía abaixo de Cantão, também proporcionavam um local conveniente de distribuição da droga. Em botes rápidos de fundo chato, a vela ou a remo, os traficantes chineses conseguiam evitar todas as tentativas de interceptação por parte das escassas forças navais Qing. Depois disso, distribuíam o ópio pela rede de rotas comerciais locais, por estradas, rios e trilhas. [19]

Em 1838, o então imperador chinês Daoguang, nomeou Lin Zexu como comissário imperial, enviando-o a Cantão com a determinação de por fim ao tráfico de ópio.

As intervenções do comissário Lin concentraram-se em dois grupos distintos: os cidadãos de Cantão, entre os quais, "até a metade de maio de 1839, mais de 1600 chineses haviam sido presos e cerca de dezesseis toneladas de ópio e 43 mil cachimbos confiscados" [20]; e os estrangeiros, dos quais foi exigida a cessação da comercialização e a entrega de todo o ópio que seria objeto de transação com a China, não tendo sido oferecido nenhum tipo de compensação pelo produto que fosse confiscado.

Diante da desídia dos comerciantes estrangeiros, que se ofereceram a entregar simbólicas mil caixas de ópio, Lin Zexu proclamou um bloqueio em Cantão, impedindo a saída dos cerca de 350 estrangeiros residentes no local, o que resultou na aceitação da entrega de cerca de 20 mil caixas de ópio e a conseqüente destruição de aproximadamente 1.400 (um mil e quatrocentas) toneladas do entorpecente. [21]

As notícias do bloqueio e do confisco do ópio em Cantão fizeram com que empresas e câmaras de comércio inglesas pressionassem o Parlamento a tomar drásticas atitudes.

O Parlamento, apesar de não ter declarado guerra à China, enviou "dezesseis belonaves armadas com 540 canhões, quatro vapores armados recentemente projetados, 28 navios de transporte e 4 mil soldados" [22] que, auxiliados por reforços provenientes da Índia, capturaram diversas cidades chinesas, entre elas a grande cidade de Nanquim. [23]

Em 29 de agosto de 1842, foram assinados os termos do Tratado de Nanquim, pondo fim à Guerra do Ópio.

O mais importante tratado da história moderna da China era formado por doze artigos que, dentre outras determinações, estabelecia o pagamento pelo Império de seis milhões de dólares como compensação do ópio entregue em Cantão; o pagamento de cerca de doze milhões de dólares a título de indenização pela despesa com os combates; a abertura de cinco cidades chinesas, Cantão, Fuzhou, Xiamen, Ningbo e Xangai, para a comercialização de produtos ingleses e a cessão da ilha de Hongcong à coroa inglesa. [24]

Na esteira do acordo celebrado com a Inglaterra, a China firmou outros com diversos países, entre eles Estados Unidos e França, tomando assim novos rumos em sua política externa, os quais, juntamente com movimentos sociais que começavam a eclodir em território chinês, intensificaram a instabilidade interna do país e resultaram em profundas alterações na ordem social, política e econômica.

Apesar do momento de comoção interna vivido pelo Império chinês, os ingleses, frustrados com os fracos resultados econômicos obtidos com o Tratado de Nanquim, formularam diversas solicitações que representaram uma renegociação daquele tratado.

Dentre outras reivindicações, destacam-se:

acesso garantido aos ingleses a todo o interior da China, ou, se não isso, a toda a área costeira de Zhejiang e ao baixo Yangzi até Nanquim; legalização do comércio de ópio; cancelamento das taxas de circulação internas sobre as importações estrangeiras; supressão da pirataria; imposição de regras para a emigração de mão-de-obra chinesa; residência em Pequim para um embaixador britânico e referência à versão britânica, em vez de à chinesa, em todas as disputas de interpretação do novo tratado revisado. [25]

Diante da oposição da dinastia Qing em analisar suas proposições, a Inglaterra retoma, em 1856, as ações militares em Cantão, que resultaram na assinatura do Tratado de Tiajin, em 1858.

As medidas relativas ao produto da papoula adotadas pelo governo chinês após as Guerras do Ópio representaram um duro golpe aos interesses tanto dos ingleses quanto dos demais países que se aproveitavam das vantagens econômicas auferidas com o comércio da droga.

A legalização da importação e do consumo de ópio e a posterior liberação do cultivo da dormideira na China fizeram com que o país, já nos idos de 1890, produzisse aproximadamente 85% (oitenta e cinco por cento) de sua demanda interna, ameaçando ainda a hegemonia indiana, ou melhor, inglesa, no abastecimento da Ásia com o ópio. [26]

O declínio no rendimento da exploração do ópio desencadeou o surgimento de políticas contrárias ao tráfico de respectiva droga em toda a Europa e também nos Estados Unidos da América.


1.7 Os Estados Unidos e o surgimento do Proibicionismo

Durante o século XIX, observou-se uma significativa evolução da Química como ciência e o conseqüente isolamento do princípio ativo de diversas plantas, entre eles a morfina, um dos alcalóides do ópio, no ano de 1806, a codeína em 1832, a cocaína em 1860 e a heroína em 1883. [27]

Valendo-se de intensa divulgação publicitária, tais drogas surgem como solução para problemas de saúde, passando a ser indicadas como estimulantes e analgésicos capazes de aplacar a dor ou a tosse, sendo vendidas livremente em farmácias e drogarias da América, Ásia e Europa. [28]

Apesar de não constituir-se, nesse período, como problema de ordem jurídica ou política, inicia-se toda uma movimentação contrária às drogas, em especial por parte da sociedade norte-americana que, baseada em princípios morais, atribui a tais substâncias, capazes de alterar comportamentos, a causa da degradação social no mundo pós-revolução industrial.

Um dos fatores primordiais que conduziram a essa ainda impúbere mudança de perspectiva foi a associação do consumo de drogas à violência e a classes sociais menos abastadas. [29]

Discorrendo sobre tal aspecto, o qual se encontra na origem da ideologia do proibicionismo, Antônio Escohotado escreve que:

"As diferentes drogas associam-se agora a grupos definidos por classe social, religião ou raça; as primeiras vozes de alarme sobre o ópio coincidem com a corrupção infantil atribuída aos chineses, o anátema da cocaína com ultrajes sexuais dos negros, a condenação da marijuana com a irrupção de mexicanos, e o propósito de abolir o álcool com imoralidades de judeus e irlandeses. Todos estes grupos representam o ‘infiel’ – por pagão, por papista ou por verdugo de Cristo -, e todos se caracterizam por uma ‘inferioridade’, tanto moral como econômica. Outras drogas psicoativas supertóxicas – como os barbitúricos – não chegam a vincular-se a marginais e imigrantes, e carecerão de estigma para o reformador moral". [30]

Com a intensificação dos brados proibicionistas, surge no seio da sociedade civil norte-americana um grande número de sociedades e ligas que lutam pela moralização dos costumes e pela abolição do consumo de álcool e demais drogas, entre elas o Partido Proibicionista (Prohibition Party), criado em 1869, a Sociedade nova-iorquina para supressão do vício, em 1868, e a Liga Anti-Saloon (Anti Saloon League), fundada em 1895. [31]

A cooptação de outros movimentos sociais e profissionais para a causa moralista, entre eles as associações médicas e farmacêuticas, que ainda buscavam a obtenção do monopólio sobre a prescrição de drogas, fez com que a ideologia proibicionista alcançasse os meios políticos.

Entretanto, antes mesmo de aprovar leis internas de combate às drogas, o governo dos Estados Unidos inicia sua cruzada contra os entorpecentes em reuniões internacionais, tendo sido a primeira delas realizada com o intuito de discutir a questão do ópio na China.


1.8 Os EUA e a Conferência de Xangai (1909)

No final do século XIX, observou-se um aumento considerável no consumo de ópio nos EUA, provocado em grande parte pela intensa imigração de chineses para o território americano.

A difícil fase nas relações comerciais entre EUA e China, vivida durante o governo do presidente Franklin Roosevelt, aliada à pressão exercida pelos movimentos moralistas, deram azo à convocação, pelo governo norte-americano, da Conferência de Xangai, ocorrida em 1909, a qual contou com a participação de 13 (treze) países.

Apesar de não ter produzido os resultados práticos almejados pela delegação norte-americana, como a elaboração de determinações impositivas acerca das drogas, a Conferência de Xangai representou o marco inicial da preocupação internacional sobre entorpecentes, estabelecendo as bases para a realização de outras Conferências. [32]


1.9 A legalização da ideologia do proibicionismo nos EUA

A Lei Harrison (Harrison Act), editada em 1914, foi a primeira lei norte-americana visando o controle sobre a produção, fornecimento e posse de ópio, morfina e cocaína. Tal lei pretendia restringir o uso das respectivas drogas aos casos em que houvesse determinação médica, criando ainda o "Narcotics Control Department", organismo responsável pela fiscalização de tais substâncias. [33]

O ano de 1919 consagrou a vitória da ideologia do proibicionismo, com a aprovação da lei federal que ficara conhecida como Lei Seca (Volstead Act). A 18ª Emenda à Constituição norte-americana proibiu a produção, o transporte, a importação e a exportação de bebidas alcoólicas em todo o território do país.

Entretanto, em doze anos de vigência, a Lei Seca desencadeara a expansão sem precedentes da corrupção em todos os níveis institucionais norte-americanos, e a formação de diversas organizações criminosas que, com a revogação de tal lei, passariam a explorar outras substâncias proibidas, como a cocaína e a morfina.


1.10 Conferências Internacionais sobre drogas anteriores à criação da ONU

A ideologia do proibicionismo conseguira se desenvolver e transpor fronteiras por meio das conferências internacionais que se seguiram à Convenção de Xangai de 1909.

Em dezembro de 1911, também patrocinada pelos EUA, ocorreu a Conferência Internacional do Ópio, em Haia, na Holanda. Assinado em janeiro de 1912, o documento proveniente da conferência apresentava diretrizes no sentido de que os Estados signatários deveriam proibir em seus territórios o uso de ópio e cocaína que não tivesse sido estabelecido por determinação médica. [34]

Prejudicada pelo início dos combates da Primeira Guerra Mundial, a convenção internacional em destaque entrou em vigor em 1921, tendo sido o seu documento incorporado como anexo ao Tratado de Versalhes.

Após a primeira grande guerra foi fundada a Liga das Nações, que se constituiu como a primeira organização internacional nos moldes atualmente conhecidos, com fins políticos, poder regulamentar, personalidade internacional e modos de decisão pela maioria, e cujas bases e objetivos foram lançados pelo presidente dos Estados Unidos na época, Woodrow Wilson. [35]

A convenção constitutiva da Liga das Nações, em seu artigo 23, "c", "reconheceu a atribuição de elaboração de acordos sobre o tráfico de ópio e outras drogas nocivas" [36], tendo sido criada em 1921 a "Comissão Consultiva do ópio e outras drogas nocivas".

Sob a égide da organização intergovernamental em comento, a qual apresentava como membros permanentes de seu Conselho Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra e Japão, [37] foram realizadas outras conferências, entre elas a de 1924, que resultou na assinatura do acordo de Genebra, em 19 de fevereiro de 1925, o qual efetivou as disposições da Conferência de Haia, de 1912; a conferência de Genebra ocorrida também em 1924, no mês de novembro, que ampliou o conceito de entorpecente e estabeleceu as bases do controle do tráfico internacional; e as Conferências de 1931 e 1936, também celebradas em Genebra, sede social da Sociedade das Nações, em que se estabeleceu a obrigação de os Estados signatários proibirem a disseminação do vício em seus territórios. [38]


1.11 Convenções internacionais posteriores à criação da ONU

Após a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente em 1946, a Liga das Nações fora sucedida pela Organização das Nações Unidas, sob a influência da qual foram assinados os protocolos de 1946, 1948 e 1953, que além de atualizar acordos anteriores, restringiram a produção de ópio exclusivamente para uso médico.

1.11.1 Convenção Única de Nova York sobre Entorpecentes (1961)

A Convenção Única sobre Entorpecentes, assinada em 1961 na sede da ONU, representou o mais completo documento internacional de pretensões proibicionistas.

Fixando a competência da Organização das Nações Unidas em matéria de fiscalização internacional de entorpecentes, o texto da Convenção elenca e classifica algumas substâncias, distribuindo-as em quatro listas, amplia as medidas de controle, burocratiza a estrutura fiscalizadora internacional e estabelece o procedimento necessário para a inclusão de novos psicotrópicos a serem controlados. [39]

Introduzindo tais objetivos a serem alcançados, o preâmbulo do documento esclarece as intenções dos Estados-partes e preconiza a cooperação internacional no combate ao uso de entorpecentes desviado de sua destinação original:

Preâmbulo – As Partes, preocupadas com a saúde física e moral da humanidade, reconhecendo que o uso médico dos entorpecentes continua indispensável para o alívio da dor e do sofrimento e que medidas adequadas devem ser tomadas para garantir a disponibilidade de entorpecentes para tais fins.

Reconhecendo que a toxicomania é um grave mal para o indivíduo e constitui um perigo social e econômico para a humanidade, conscientes de seu dever de prevenir e combater esse mal.

Considerando que as medidas contra o uso indébito de entorpecentes, para serem eficazes, exigem uma ação conjunta e universal, julgando que essa atuação universal exige uma cooperação internacional, orientada por princípios idênticos e objetivos comuns, reconhecendo a competência das Nações Unidas em matéria de controle de entorpecentes e desejosas de que os órgãos internacionais a ele afetos estejam enquadrados nessa Organização, desejando concluir uma convenção internacional que tenha aceitação geral e venha substituir os tratados existentes sobre entorpecentes, limitando-se nela o uso dessas substâncias a fins médicos e científicos e estabelecendo uma cooperação e uma fiscalização internacionais permanentes para a consecução de tais finalidades e objetivos, concordam, pela presente, no seguinte. [40]

Observa-se pela análise do texto inicial da convenção em destaque a busca pela transnacionalização do controle das drogas, a qual se consolidará com a aprovação da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de Viena (1971), e que se "insere no projeto de transnacionalização do controle social, cuja finalidade é dirimir as fronteiras nacionais para o combate à criminalidade" [41].

Ao entrar em vigor, a Convenção Única sobre Entorpecentes anulou as convenções e acordos anteriores, salvo a Convenção de Genebra de 1936, que restou parcialmente revogada.

Com tal medida, buscou-se englobar em um único instrumento internacional todas as determinações de controle da produção, fabricação, exportação, importação, distribuição, comércio, uso e posse de entorpecentes.

As convenções e acordos anteriores a 1961 que restaram substituídos foram arrolados pelo artigo 44 da Convenção Única sobre Entorpecentes. [42]

A persecução dos objetivos traçados pela Convenção de 1961 ficou a cargo da Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social e do Órgão Internacional de Fiscalização de Entorpecentes.

De acordo com o artigo 8º do documento em análise, coube à Comissão de Entorpecentes velar pelo fiel atendimento aos dispositivos da Convenção, fazendo recomendações para a execução de suas finalidades e pedindo a atenção dos Estados não signatários para decisões ou determinações que fossem adotadas.

Já ao Órgão Internacional de Fiscalização coube zelar pela aplicação dos sistemas de estimativas e estatísticas, impor limitações à produção internacional de ópio, fiscalizar o cultivo da dormideira, das folhas de coca e da planta da cannabis, estabelecer regime de licença para a fabricação de entorpecentes, derivados ou não das plantas citadas, e fiscalizar o comércio internacional.

Os Estados-membros forneceriam ao Órgão estatísticas relativas à produção ou fabricação de entorpecentes, além de dados relativos a consumo e apreensões efetuadas. [43]

Com base nessas informações, o Órgão Internacional cotejaria os limites de fabricação e importação com a quantidade de entorpecentes consumida em cada território, notificando os Estados-membros que extrapolassem as estimativas.

A efetividade da fiscalização estava diretamente relacionada à obediência ao regime de licenciamento imposto à produção, comércio e distribuição de substâncias arroladas pela Convenção, além do cumprimento das obrigações estabelecidas aos Estados-membros e a criação pelos mesmos de órgãos nacionais que controlassem a fabricação de entorpecentes. [44]

Na tentativa de determinar quais substâncias encontravam-se sob a tutela de seus dispositivos, o documento internacional em análise apresentava, em anexo, quatro listas: as listas I e II relacionavam as substâncias tidas como entorpecentes, fossem eles naturais ou sintéticos; a lista III apresentava um rol de preparados de entorpecentes e a lista IV abrangia entorpecentes perigosos e suscetíveis de uso indevido, sujeitando-se, portanto, a uma fiscalização especial.

Vale ressaltar que, diante da perspectiva de avanços nos campos da Química e da Medicina, a própria convenção previu a possibilidade de surgimento de novas substâncias capazes de produzir efeitos nocivos, criando, portanto, um procedimento específico para a inserção das mesmas nas respectivas listas.

O artigo 3º da Conferência de 1961 determinava que, de posse de informações que ensejassem alterações em uma das listas de substâncias, qualquer Estado-membro ou a própria Organização Mundial de Saúde poderia notificar o Secretário-Geral das Nações Unidas, o qual repassaria a notificação aos demais países e à Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social.

Se a nova substância a ser analisada se enquadrasse nas listas I ou II, tratando-se portanto de entorpecente, as partes analisavam a possibilidade de aplicação provisória das medidas de fiscalização estabelecidas pela própria Convenção.

De acordo com a recomendação da OMS sobre os efeitos nocivos da substância, a Comissão decidiria pela pertinência ou não da inclusão da mesma em uma das listas.

Tratando a notificação realizada por alguma das partes de substância já inserida em lista, a Comissão, analisando o parecer da OMS, decidiria pela transferência da substância de uma para outra lista ou mesmo pela sua exclusão.

Vale lembrar que todas as decisões tomadas pela Comissão de Entorpecentes, além de se sujeitarem a revisão pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, deveriam ser comunicadas pelo Secretário-Geral a todos os Estados-membros, aos Estados não-membros que faziam parte da Convenção, à OMS e ao Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes.

No que concerne às ações legais contra o tráfico ilícito e a posse de entorpecentes, a Convenção Única de 1961 buscou estabelecer uma cooperação mútua entre as partes e as organizações internacionais, visando um combate efetivo e generalizado. [45]

Sob o ponto de vista teórico, começa a ser gerado o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos envolvidos com drogas, que se fundamentava na distinção entre consumidor e traficante, por meio da utilização, nas próprias legislações, dos binômios dependência-tratamento e tráfico-repressão. [46]

Segundo Salo de Carvalho:

sobre os culpados (traficantes) recairia o discurso jurídico do qual se extrai o estereótipo criminoso do corruptor da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o discurso médico consolidado pela perspectiva sanitarista em voga na década de cinqüenta, que difunde o estereótipo da dependência. [47]

O artigo 38 da Convenção de 1961 é um claro exemplo da adoção dessa teoria da diferenciação:

Tratamento de Toxicômanos

1. As partes darão especial atenção à concessão de facilidades para o tratamento médico, o cuidado e a reabilitação dos toxicômanos.

2. Se a toxicomania construir um problema grave para uma das Partes, e se seus recursos econômicos o permitirem, é conveniente que essa Parte conceda facilidades adequadas para o tratamento eficaz dos toxicômanos. [48]

O documento também faz indicações de medidas internas a serem adotadas pelos países-membros, ressaltando, de forma recorrente, o respeito aos dispositivos constitucionais, penais e processuais penais de cada legislação. [49]

Cabe ressaltar ainda que em 25 de março de 1972, em Conferência de plenipotenciários convocada pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, os países membros firmaram um protocolo de emendas à Convenção Única de Entorpecentes de 1961, documento esse aprovado no Brasil por meio do Decreto Legislativo n.º 88, de 1972.

O texto do protocolo em questão alterou disposições relativas à composição e atribuição do Órgão Internacional, à política de estimativas e fornecimento de dados e estatísticas a serem fornecidas pelos Estados-membros, assim como algumas medidas relativas à fiscalização e controle de substâncias previstas nas listas apresentadas pela própria Convenção.

1.11.2 Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de Viena (1971)

Analisando as quatro listas de substâncias apresentadas pela Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 observa-se a não inclusão de produtos sintéticos como as anfetaminas e os barbitúricos.

Visando abranger as novas substâncias e atualizar os mecanismos de fiscalização e controle, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas solicitou a convocação de uma nova convenção, tendo sido realizada em 21 de fevereiro de 1971, na cidade de Viena, a Conferência sobre Substâncias Psicotrópicas.

Analisando o texto desta convenção, observa-se primeiramente uma mudança no conceito utilizado para denominar as substâncias sujeitas a controle.

O termo "entorpecente", recorrente no texto da Convenção Única de 1961, foi substituído pela expressão "substância psicotrópica", com significado mais abrangente, designando qualquer substância de origem natural ou sintética ou qualquer produto presente em uma das quatro listas da nova conferência.

Não realizando alterações relativas aos órgãos internacionais, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 aperfeiçoou todo o sistema de controle e fiscalização da produção, fabricação, exportação, importação, distribuição, comércio, uso e posse de substâncias psicotrópicas, além de estabelecer listas de substâncias usadas com maior freqüência.

Essa evolução dos instrumentos internacionais de repressão às drogas sofreu influência direta da política adotada pelo governo dos Estados Unidos a partir do final da década de sessenta, mais especificamente durante o governo de Richard Nixon, política essa caracterizada pelo recrudescimento da repressão ao comércio e ao consumo de substâncias entorpecentes e que ficara conhecida como "Guerra às Drogas" (War on Drugs).

Acerca do governo do presidente Nixon e sua política contrária as drogas, Salo de Carvalho escreveu que:

Nixon, com o importante e estratégico trabalho de George Bush, que ocupava na época o cargo de representante dos EUA nos assuntos relativos à política de drogas na Organização das Nações Unidas (ONU), conduz a opinião pública a eleger as drogas, principalmente a heroína e a cocaína, como (novo) inimigo interno da nação. Todavia, com a popularização do consumo de heroína e a criação dos programas de metadona, forma indireta de controlar e legalizar o consumo, o inimigo interno teve de ser substituído, projetando-o ao exterior.

Rosa Del Olmo lembra que o processo de transferência, com a responsabilização dos países marginais pelo consumo interno de drogas nos EUA, acabou por produzir a dicotomização "mundo livre" versus "países inimigos". [50]

Na esteira da "Guerra às Drogas" surge o discurso jurídico-político de controle dos indivíduos envolvidos com substâncias psicotrópicas, atribuindo ao traficante o papel de inimigo interno da nação e justificando, dessa maneira, o incremento nas penas e o desrespeito a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. [51]

Com a efetivação da transnacionalização do controle de drogas ilícitas, alcançada através desta Convenção e incentivada, em especial, pelos Estados Unidos, os discursos de combate às drogas rompem fronteiras e passam a influenciar de forma significativa as políticas de segurança pública dos países da América Latina.

A Convenção de 1971 ampliou as medidas a serem adotadas pelos Estados-membros na luta contra o abuso de substâncias psicotrópicas e contra o tráfico ilícito, estabelecendo ainda as disposições penais pertinentes a cada conduta.

Acerca das medidas penais a serem adotadas em relação a usuários de drogas, o artigo 22 do documento em questão determina que:

Art. 22, I, "b". não obstante a alínea precedente, quando dependentes de substâncias psicotrópicas houverem cometido tais delitos, as partes poderão tomar providências para que, como uma alternativa à condenação ou pena ou como complemento à pena, tais dependentes sejam submetidos a medidas de tratamento, pós-tratamento, educação, reabilitação, e reintegração social, em conformidade com o parágrafo 1 do artigo 20. [52]

Percebe-se claramente a adoção do discurso médico-jurídico fundamentador da teoria da diferenciação, na medida em que prescreve o tratamento como solução a ser adota em casos de abuso de drogas.

O artigo 20 da convenção sintetiza essa preocupação:

1 - As partes comprometem-se a adoptar todas as medidas suscetíveis de prevenir o abuso das substâncias psicotrópicas e assegurar a rápida identificação, assim como o tratamento, a educação, a pós-cura, a readaptação e a reintegração social das pessoas envolvidas; elas comprometem-se a coordenar os seus esforços para a consecução desse fim.

2 – As partes comprometem-se a favorecer tanto quanto possível a formação do pessoal para assegurar o tratamento, a pós-cura, a readaptação e a reintegração social das pessoas que abusam de substâncias psicotrópicas.

3 – As partes comprometem-se a auxiliar as pessoas que necessitem de apoio no exercício da sua profissão, no sentido de adquirirem o conhecimento dos problemas resultantes do abuso das substâncias psicotrópicas e pela sua prevenção, e comprometem-se a desenvolver igualmente este conhecimento no seio do grande público, no caso de se considerar que o abuso destas substâncias alastre muito rapidamente. [53]

1.11.3 Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas (1988)

A convenção aprovada pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n.º 162, de 14 de junho de 1991, resume a política de repressão às drogas ilícitas adotada durante toda a década de oitenta por diversos tratados internacionais.

Surge, no entanto, uma nova preocupação: a associação do tráfico ilícito com organizações criminosas internacionais, exigindo a intensificação dos meios jurídicos de combate às drogas e uma maior cooperação internacional, já que a erradicação do tráfico ilícito de entorpecentes é tida como responsabilidade coletiva de todos os estados.

O discurso alarmista inicia-se no próprio preâmbulo:

As partes nesta Convenção, profundamente preocupadas com a magnitude e a crescente tendência da produção, da demanda e do tráfico ilícitos de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, que representam uma grave ameaça à saúde e ao bem-estar dos seres humanos e que têm efeitos nefastos sobre as bases econômicas, culturais e políticas da sociedade;

Profundamente preocupadas também com a sustentada e crescente expansão do tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas nos diversos grupos sociais e, em particular, pela exploração de crianças em muitas partes do mundo, tanto na qualidade de consumidores como na condição de instrumentos utilizados na produção, na distribuição e no comércio ilícitos de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, o que constitui um perigo de gravidade incalculável;

Reconhecendo os vínculos que existem entre o tráfico ilícito e outras atividades criminosas organizadas, a ele relacionadas, que minam as economias lícitas e ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos Estados;

Reconhecendo também que o tráfico ilícito é uma atividade criminosa internacional, cuja supressão exige atenção urgente e a mais alta prioridade;

Conscientes de que o tráfico ilícito gera consideráveis rendimentos financeiros e grandes fortunas que permitem às organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas da administração pública, as atividades comerciais e financeiras lícitas e a sociedade em todos os seus níveis;

Interessadas em eliminar as causas profundas do problema do uso indevido de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, compreendendo a demanda ilícita de tais drogas e substâncias e os enormes ganhos do tráfico ilícito;

Reconhecendo que a erradicação do tráfico ilícito é responsabilidade coletiva de todos os Estados e que, para esse fim, é necessária uma ação coordenada no nível da cooperação internacional;

Reconhecendo também a importância de fortalecer e intensificar os meios jurídicos efetivos para a cooperação internacional em matéria penal para suprimir as atividades criminosas internacionais do tráfico ilícito. [54]

Pautando-se pelo discurso jurídico-político, a Convenção de 1988 propõe aos Estados-membros a adoção de sanções penais no combate à conduta de posse de drogas para consumo pessoal, atribuindo às medidas de tratamento, educação e acompanhamento caráter substitutivo ou complementar.

Tal assertiva pode ser extraída do teor do parágrafo segundo e da alínea "d" do artigo 3º do texto da convenção:

2 – Reservados os princípios constitucionais e os conceitos fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Parte adotará as medidas necessárias para caracterizar como delito penal, de acordo com seu direito interno, quando configurar a posse, à aquisição ou o cultivo intencionais de entorpecentes ou de substâncias psicotrópicas para consumo pessoal, contra o disposto na Convenção de 1961, na Convenção de 1961 em sua forma emendada, ou na Convenção de 1971.

d) As Partes poderão, seja a título substitutivo de condenação ou de sanção penal por um delito estabelecido no parágrafo 2 deste Artigo, seja como complemento dessa condenação ou dessa sanção penal, propor medidas de tratamento, educação, acompanhamento posterior, reabilitação ou reintegração social do delinqüente. [55]


Notas

  1. Cf. ESCOHOTADO, Antônio. História elementar das drogas, 2004, p. 9.
  2. Ibidem, p. 10-11.
  3. Cf. VICENTINO, Cláudio. História Geral: ensino médio, 2006, p. 18.
  4. FILHO, Vicente Greco. Tóxicos: prevenção-repressão, 2009, p.12.
  5. Cf. ESCOHOTADO, Antônio. op.cit., p. 15-18.
  6. Cf. RIBEIRO, Marcelo; RIBEIRO, Maurides de Melo. Política mundial de drogas ilícitas: uma reflexão histórica, p. 1. Disponível em: <http://www.abead.com.br/boletim/arquivos/boletim41/ribeiro_e_ribeiro_poltica_mundial_de_drogas.pdf>. Acesso em: 17 abril 2009.
  7. Cf. VICENTINO, Cláudio. op. cit., p. 78.
  8. Cf. ESCOHOTADO, Antônio. op. cit., p. 15-18.
  9. Ibidem, p. 32-33.
  10. Cf. Ibidem, p. 26 e 33.
  11. Cf. VICENTINO, Cláudio. op. cit., p. 132-133.
  12. Ibidem, p. 115.
  13. ESCOHOTADO, Antônio. op. cit., p. 50.
  14. Cf. VICENTINO, Cláudio. op. cit., p. 189.
  15. Cf. ESCOHOTADO, Antônio. op. cit., p. 59.
  16. Ibidem, p. 60.
  17. Ibidem, p. 60
  18. GALEANO, Eduardo. As veias Abertas da América Latina, 1978, p. 58.
  19. SPENCE, Jonathan D., Em busca da China Moderna: quatro séculos de história, 2000, p.142.
  20. Ibidem, p.162.
  21. Cf. Ibidem, p. 163.
  22. Ibidem, p. 165.
  23. Cf. Ibidem, p 168-169.
  24. Cf. Ibidem, p.169-174.
  25. Ibidem, p.188.
  26. Cf. ESCOHOTADO, Antônio, op. cit., p. 81.
  27. Cf. Ibidem, p. 84.
  28. Cf. PITOMBO, Heitor. et al. Meu bem, meu mal. Aventuras na História, São Paulo, v. 68, n. 1, p. 42-45, mar. 2009.
  29. Cf. RIBEIRO, Marcelo; RIBEIRO, Maurides de Melo, op. cit., p. 4.
  30. ESCOHOTADO, Antônio, op. cit., p. 91-92.
  31. Cf. RIBEIRO, Marcelo; RIBEIRO, Maurides de Melo, op. cit., p. 5.
  32. Cf. ESCOHOTADO, Antonio. op. cit., p. 95-96.
  33. Ibidem, p. 96-97.
  34. Cf. RODRIGUES, Thiago M. S., A infindável guerra americana: Brasil, EUA e o narcotráfico no continente, p. 103. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/spp/v16n2/12116.pdf>. Acesso em: 19 abril 2009.
  35. Cf. Seminário Liga das Nações. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/7035430/Seminario-Liga-Das-Nacoes-1-Direito-USP>. Acesso em: 19 abril 2009.
  36. FILHO, Vicente Greco. op. cit., p. 51.
  37. Cf. Seminário Liga das Nações. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/7035430/Seminario-Liga-Das-Nacoes-1-Direito-USP>. Acesso em: 19 abril 2009.
  38. Cf. FILHO, Vicente Greco. op. cit., p. 51.
  39. Cf. Ibidem, p. 52.
  40. BRASIL. Decreto n. 54.216, de 27 de agosto de 1964. Promulga a Convenção Única sobre Entorpecentes. Disponível em: <http://e-legis.anvisa.gov.br/leisref/public/showAct.php?id=9480>. Acesso em: 2 maio 2009.
  41. CARVALHO, Salo de. A Política Crimina de Drogas no Brasil, 2006, p. 9.
  42. Art. 44. Ao entrar em vigor a presente Convenção, suas disposições farão cessar e substituirão, entre as partes, as disposições dos seguintes instrumentos: a) Convenção internacional do Ópio, assinada em Haia, a 23 de janeiro de 1912; b) Acordo relativo à fabricação, ao comércio interno e ao uso de ópio preparado, assinado em Genebra, a 11 de fevereiro de 1915; c) Convenção Internacional do Ópio, assinada em Genebra, a 19 de fevereiro de 1925; d) Convenção para limitar a fabricação e regulamentar a distribuição de entorpecentes, assinada em Genebra, a 12 de julho de 1931; e) Acordo para o controle do fumo de ópio no Extremo Oriente, assinado em Bankok a 27 de novembro de 1931; f) Protocolo assinado em Lake Success, a 11 de dezembro de 1946, de emenda aos Acordos, Convenções e Protocolos sobre entorpecentes, concluído, em Haia a 23 de janeiro de 1912; em Genebra, a 11 de fevereiro de 1925 a 19 de fevereiro de 1925 e a 13 de julho de 1931; em Bankok, a 27 de novembro de 1931 e em Genebra, a 26 de junho de 1936, exceto em relação à última Convenção citada; g) as Convenções e acordos mencionados nas alíneas "a", "b", "c", "d" e "e" emendadas pelo Protocolo de 1946, referido na alínea "f"; h) Protocolo assinado em Paris, a 19 de novembro de 1948, para submeter à fiscalização internacional de drogas não incluídas na Convenção de 13 de junho de 1931, visando limitar a fabricação e regulamentar a distribuição de entorpecentes, emendadas pelo Protocolo assinado em Lake Success, a 11 de dezembro de 1946; i) Protocolo para limitar e regulamentar o cultivo da dormideira, a produção, o comércio internacional, o comércio em grosso e uso do ópio, assinado em Nova York, a 23 de julho de 1953, no caso do referido Protocolo entrar em vigor; 2. Ao entrar em vigor a presente Convenção, o art. 9º da Convenção para Supressão do Tráfico Ilícito de Entorpecentes, assinada em Genebra, a 26 de junho de 1936, cessará e será substituído entre as partes na citada Convenção que sejam também Partes na presente Convenção pela alínea "b" do parágrafo 2º do artigo 36 da presente Convenção, com a ressalva de que qualquer das Partes em questão poderá notificar o Secretário-Geral que continua a manter em vigor o referido art. 9º".
  43. Cf. Art. 20 do Decreto n. 54.216/1964.
  44. Cf. Art. 21 a 31 do Decreto n. 54.216/1964.
  45. Cf. Art. 35 do Decreto n. 54.216/1964.
  46. Cf. CARVALHO, Salo de. op. cit., p. 10.
  47. Ibidem, p. 10.
  48. Art. 38 do Decreto n. 54.216/1964.
  49. Cf. Art. 36 do Decreto nº 54.216/1964.
  50. CARVALHO, Salo de. op. cit., p.14.
  51. Cf. Ibidem, p. 15-16.
  52. BRASIL. Decreto nº 79.388, de 14 de março de 1977. Promulga a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/internet/legislacao/legin.html/textos/visualizarTexto.html?ideNorma=428455&seqTexto=1&PalavrasDestaque=>. Acesso em: 15 maio 2009.
  53. Ibidem.
  54. BRASIL. Decreto n.º 154, de 26 de junho de 1991. Promulga a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/internet/legislacao/legin.html/textos/visualizarTexto.html?ideNorma=343031&seqTexto=1&PalavrasDestaque=>. Acesso em: 15 maio 2009.
  55. Ibidem.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELINO, Victor Pereira. A evolução do consumo de drogas. Aspectos históricos, axiológicos e legislativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2439, 6 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14469. Acesso em: 4 maio 2024.