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Uma análise do controvertido art. 1830 do CC/02, sob um cotejamento civil-constitucional

Uma análise do controvertido art. 1830 do CC/02, sob um cotejamento civil-constitucional

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SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. ENTIDADES FAMILIARES: PORMENORES DA CELULA MATER DA SOCIEDADE. 2.1 - A maleabilidade do conceito frente às conjunturas histórico-sociais. 2.2 - Do desprestígio da família não-matrimonializada à consagração do afeto. 3. OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO. 3.1 - Direitos sucessórios – Considerações gerais. 3.2 - Direitos sucessórios do cônjuge. 3.2.1 - Evolução histórica. 3.2.2 - Direito sucessórios do cônjuge atualmente (CC/02). 3.2.2.1 - Culpa: o verdadeiro motivo para o fracasso da relação?. 3.3 - Direitos sucessórios do companheiro. 3.3.1 - Concubinato e união estável – Diferenças entre amantes e companheiros. 3.3.2 - Evolução histórica. 4. ANÁLISE DO CONTROVERTIDO ARTIGO 1830 DO CC/02 E A BUSCA DA MELHOR SOLUÇÃO. 4.1 - Expondo o problema. 4.2 - Artigo 1790 do CC/02 – Uma breve análise. 4.3 - Em busca da solução mais justa. 4.3.1 - Atribuição da herança somente à esposa. 4.3.2 - Concorrência entre cônjuges e companheiros na sucessão da herança. 4.3.3 - Atribuição da herança somente à companheira. 5. CONCLUSÃO. 6. REFERÊNCIAS


1. INTRODUÇÃO

A presente investigação tem como objetivo principal a análise da aparente concorrência que poderia ocorrer entre cônjuge e companheiro no que se refere à atribuição dos direitos sucessórios quando da aplicação do artigo 1830 do Código Civil brasileiro.

Notória é a ausência de técnica na elaboração do referido dispositivo, visto que deixou margem a dúvidas de como deveria se proceder a sua aplicação, cabendo aos estudiosos do Direito buscar dirimir tal imprecisão.

Sendo assim, o presente estudo tem como objetivo buscar os critérios mais justos para se atribuir o montante hereditário no caso sob análise, partindo-se para tanto, do entendimento de que toda norma do ordenamento jurídico brasileiro deve ser interpretada conforme os ditames constitucionais.

A dignidade da pessoa humana, a igualdade substancial e, sobretudo o princípio da afetividade como critério para o reconhecimento da pluralidade das formas de família, tornaram-se fundamentos do Estado Brasileiro com a promulgação da Constituição Federal em 1988. A partir de então, todas as relações de Direito Civil passaram a serem revistas e funcionalizadas de acordo com os valores definidos pela Carta Magna.

Destarte, será com base nessa discussão sobre a reconstrução dos institutos do Direito Civil à luz dos ditames constitucionais que se pretende desenvolver o tema objeto de estudo deste trabalho.

Para tanto, inicialmente será feita uma análise da evolução conceitual, histórica e legislativa das entidades familiares, destacando-se as mudanças significativas dessa instituição no mundo contemporâneo e, em especial, a mudança axiológica promovida pela CF/88 no Direito Positivo Brasileiro, principalmente quando do reconhecimento de outras formas de família que não aquelas fundadas no matrimônio.

Posteriormente, visando uma melhor compreensão do conteúdo deste trabalho, mister se faz proceder a análise da disciplina jurídica da sucessão do cônjuge e do companheiro, paralelamente a dimensão e o alcance normativo do artigo 226, § 3º da CF e a viabilidade jurídico-constitucional da desequiparação no trato dos direitos sucessórios dessas entidades familiares.

Feita tais considerações, passa-se ao objeto de pesquisa propriamente dito, qual seja, o estudo crítico da problemática gerada pelo artigo 1830 do Código Civil de 2002, procurando-se mostrar as divergências doutrinárias e apresentando a interpretação que parece ser a mais coerente com a ordem jurídico-constitucional.


2. ENTIDADES FAMILIARES: PORMENORES DA CELULA MATER DA SOCIEDADE

Não obstante ser o tema da presente análise por demais complexo, não seria cientificamente correto estudá-lo de forma imediata, sem antes realizar uma reflexão acerca do conceito de família.

Pode-se dizer que a conceituação da instituição familiar é marcada por uma forte subjetividade, visto que, aquela depende de quem a define. Em razão disso, ao longo da história, as modificações culturais, sociais, políticas e geográficas, fizeram com que a definição daqueles que compõem a família sofresse profundas modificações.

Dias (2006, p. 178) sintetiza esta ideia dizendo que a família é "uma construção social, organizada através de regras culturalmente elaboradas, que transmitem modelos de comportamento, estando, por isso, em constante mutação."

Porém, a despeito desta constante mudança conceitual, graças a sua grande capacidade de ajustar-se às novas exigências do meio, a família tem conseguido sobreviver [01]. Esta nunca deixou de ser um dos pilares de sustentação das sociedades humanas, constituindo ao longo da história uma unidade essencial do viver humano.

Nesse diapasão, são as lições de Hironaka (2000, p.18):

Não se inicia qualquer locução a respeito da família se não se lembrar, a priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos. Sabe-se, enfim, que a família é, por assim dizer, a história, e que a história da família se confunde com a história da humanidade.

Tal importância da instituição familiar no desenvolvimento da história da humanidade decorre do fato do homem ser um ser social [02]. Isso significa que ele não consegue viver sozinho, pois depende de outros homens para a realização plena de sua natureza, e por isso se agrupa vivendo em sociedade [03] (BASTOS, 2004).

No meio social, através da formação de uma organização familiar, o homem encontrou um meio propício para que ele possa garantir a sua sobrevivência, mantendo, ao mesmo tempo, relações afetivas, culturais e até mesmo econômicas com os demais membros.

Nesse contexto, surge a família como primeira e a principal forma de agrupamento humano [04]. Logo, sendo a família composta por seres humanos, que evoluem continuamente, podemos afirmar que os conceitos e a compreensão do que é a família dentro do direito também evoluem.

Destarte, para se entender o atual conceito civil-constitucional da instituição familiar no âmbito da ordem jurídica brasileira, mister se faz proceder a uma breve análise da evolução desse instituto.

2.2 Do desprestígio da família não-matrimonializada à consagração do afeto

De início, não faltam referências de que a família tenha passado em alguns momentos pela organização matriarcal. Contudo, aceitar como um estágio obrigatório, preenchendo todo um período na evolução da família, a existência de um tipo no qual à mulher estaria reservada a direção do lar, parece realmente pouco provável (PEREIRA, 2007).

É inegável que a família viveu um importante período marcado pelo forte patriarcalismo. Na Roma antiga, a família compreendia um conglomerado, cujo elo se estabelecia no culto aos antepassados, tendo na figura do pater familias o senhor absoluto do núcleo familiar. O pater era considerado o chefe da família, possuindo sobre os demais membros do grupo um poder quase absoluto (COULANGES, 2005).

Nesse sentido, Pereira (2007, p.26) analisa de maneira sintética, mas não menos esclarecedora, a família romana:

O pater era ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz. Comandava, oficiava o culto dos deuses domésticos (penates) e distribuía justiça. Exercia sobre os filhos direito de vida e de morte (ius vitae ac necis), podia impor-lhes pena corporal, vendê-los, tirar-lhes a vida. A mulher vivia in loco filiae, totalmente subordinada à autoridade marital (in manu mariti), nunca adquirindo autonomia, pois que passava da condição de filha à de esposa, sem alteração na sua capacidade; não tinha direitos próprios, era atingida por capitis deminutio perpétua que se justificava propter sexus infirmitatem et ignorantiam rerum forensium. Podia ser repudiada pelo marido.

Neste momento, a família fundava-se no casamento, mas não guardava qualquer conotação afetiva. Por exemplo, via de regra, o casamento era arranjado pelo pater não podendo haver recusas por parte dos filhos.

Examinando a sociedade romana, Coulanges (2005, p.45) destaca:

Os historiadores do direito romano, observando com acerto que nem o nascimento nem o afeto foram alicerces da família romana, julgaram que tal fundamento deveria residir no poder paterno ou no do marido (...) o que unia os membros da família antiga era algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento, ou a força física: e esse poder se encontra na religião do lar e dos antepassados (...) a mulher só será de fato levada em conta quando a cerimônia sagrada do casamento a tiver iniciado no culto

Já durante a Idade Média, as famílias foram regidas pelo Direito Canônico, no qual, a única família reconhecida era aquela constituída pelo matrimônio. Neste período, as uniões concebidas fora do casamento foram duramente discriminadas, sofrendo restrições jurídicas e sociais (WALD, 2005)

Se a união fosse matrimonializada, então seria legítima. Se não fosse legalizada, seria ilegítima, sendo reprovada pela Igreja (PEREIRA, 2003).

Penetrando mais na seara da ordem jurídica brasileira, o Direito de Família era regulado, até o Código Civil de 1916, por normas que se pautavam pela moral sexual do século XIX, ou seja, tais normas refletiam uma sociedade machista e conservadora, na qual o homem era considerado o chefe da família e detinha o pátrio poder (WALD, 2005).

Mesmo com a virada do século, e a entrada em vigor do supracitado diploma legal, o modelo de família trazido na ordem jurídica brasileira, continuou marcado por ser um sistema patriarcal, hierarquizado e impessoal.

Neste sentido:

O Código Civil de 1916 era uma codificação do século XX, pois em 1899 Clóvis Beviláqua foi encarregado de elaborá-lo. Retratava a sociedade da época, marcadamente conservadora e patriarcal. Só podia consagrar a superioridade do homem. Transformou seu poder pessoal em autoridade, outorgando-lhe o comando exclusivo da família. Por isso, a mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, como os índios, os pródigos e os menores. Para trabalhar, precisava da autorização do marido (DIAS, 2005, p. 23).

Portanto, a família regulada pelo Código Civil de 1916 era estruturada nos moldes do início do século passado, onde, as relações patrimoniais detinham maior relevância. Além disso, havia uma discriminação em relação as uniões livres, de modo que apenas as uniões constituídas pelo matrimônio eram aceitas como legítimas. Portanto, o antigo Código trazia uma visão estreita e discriminatória da família, pois a limitava àquele grupo oriundo do casamento. Assim, toda união que não estava amparada pelas justas núpcias constituía uma associação atentatória aos ditames legais e morais da época.

Em suma, durante séculos a concepção de família foi fundada no matrimônio, com caráter patriarcal e hierarquizado. Entretanto, aos poucos, o centro da constituição familiar deixou de ser a sua organização autocrática, substituindo-se o princípio da autoridade para o da compreensão e do amor (PEREIRA, 2007).

No entanto, apesar da crescente diminuição do poder centralizador e autoritário da figura paterna, marca indelével da instituição familiar ao longo dos tempos, o patriarcalismo manteve-se em voga, embora vislumbre-se, claramente, seu constante e progressivo enfraquecimento.

Dessarte, motivada pelas transformações históricas ocorridas principalmente no último século, sofreu a instituição familiar mudanças estruturais, alterando essencialmente seus valores e a posição de seus personagens, retirando das mãos da figura paterna as exclusivas rédeas da casa, mitigando o seu poder outrora incontestável, dividindo o ônus da regência familiar com outros integrantes. Tal mudança na constituição familiar tem suas raízes cravadas na Revolução Industrial, com a redivisão sexual do trabalho, e na Revolução Francesa, com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade (WALD, 2005).

Em solo pátrio, com a ascensão do movimento feminista e a consequente Revolução Sexual, cujo marco inicial data a década de 60 do século XX, notam-se no bojo da sociedade brasileira os primórdios da queda do modelo patriarcal e sua conseguinte superação (WALD, 2005).

Nesse sentido assevera Venosa (2002, p. 20):

A passagem da economia agrária à economia industrial atingiu irremediavelmente a família. A industrialização transforma drasticamente a composição da família, restringindo o número de nascimentos nos países mais desenvolvidos. A família deixa de ser uma unidade de produção na qual todos trabalhavam sob a autoridade de um chefe. O homem vai para a fábrica e a mulher lança-se para o mercado de trabalho. No final do século XX, o papel da mulher transforma-se profundamente, com sensíveis efeitos no meio familiar. Na maioria das legislações, a mulher alcança os mesmos direitos do marido.

Assim, a família passou, aos poucos, a sofrer uma significativa modificação em seu arranjo, deixando de ser uma instituição patriarcal na qual as relações entre seus integrantes tinham como viés principal fins patrimoniais e religiosos, para, se tornar um agrupamento de pessoas unidas por laços de afetividade. Ou seja, nesta nova família, o affetio maritalis passa a ser a razão fundamental para a sua constituição.

Lado outro, deve-se ter em mente, que o Direito não é alheio aos anseios sociais e, não obstante as recorrentes imperfeições e lacunas da legislação, a ciência jurídica deve buscar estar sempre em consonância com a realidade social.

Por isso, todas estas modificações ocasionadas nas últimas décadas, foram, ao longo do tempo, interferindo nos sistemas legais que regulamentavam os arranjos familiares na ordem jurídica brasileira.

Nesta monta, partiu-se do total desprestígio da família não-matrimonializada ante o Código Civil de 1916, para passar, presentemente, a se apoiar nos laços de afetividade e na garantia da igualdade quando do tratamento da instituição familiar.

Ao longo do século passado, normas esparsas passaram a conceder direitos fora do casamento. Entretanto,

(...) as conquistas, quer para o casal, quer para os filhos, alguns sequer passíveis de terem sua filiação estabelecida, como os havidos por um homem e uma mulher ambos casados com terceiros, foram lentas, graduais e igualmente revestidas do caráter de exceção. Observe-se, no que concerne aos integrantes do casal, que a mulher obteve direitos, paulatinamente e a título de proteção, graças aos Tribunais. (BARBOZA, 2005, p.148-149). (sem grifo no original).

Porém, o verdadeiro marco das mudanças sociais ocorridas no último século se deu com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que rompeu com velhas concepções que fundavam as relações familiares, tais como: a legitimidade dos filhos [05] e a suposta superioridade do homem sobre a mulher nas relações conjugais, passando-se, a consagrar a Família Nuclear, na qual ocorre, contrariamente ao patriarcalismo, a consagração da direção da família por ambos os cônjuges [06].

Ao lado destas importantes mudanças, outra alteração significativa trazida pela Carta Magna foi a superação do casamento como a única forma de constituição de família legítima, reconhecendo-se, a partir de então, três tipos de família: a resultante do casamento, a união estável [07] e a família monoparental [08].

O reconhecimento dessas novas entidades familiares, como já supracitado, tem como fator fundamental a mudança na ótica valorativa constitucional brasileira, que passa a consagrar os princípios da liberdade, igualdade, dignidade da pessoa humana, e, sobretudo, o princípio da afetividade, base de todo o núcleo familiar hodiernamente.

Ou seja, a partir de tais mudanças, a tutela da instituição familiar passou a ter como fundamento o fato de que esta passou a ser vista de maneira instrumental, na medida em que constitui instrumento de realização existencial, afetiva e social das pessoas.

Pode-se dizer que o afeto foi reconhecido como valor jurídico, já que a família passou a ser, predominantemente, mantida por laços de afetividade, em oposição à família patriarcal e patrimonialista trazida nas legislações anteriores à Constituição Federal de 1988.

De modo claro e contundente assinalou Tepedino (2001:a, p. 328-329):

A família, no direito positivo brasileiro, é atribuída proteção especial na medida em que a Constituição entrevê o seu importantíssimo papel na promoção da dignidade humana. Sua tutela privilegiada, entretanto, é condicionada ao atendimento desta mesma função. Por isso mesmo, o exame da disciplina jurídica das entidades familiares depende da concreta verificação do entendimento desse pressuposto finalístico: merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado, a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes.

Portanto, independe a forma de como a família esteja constituída, bastando apenas para que esta faça jus à proteção estatal, a promoção de tais objetivos. Nos dizeres de Barboza (2005, p. 151):

Não seria razoável limitar a liberdade no que se refere às relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social, na constituição da família ou à forma de fazê-lo, no momento em que se atribui à família o importantíssimo papel na promoção da dignidade humana.

Sendo assim, não há dúvidas que o constituinte admitiu, ao lado da entidade familiar constituída pelo casamento, as famílias monoparentais e as resultantes de uniões estáveis. Portanto,

as normas que têm a sua ratio vinculada às relações familiares devem ser estendidas a toda e qualquer entidade familiar, nos termos constitucionais, independentemente da origem da família; tenha sido ela constituída por ato jurídico solene ou por relação de fato; seja ela composta por dois cônjuges ou apenas por um dos genitores, juntamente com os seus descendentes (TEPEDINO, 2001:b, p. 406).

Conforme restou demonstrado, a família brasileira sofreu grandes transformações após a Constituição de 1988. Grande foi o avanço no que concerne especificamente ao tratamento dado às pessoas que se unem pelo vínculo do companheirismo, quando em comparação com aquilo que era aplicado na ordem jurídica brasileira anterior.

Entretanto, muito se discute na doutrina brasileira acerca do tratamento conferido por nossa legislação aos cônjuges em comparação com os direitos deferidos aos companheiros. Isso porque, apesar da pretensão de tratar sem hierarquias esses dois tipos de entidades familiares - que são igualmente legítimas -, o que se observa realmente não é uma perfeita equiparação, mormente quando se analisa a disciplina legal aplicável aos direitos sucessórios entre companheiros.

O novo Código, apesar de ampliar os direitos sucessórios atribuídos aos cônjuges, trouxe um tratamento diferenciado a ser aplicado aos companheiros, demonstrando um claro retrocesso em relação à busca de um tratamento igualitário constante na Constituição Federal de 1988.

Abordados os pontos supra, onde em momento algum se teve a pretensão de exaurir o tema introdutório da evolução conceitual da entidade familiar, mister se faz, por uma questão metodológica, proceder a uma breve análise acerca dos direitos sucessórios conferidos aos cônjuges e aos companheiros, análise esta, essencial para uma melhor compreensão do tema aqui proposto.


3. OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Por uma acepção mais ampla, a palavra sucessão nos remete a ideia de afastamento de uma pessoa de uma determinada relação, para que, em seu lugar, outra venha a assumir.

A sucessão decorre por atos entre pessoas vivas (sucessão inter vivos) ou por causa morte (sucessão mortis causa).

Porém, para o Direito Sucessório, só interessa a transmissão advinda da morte. Ou seja, seu objeto de estudo é a transmissão gratuita de bens e obrigações do falecido. Deste modo, assevera Cateb (2003, p. 25):

O Direito das Sucessões tem como fator natural a morte do sujeito e a transferência de seus direitos e obrigações a uma ou mais pessoas vivas, segundo as regras ditadas pelo Código Civil ou por leis específicas que venham a vigorar.

Portanto, o referido ramo do Direito disciplina a transmissão do patrimônio do de cujus [09] aos seus sucessores. Válido ressaltar que, o patrimônio transmissível compreende o conjunto de direitos e obrigações, de créditos e débitos, englobando, assim, o patrimônio ativo e passivo do falecido [10].

Deste modo, podemos destacar como principais pressupostos da sucessão mortis causa, a ocorrência do falecimento de alguém titular de um patrimônio e a sobrevida de outras pessoas, que virão a sucedê-lo na titularidade dos direitos e obrigações por ele deixados (CATEB, 2003).

Quando analisada a sua fonte, exsurge que a transmissão do patrimônio decorrente da morte do autor da herança se dará de duas maneiras: ou decorrerá da manifestação última de vontade do falecido que deixa testamento sobre a quota disponível de bens [11], estabelecendo as pessoas que irão herdar (sucessão testamentária); ou decorrerá dos casos de inexistência, invalidade ou caducidade de testamento e, também, em relação aos bens nele não compreendidos (sucessão legítima). Neste caso, o chamamento dos sucessores respeitará uma ordem de vocação hereditária pré-estabelecida em lei.

Todavia, importante destacar que a sucessão testamentária pode conviver com a legítima, nos casos em que houver herdeiro necessário, a quem a lei assegura o direito à legítima, ou quando o testador dispuser apenas de parte de seus bens.

A Constituição Federal assegura, em seu art. 5º, XXX, o direito de herança, consagrando-o, portanto, como uma garantia fundamental dos cidadãos. Entretanto, o legislador constituinte não estabeleceu as regras a serem aplicadas em relação a tal instituto, deixando a cargo do legislador infraconstitucional tal tarefa.

Neste mesmo diapasão, destacam-se os ensinamentos de Barboza (2005, p. 160):

Indispensável observar que, a garantia do direito à herança pela Constituição Federal (art. 5º, XXX), relaciona-se, primordialmente, com o direito à propriedade privada, assegurando sua transmissão no caso de morte do titular, conforme a lei. Cabe ao legislador ordinário estabelecer a vocação hereditária, indicar os herdeiros necessários, determinar quotas.

Feitas estas breves considerações iniciais acerca dos direitos sucessórios, passa-se para a análise detida do tratamento das normas infraconstitucionais que versam sobre tais direitos em relação aos cônjuges e em relação aos companheiros.

3.2 Direitos sucessórios do cônjuge

3.2.1 Evolução histórica

Durante todo o século XIX e início do século XX, o Brasil foi regido pelo Direito Português, composto, sobretudo, pelas Ordenações Filipinas. Durante todo este período, a ordem de vocação hereditária foi a seguinte: 1º) descendentes; 2º) ascendentes; 3º) colaterais até o décimo grau; 4º) cônjuge; 5º) Fisco. [12] (MONTEIRO, 2003).

Deste modo, sob o regramento das Ordenações Filipinas, os colaterais detinham uma superioridade em relação aos cônjuges no que se refere a sua posição frente à ordem vocacional, visto que estes últimos eram remotamente convocados a sucessão, enquanto os primeiros tinham vocação hereditária até o décimo grau.

Com a lei Feliciano Pena (Lei nº 1839, de 31 de dezembro de 1907) ocorreram profundas modificações no sistema sucessório pátrio. Tal diploma legal, além de limitar o parentesco transversal até o sexto grau, também estabeleceu que o cônjuge sobrevivente passasse a ocupar o terceiro lugar - antecedendo aos colaterais - na ordem de vocação hereditária (CATEB, 2003).

Já sob a vigência do Código Civil de 1916, o cônjuge continuou a ser tratado em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária. Neste sentido, dispunha o artigo 1603 desse Código, in verbis:

Art. 1603 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes;

II – aos ascendentes;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais;

V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União [13].

Naquele momento, o cônjuge ainda não estava arrolado entre os herdeiros necessários, permitindo-se, assim, que, por exemplo, o marido pudesse afastar sua esposa da sucessão dispondo de seu patrimônio em favor de terceiros através de testamento [14].

Ademais, em seu artigo 1611, o Código Civil de 1916, estabelecia que o cônjuge sobrevivente só seria chamado a suceder se, ao tempo da morte do outro, não estivesse dissolvida a sociedade conjugal. Portanto, a separação judicial tinha o condão de extinguir o direito à herança [15].

Destarte, pode-se sintetizar o exposto, afirmando que o cônjuge só seria chamado a suceder se ocorressem concomitantemente as seguintes situações: a) o de cujus não tivesse ascendentes ou descendentes; b) o falecido não tivesse deixado disposição testamentária excluindo o seu cônjuge da sucessão; c) ao tempo da morte, não estivesse dissolvida a sociedade conjugal.

De considerável relevância, foi a entrada em vigor da Lei nº 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada), que, visando proteger a mulher que poderia ficar desamparada após a morte de seu marido, instituiu o usufruto vidual e o direito real de habitação, inserindo-os, respectivamente, nos §§ 1º e 2º do art. 1611 do Código Civil anterior (TARTUCE & SIMÃO, 2007).

Pode-se concluir que, ao longo do último século, houve um significativo progresso no que se refere ao tratamento dos direitos sucessórios do cônjuge. Entretanto, tal evolução se consagrou verdadeiramente com a entrada em vigor do atual Código Civil brasileiro em 2002, que, finalmente, colocou o cônjuge supérstite em uma posição destacada em relação aos demais sucessores.

3.2.2 Direitos sucessórios do cônjuge atualmente (CC/02)

Nesta seara, sem dúvida, a alteração mais significativa foi a inclusão do cônjuge como herdeiro necessário [16] também nas duas primeiras classes preferenciais, em concorrência, portanto, com descendentes e ascendentes, conforme se extrai do artigo 1829:

Art. 1.829 – A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.

Destarte, o cônjuge passou a ter direito à legítima, podendo herdar concorrentemente com descendentes ou ascendentes, ou exclusivamente, caso não haja sucessor em linha reta.

Entretanto, conforme dispõe o artigo supracitado, o cônjuge sobrevivente não concorrerá com os descendentes, caso aquele tenha se casado com o autor da herança sob os regimes da comunhão universal de bens [17], separação obrigatória (legal) de bens [18] ou comunhão parcial de bens, se o falecido não houver deixado patrimônio particular [19].

Assim, em relação aos descendentes, o regime de bens do casamento continua a ser utilizado como critério para se aferir os direitos sucessórios cabíveis ao cônjuge supérstite, ao contrário do que ocorre em relação aos ascendentes.

Além disso, dentre as importantes mudanças originadas no Código Civil de 2002, podemos destacar a extinção do usufruto vidual e o fortalecimento do instituto do direito real de habitação trazido agora no artigo 1831:

Art. 1831 - Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

Como se pode observar, o direito real de habitação foi estendido a qualquer regime de bens. Portanto, qualquer que seja o regime de bens adotado pelos cônjuges na época do casamento, permanecerá válido o direito do cônjuge à habitação do imóvel que era destinado à residência da família, sendo admitido inclusive para o regime da separação legal (CATEB, 2003).

Além disso, o novo Código não repetiu a expressão "enquanto viver e permanecer viúvo", permitindo-se aferir que tal direito não mais se submete à condição resolutiva de superveniência de casamento ou união estável do cônjuge sobrevivente, sendo somente a morte deste último a causa para extinção.

Por outro lado, o novo Código não apenas manteve uma restrição ao gozo destas prerrogativas pelo cônjuge sobrevivente, como ampliou tal limitação. Ocorre que, o novo Código estabeleceu em seu artigo 1830 que o direito sucessório do cônjuge supérstite se encerra não mais apenas com a dissolução da sociedade conjugal, mas também quando o casal estiver separado de fato a mais de dois anos, salvo se provar que a convivência se tornou impossível sem culpa do sobrevivente.

No que se refere à exclusão pela separação judicial não há o que se criticar, visto que, realmente não faz sentido atribuir direitos sucessórios a uma pessoa que já não mais mantinha vínculo matrimonial com o autor da herança à época de seu falecimento.

De outro modo, não há uma harmonia na doutrina no que tange a inclusão da separação de fato como mais uma possibilidade de se vir a excluir a vocação hereditária do cônjuge supérstite. Além disso, o fato do novo Código Civil trazer o questionamento da culpa pela extinção da convivência também é matéria que gera posicionamentos conflitantes.

3.2.2.1 Culpa: o verdadeiro motivo para o fracasso da relação?

A introdução da possibilidade de discussão de culpa, no âmbito do processo de inventário, para apuração das causas da separação de fato vai de encontro aos progressos que vinham sendo alcançados no trato da matéria. Condenando tal retrocesso, diversos juristas sustentam a necessidade de se afastar tal aferição de culpa até mesmo no âmbito da separação judicial. Corroborando tal tendência ora afirmada, destacam-se neste sentido os dizeres de Tartuce & Simão (2007, p. 193-194):

Diante da emergência da valorização da dignidade da pessoa humana, amparada no Texto Maior, a tendência dos nossos Tribunais, balizada nos entendimentos dos juristas que compõem o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), é justamente de afastar a discussão da culpa em ações dessa natureza.

Nesse diapasão, encontra-se o entendimento jurisprudencial:

Separação judicial. O exame da culpa deve ser evitado sempre que possível. Quando termina o amor, é dramático o exame da relação havida, pois, em regra, cuida-se apenas da causa imediata da ruptura, desconsiderando-se que o rompimento é resultado de uma sucessão de acontecimentos e desencontros próprios do convívio diuturno, em meio também às próprias dificuldades pessoais de cada um. Se o varão alega abandono do lar pela mulher e esta disse que foi expulsa do lar, além de ser ofendida pelo marido, descabe questionar a culpa, mormente porque existem indícios de adultério pela mulher e também de que ela foi forçada a sair do lar (BRASIL, TJRS, 2008:a) [20].

Interessante notar que a despeito dos posicionamentos jurisprudenciais mais atualizados que já vinham reconhecendo a dificuldade de se determinar de quem seria a culpa pelo fracasso da relação, o legislador acabou optando por manter a culpa como causa para a dissolução da sociedade conjugal.

Se nem mesmo os cônjuges em grande parte das vezes são capazes de determinar o os motivos para o fim da relação, seria uma tarefa extremamente difícil atribuir tal ônus ao juízes.

A dissolução da sociedade conjugal já representa um grande fardo para aquela entidade familiar, sendo desnecessário um desgastante processo judicial que venha a reascender dores e questionamentos quanto à determinação do motivo da dissolução daquele vínculo.

O vínculo conjugal se desfaz, portanto, não simplesmente porque um dos cônjuges descumpriu deveres que estava legalmente obrigado a cumprir [21], mas por ausência de afeto, o que independe da aferição da culpa.

Mais incoerente ainda, seria estabelecer tal aferição como requisito para se determinar a exclusão ou não do cônjuge supérstite da ordem de vocação hereditária, conforme estabelece o artigo 1830 do CC/02.

Em suma, ao se analisar a tendência contemporânea doutrinária e jurisprudencial verifica-se a impertinência na manutenção da aferição da culpa nestes casos.

Concluindo o que foi trazido no presente tópico, notáveis são os dizeres de Pereira (2001, p.1):

A dor da separação parece ser integrante de nossa vida e nos acompanha desde o nascimento: a primeira é o corte do cordão umbilical e o ir desfazendo-se da simbiótica relação mãe-e-filho. Depois, o eterno tornar-se adulto significa separar-se dos pais, ainda que simbolicamente. Separamos de amigos, irmãos, colegas de trabalho, namoradas, amantes e em diversas, outras circunstâncias. Separação seja qual for o motivo, não é fácil e está sempre acompanhada de dor e sofrimento. A separação em razão da morte, não tem remédio. Nada se pode fazer a não ser elaborar o luto, dando tempo ao tempo. Talvez uma das mais difíceis formas de separação seja a da conjugalidade. Separação de casais significa muito mais que isso. Significa desmontar uma estrutura e perder muita coisa. Perder estabilidade, padrão de vida, status de casado etc., etc. A dor maior nessas separações é o defrontarmos com a nossa solidão e a constatação de que não temos mais aquele outro que pensávamos nos completar. Embora saibamos pela razão, de que somos seres de falta e que o outro pode ser apenas o tamponamento de nossa solidão, insistiremos sempre na completude do ser. Pura ilusão! Uma das características básicas do ser humano é a falta, e também o erro em pensar que podemos atingir a completude. Completo, só Deus! É nesta dificuldade com a separação que muitas vezes se instala o litígio conjugal. E aí, apoiados pelo Direito, procura-se atribuir ao outro a culpa pelo fracasso da relação. Claro! É multo mais fácil achar que o outro é o culpado, pois assim nos isentamos de responsabilidades e ficamos justificados para nós mesmos, como se fosse unilateral a responsabilidade pelo fim da relação(...)É preciso separar as questões da objetividade, da subjetividade. (sem grifo no original)

3.3 Direitos sucessórios do companheiro

3.3.1 Concubinato e União Estável - Diferenças entre amantes e companheiros

Inicialmente, é válido ressaltar a atual diferença conceitual entre concubinato e união estável, já que por muito tempo se utilizou tais expressões como sinônimas.

Antes da CF/88 não se falava em união estável, havendo apenas a diferenciação entre concubinato impuro, que seriam as relações adulterinas e incestuosas, e concubinato puro, que corresponderia ao atual conceito de união estável. "Assim, a concubina seria a companheira. Entretanto, não se pode fazer tal confusão, principalmente no que diz respeito à pessoa que vive em união estável" (TARTUCE, 2007, p. 256).

Portanto, atualmente entende-se que o concubinato é uma relação extra-oficial, paralela ao casamento ou à união estável. Estariam os concubinos em uma situação de adultério.

Já a união estável trata-se de uma relação pública, estável, duradoura e com intenção de constituir família.

Logo, o que anteriormente a promulgação da Constituição Federal, era denominado de concubinato puro, é o que chamamos hoje de união estável, reconhecida como entidade familiar, conferindo-lhe uma série de direitos.

3.3.2 Evolução histórica

De uma forma geral, durante muito tempo, o legislador brasileiro tratou as relações extraconjugais de maneira muito restritiva em virtude de tais serem consideradas como sendo imorais.

Dessarte, por inegável influência religiosa, em virtude da concepção de que o casamento era o único meio legítimo para a formação da família, nosso ordenamento jurídico proscrevia tais relações extraconjugais, impondo-lhes muitas vezes uma série de sanções, tais como restrições a doação [22] e a vedação a participação testamentária (WALD, 2005).

Entretanto, a evolução da instituição familiar, com o reconhecimento de outras formas de constituição familiar, trouxe modificações significativas, fazendo com que o tratamento conferido a tais relacionamentos começasse, paulatinamente, a ser abrandado pela doutrina e pela jurisprudência.

Gradualmente uma série de direitos começaram a ser conferidos à companheira, dentre os quais podemos exemplificar o seu reconhecimento como beneficiária da indenização no caso de acidente de trabalho (Decreto-lei nº 7036/44; Lei nº 6367/75 e Lei nº 8213/91), a inserção daquela como dependente do contribuinte falecido (Lei nº 4297/63 e Lei nº 6194/74) [23] e a possibilidade da companheira usar o sobrenome do seu companheiro [24] (TEPEDINO, 2001:b).

Todavia, a jurisprudência não reconhecia direito a companheira quando da dissolução da sociedade conjugal. Entretanto, com o aumento do número de entidades familiares baseadas em uniões estáveis, os tribunais começaram a atuar no sentido de reconhecer uma maior gama de direitos às pessoas que se unem pelo vínculo do companheirismo quando da dissolução desta sociedade.

Surgiram assim, no âmbito jurisprudencial, duas soluções para amparar a companheira. A primeira se referia ao ajuizamento de Ação de Reconhecimento e Dissolução de Sociedade de Fato, para que assim se procedesse à partilha dos bens adquiridos por esforço comum, a exemplo do que ocorria na liquidação de uma sociedade de fato [25]. Já a segunda consistia em atribuir indenização à companheira à título de serviços domésticos prestados.

Ou seja, aplicavam-se às pessoas que se unem pelo vínculo do companheirismo regras relativas ao Direito das Obrigações.

Como já visto no presente trabalho, a união estável veio a ser reconhecida como entidade familiar através da promulgação da CF/88 que, em seu art. 226, § 3º, a reconheceu como entidade familiar merecedora de proteção Estatal.

Neste momento, houve pronunciamentos na jurisprudência no sentido de atribuir direitos à sucessão causa mortis àqueles que viviam sob o regime da união estável. Este entendimento era seguido por autores e juízes que defendiam a auto-aplicabilidade do dispositivo constitucional supracitado, estendendo para os companheiros os direitos conferidos aos cônjuges (SANTOS, 2005).

Como exemplo, destaca-se o voto da Desembargadora Maria Berenice Dias:

(...) o reconhecimento da ocorrência deste fenômeno, por si só evidencia independer de qualquer regramento infraconstitucional a imediata eficácia da norma constitucional. O exaustivo material legislativo que disciplina os direitos e deveres das relações decorrentes do casamento, sua dissolução, as obrigações alimentares, bem como as conseqüências no âmbito sucessório, autoriza a imediata aplicação destes institutos com referência às nominadas uniões estáveis, proclamadas pela Carta Magna como entidades familiares, dentro das disposições que trata da família, à qual outorga especial proteção. (BRASIL, TJRS, 2008:b).

Por outro lado, existem aqueles que partilham o entendimento de que a união estável não seria uma entidade exatamente igual ao casamento. Os adeptos de tal posicionamento fundamentam seu entendimento afirmando que, ao permitir a conversão da união estável em casamento, o constituinte deixou clara a existência de diferenças entre as duas entidades, visto que, coisas iguais não se convertem uma na outra.

Sendo assim, justamente por isso, não seria possível estender o tratamento conferidos as pessoas ligadas pelos laços do matrimônio também às pessoas ligadas pelo vínculo do companheirismo (TARTUCE & SIMÃO, 2007).

Porém, a verdadeira inovação no trato dos direitos sucessórios dos companheiros se deu com a promulgação das Leis 8971, de 29 de dezembro de 1994, e a de nº 9278, de 10 de maio de 1996, que em consonância com a nova perspectiva constitucional no reconhecimento das uniões estáveis, passaram a outorgar direitos a companheiros até então desconhecidos em nossa legislação. (CATEB, 2003).

A Lei nº 8971, além de estabelecer o direito da companheira a alimentos, passou também a atribuir direitos à sucessão causa mortis àqueles que viviam sob o regime da união estável. O artigo 2º desse diploma legal prevê:

Artigo 2º - As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:

I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns;

II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

III – na falta de descendentes ou ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança.

Entretanto, conforme disposto no artigo 1º do mesmo diploma legal [26], tais direitos só seriam conferidos caso o homem fosse solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo e tivesse formado união estável com a mulher com duração mínima de cinco anos ou houvesse filho proveniente dessa união.

Os dois primeiros incisos do art. 2º da Lei nº 8971 estabelecem que o companheiro sobrevivente teria direito ao usufruto de parte dos bens deixados pelo autor da herança enquanto não constituísse nova união.

Neste caso, o companheiro supérstite teria direito ao usufruto da quarta parte dos bens deixados pelo falecido, se houvesse filhos deste ou comuns, ou a metade dos bens, se não houvesse filhos, mas existissem ascendentes.

Nesta seara, interessantes são os dizeres de Pereira (2007, p. 540):

A lei não restringiu o direito ao usufruto apenas sobre bens adquiridos com esforço comum. Portanto, os percentuais relativos à "quarta parte" ou "metade" acima referidos deveriam ser calculados sobre todos os bens que compunham a herança.

Por fim, o inciso III do artigo sob análise trazia a possibilidade de, não havendo ascendentes e descendentes, o companheiro sobrevivente ter direito à totalidade da herança, respeitado o direito do de cujus de testar a parte disponível.

Para parte dos juristas, por força deste inciso III, o companheiro foi colocado ao lado dos cônjuges em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, sendo considerado um herdeiro legítimo, subsidiário aos descendentes e ascendentes.

Para outra corrente que defendia a diferenciação entre os institutos do casamento e da união estável, não seria possível atribuir direitos iguais aos cônjuges e companheiros não sendo possível, portanto, a inclusão do convivente na terceira posição na ordem de vocação hereditária (SANTOS, 2005).

Porém, entende-se que seria o posicionamento mais coerente reconhecer o companheiro ao lado do cônjuge na ordem de vocação hereditária, visto que, como já dito, a discriminação dos conviventes contraria o preceito constitucional de garantir proteção à todas entidades familiares reconhecidas.

Posteriormente, sobreveio a Lei nº 9278/96 que se destacou por regulamentar o art. 226, § 3º da CF/88, introduzindo um novo conceito de união estável, mais amplo e flexível do que o da lei anterior, passando a caracterizá-la independentemente do prazo de convivência. A partir de tal diploma bastava apenas para o reconhecimento da união estável que a relação fosse pública, duradoura, contínua e dotada de um elemento finalístico: objetivo de constituição de uma família.

Além do direito ao usufruto vidual, previsto na lei de 1994, uma vez dissolvida a união, por morte de um dos conviventes, o companheiro teria direito real de habitação enquanto vivesse ou não constituísse nova união ou casamento, porém, somente em relação ao imóvel destinado à residência da família (art. 7º, § único).

Por fim, o legislador de 96 estabeleceu um regime de bens básico para as pessoas ligadas pelo vínculo do companheirismo, optando por um regime semelhante ao da comunhão parcial de bens. Por força do art. 5º, caput e § 1º, o companheiro passa a ser meeiro dos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, presumindo-se que tais são havidos como decorrência do esforço comum.

Com a promulgação do Código Civil de 2002 houve uma alteração na disciplina jurídica da sucessão do companheiro, revogando-se em parte as leis anteriores, visto que, por se tratarem de leis especiais, as matérias não tratadas ou que não sejam contrárias as novas disposições do Código Civil devem permanecer como aplicáveis.


4. ANÁLISE DO CONTROVERTIDO ARTIGO 1830 DO CC/02 E A BUSCA DA MELHOR SOLUÇÃO

Dada uma visão panorâmica acerca do trato dos direitos sucessórios conferidos aos cônjuges e companheiros no âmbito da ordem jurídica brasileira, pôde-se observar que os mesmos possuem características peculiares, o que tem gerado intensas discussões no âmbito doutrinário e jurisprudencial tendo em vista tal diferenciação de tratamento.

Todavia, passa-se agora ao foco principal do presente trabalho. O objeto desta análise reside na controvertida questão que surgiu com a entrada em vigor do atual Código Civil, que - dentre outros inúmeros erros de técnica legislativa – acabou admitindo questionamentos acerca da atribuição da herança na hipótese de coexistirem companheiro (fruto de uma união estável com o falecido) e cônjuge que esteja separado de fato há menos de dois anos do de cujus ou há mais tempo, desde que prove que a convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente [27].

Ou seja, tal possibilidade de concorrência mostra-se de imperativa importância por tratar-se de um caso não muito difícil de ocorrer na realidade fática, em que uma pessoa, separada de fato de seu cônjuge, acaba por constituir união estável com outra pessoa e, consecutivamente, vem a falecer deixando bens.

Tal possibilidade de concorrência decorre, sobretudo, da redação dada ao artigo 1830 do CC/02:

Artigo 1830 - Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separado judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

Diante de tal disposição conclui-se que, na hipótese de sobrevier cônjuge separado de fato e companheira, a priori, ambas fariam jus a figurarem na sucessão dos bens deixados pelo de cujus.

Tal possibilidade de concorrência seria possível em virtude do atual entendimento acerca dos critérios necessários para a caracterização das uniões estáveis, conforme preceitua o artigo 1723 do novo Código Civil:

Artigo 1.723 - É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

O legislador se omitiu quanto à fixação de um tempo mínimo para o reconhecimento das uniões estáveis e dos direitos delas decorrentes, reiterando o que já vinha sendo adotado no artigo 1º da Lei nº 9278/96.

Destarte, o prazo mínimo para a caracterização de tal entidade familiar não mais subsiste, não sendo mais o fator temporal determinante para o seu reconhecimento, mas tão-somente a ocorrência dos outros elementos mencionados.

Lado outro, para que seja possível a ocorrência da controversa questão que se busca elucidar na presente análise, ou seja, a possibilidade de que cônjuge e companheiro venham a concorrer no montante hereditário, imprescindível se faz a análise da disposição trazida no § 1º do mesmo artigo 1723 do Código de 2002:

Artigo 1723: (...)

§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.

Portanto, embora diga o legislador que não se constituirá a união estável se ocorrerem os impedimentos para o casamento nos termos do artigo 1521 do CC/02, dispõe o mesmo dispositivo que não será impedimento a união de pessoas casadas, mas que estejam separadas de fato [28].

Fica evidente, portanto, que o legislador permite legalmente que a união estável se configure mesmo quando o companheiro seja separado apenas de fato de seu cônjuge.

De tal modo, uma vez reconhecida à união estável, o convivente participará da sucessão do outro, conforme prescreve o artigo 1790 do mesmo diploma legal:

Artigo 1790 - A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Ao contrário do que ocorre em relação aos cônjuges em que se faz uma discriminação dos direitos sucessórios a estes conferidos de acordo com o regime de bens adotado no casamento, no que concerne aos mesmos direitos conferidos aos companheiros, o art. 1790 não faz tal discriminação. Deste modo, conforme estabelece o caput do referido artigo, não há direito sucessório do companheiro se durante a união não houve acréscimo patrimonial a título oneroso, mesmo no caso do de cujus ter deixado bens particulares.

Conforme dispõe o art. 1725 do CC/02, "na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".

Como se pode observar, apesar de tal dispositivo permitir que as pessoas unidas pelo vínculo do companheirismo acordem outro regime de bens que não o da comunhão parcial, a regra sucessória prevista no caput do art. 1790 permanece a mesma.

Normalmente, o regime observado no âmbito de uma união estável é o da comunhão parcial, visto que tal relação constitui-se como um vínculo de fato, caracterizado pela relação de afeto e reciprocidade entre os conviventes. Assim, geralmente, as partes acabam não se preocupando em formalizar um regime de bens, em virtude do relacionamento existente entre eles já ser reconhecido como entidade familiar independente de qualquer formalidade.

Assim sendo, via de regra, a aplicação do disposto no art. 1790 acaba ensejando em uma situação mais benéfica ao companheiro do que aquela prevista para o cônjuge sob o mesmo regime quando da existência de bens adquiridos onerosamente na vigência da relação, visto que o primeiro participaria não só da meação, como da sucessão destes bens, enquanto o segundo não participaria da sucessão em relação a tal patrimônio.

4.2 Artigo 1790 do CC/02 – Uma breve análise

Este artigo é alvo de muitas críticas por parte da doutrina. Como já visto, tal dispositivo prescreve que a sucessão do companheiro se limita aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável. Desta forma, diferentemente do cônjuge, o companheiro participa da sucessão dos bens adquiridos onerosamente pelo casal, dos quais aquele já é meeiro, não participando da sucessão em relação aos bens exclusivos do de cujus.

Se por um lado os companheiros se encontram em posição privilegiada em relação às pessoas casadas, visto que aqueles, além da meação, possuem direitos sucessórios em relação aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união, por outro lado, os companheiros ficam em arranjo prejudicado em relação às pessoas casadas quando não houver aquisição a título oneroso durante a união, já que, neste caso, o companheiro sobrevivente não herdará nada, mesmo que o falecido tenha deixado patrimônio particular.

Há autores que consideram o caput do art. 1790 inconstitucional, pois confere trato discriminatório às pessoas unidas pelo companheirismo o que não coadunaria com os novos preceitos constitucionais no reconhecimento das entidades familiares. Assim, é inegável que tal dispositivo, ao desrespeitar os ditames constitucionais, acaba dando margens a muitas injustiças.

4.3 Em busca da solução mais justa

Sendo assim, conforme já exposto, conclui-se que é faticamente possível que pessoa separada de fato há menos de dois anos constitua uma relação afetiva com outro e que tal relacionamento venha a ser reconhecido como união estável, aplicando-se assim todas as regras atinentes a tal forma de constituição familiar, inclusive no tocante ao trato dos direitos sucessórios, possibilitando assim, uma possível concorrência entre cônjuge e companheiro na sucessão do montante hereditário.

O que se busca com este trabalho é, em primeiro lugar, trazer as possíveis soluções que poderiam ser aplicadas pelo magistrado quando, diante da ocorrência fática da situação aqui discutida, encontrar aquela que mais se coaduna com os preceitos defendidos na ordem jurídica brasileira, sobretudos os valores consagrados na Constituição de 1988.

Pode-se dizer que, diante do caso concreto, o aplicador do Direito poderia tomar basicamente três posicionamentos distintos: atribuir direitos sucessórios somente à esposa; atribuição da herança somente à companheira; concorrência entre cônjuge e companheira.

4.3.1 Atribuição da herança somente à esposa

Tal posicionamento parece ser o menos coerente a ser aplicado ao caso concreto tendo em vista os fundamentos que são apresentados para a sua defesa.

Defende-se, inicialmente, o direito de o cônjuge supérstite participar da sucessão sob o argumento de que a separação de fato não extingue a sociedade conjugal, não devendo ser causa de extinção de direitos conjugais, incluindo-se aqui, os direitos sucessórios.

Neste diapasão, são as lições de Pereira (2004, p. 72):

Não basta a separação de fato nem a medida judicial preparatória da separação de corpos para excluir o cônjuge da sucessão, sendo necessária a separação judicial regulamente homologada, se por mútuo consentimento; ou passada em julgado a sentença, se litigiosa.

Entretanto, a grande dificuldade de se defender tal posicionamento reside na justificativa do cônjuge herdar exclusivamente o montante hereditário. Para que lhe seja conferido tal privilégio, fundamenta-se em um critério já revogado por nossa legislação, qual seja, a necessidade de que o casal que esteja ligado pelo vínculo do companheirismo viva há pelo menos cinco anos conjuntamente para que seja caracterizada a união estável entre ambos.

Conforme preceitua o art. 1830, a esposa só teria seus direitos sucessórios reconhecidos se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados de fato há mais de dois anos e, adotando-se o supracitado critério temporal revogado, mesmo que após a separação de fato o de cujus tivesse constituído novo relacionamento, tal só seria reconhecido como união estável depois de transcorrido o prazo de cinco anos.

Portanto, adotando-se tal critério temporal para o reconhecimento das uniões estáveis, a princípio não seria possível que cônjuge e companheiro viessem a gozar concorrentemente de um mesmo montante hereditário, fazendo com que o primeiro se tornasse herdeiro exclusivo dentro deste prazo de dois anos.

Entretanto, tal posicionamento se demonstra altamente fragilizado, visto que as uniões estáveis são atualmente reconhecidas e protegidas como entidades familiares independentemente da aferição de qualquer prazo de convivência, por isso, não é possível se admitir que tal solução seja aplicada em nossa ordem jurídica.

4.3.2 Concorrência entre cônjuges e companheiros na sucessão da herança

Segundo os adeptos de tal posicionamento, no caso sob análise deveria haver a divisão do montante hereditário entre a esposa e a companheira, devendo-se aplicar as regras que conferem direitos sucessórios aos companheiros simultaneamente com o disposto no artigo 1830 do Código Civil.

Em primeiro lugar, fundamenta-se tal entendimento na impossibilidade de impedir a participação sucessória do cônjuge à herança, visto que, apesar de rompido os laços de afetividade, o cônjuge supérstite esteve em algum momento unido ao falecido por tal ligação e, neste ínterim, contribuiu para o aumento patrimonial, não podendo, assim, ficar totalmente desamparado em virtude do falecido ter estabelecido uma relação.

Por outro lado, o companheiro também não pode ser excluído da sucessão em virtude da existência de uma relação apoiada no afeto, de caráter público, duradouro e contínuo, devidamente protegida pela Carta Constitucional que lhe assegura direitos sucessórios.

Assim, uma vez estabelecido que tanto o cônjuge, quanto o companheiro deveriam concorrer na sucessão do autor da herança, os adeptos de tal posicionamento expõem duas formas em que se poderia operar tal divisão do montante hereditário.

Existe o entendimento que, conjugando-se as disposições dos artigos 1830 e 1790, por uma interpretação analógica do inciso III deste último artigo [29], chegar-se-ia a conclusão que a herança deveria ser dividida da seguinte maneira: 2/3 para a esposa e 1/3 para a companheira (ALMEIDA, 2004).

Entretanto, tal posicionamento é criticável, já que cônjuge não é parente, não havendo assim, motivo para igualar a concorrência que ocorre entre aquele e o companheiro, à aquelas existentes entre este último e eventuais parentes sucessíveis.

Para outra parcela dos doutrinadores, entende-se que a herança deveria ser dividida em duas partes iguais, pois se a lei não atribuiu quinhão especifico para cada uma delas, nada mais justo que a divisão pela metade.

4.3.3 Atribuição da herança somente à companheira

Por fim, malgrado seja o anterior posicionamento o que mais encontra guarida nos manuais pátrios, propõe-se agora o que parece ser a corrente mais coerente observados os ditames que regem a ordem jurídica pátria.

Tal solução tem como pilar principal de sua fundamentação a nova ótica valorativa das entidades familiares afirmada, que traz como base, principalmente, o reconhecimento pela Constituição Federal de 1988 da união estável como uma forma de constituição familiar.

A partir deste momento, a família deixa de ser amparada como instituição valorada em si mesma, passando a ser vista de maneira instrumental, na medida em que constitui instrumento de realização existencial e afetiva das pessoas. Deixa de ter como viés principal fins preponderantemente econômicos e religiosos e o afeto passa a ser a razão fundamental para a sua constituição.

Assim, a separação de fato demonstra que cessou o pressuposto fundamental da relação entre o casal, qual seja, a existência da relação afetiva entre eles.

Logo,

contemporaneamente, o simples vínculo formal registral não tem, por si só, a força de gerar efeitos jurídicos, desprezando-se, por completo, a realidade fática do rompimento. Parece de todo evidente que a separação de fato consiste em situação jurídica, hodiernamente, valorada, de tal sorte que sua verificação fática deve surtir efeitos na esfera do Direito de Sucessão (SILVA, 2003, p. 1).

Desta maneira, segundo tal entendimento, não faria sentido atribuir direito à sucessão a quem não mantinha o vínculo matrimonial a época do falecimento do autor da herança, devendo-se, assim, prestigiar o companheiro viúvo, em detrimento do cônjuge.

Assim sendo, com base no posicionamento ora exposto, uma vez reconhecida a união estável do de cujus, mesmo estando este formalmente casado, mas separado de fato, o cônjuge sobrevivente ficaria excluído da herança, independentemente da análise do lapso temporal e da concorrência ou não de culpa.

Negar os direitos decorrentes do reconhecimento pela Carta Constitucional da união estável como uma espécie de entidade familiar, dentre estes os próprios direitos sucessórios, seria uma afronta a paridade dos tipos de entidade familiares buscada por nosso Poder Constituinte.

A intenção do legislador ao determinar a distribuição obrigatória de parte da herança tem como fundamento principal atribuir ao menos parcela do montante hereditário àqueles membros mais próximos da comunidade familiar em detrimento dos mais remotos. A herança decorre da relação de affecto entre os conviventes, protegida pela Constituição, tendo como objetivo a proteção da família.

Daí conclui-se que, não estando os cônjuges ou companheiros ligados por laços de consanguinidade com o autor da herança, o que lhes garantiria estarem incluídos na ordem de vocação hereditária é a ligação afetiva que tais têm com o de cujus.

Incluir o cônjuge na sucessão seria ir de encontro à supracitada intenção do legislador em contemplar os membros mais próximos da comunidade familiar, visto que, uma vez interrompida a convivência marital, este passa a ser integrante formal do matrimônio falido, apenas subsistente no registro civil, pressupondo-se cessados os laços de afeto e companheirismo essenciais para a inclusão do cônjuge entre os herdeiros.

Sob a nova ótica valorativa das entidades familiares com o reconhecimento das uniões estáveis como uma espécie de família, não há mais como se falar que a integração do cônjuge à ordem de vocação hereditária tem como fundamento o vínculo formal do casamento, mas aquela decorre agora da relação mantida por laços de afetividade que aquele mantém com o autor da herança e, uma vez essa extinta, não há porque mais em se falar na atribuição de direitos sucessórios aos cônjuges.

Sendo assim, com a consagração do afeto em prejuízo da exclusividade das relações formalizadas, na hora de se deferir a atribuição dos direitos sucessórios, o fundamento da vocação hereditária será o mesmo, seja na união estável não matrimonializada, seja no casamento.

Qualquer posicionamento contrário a possibilidade do companheiro participar da sucessão vai de encontro aos ditames consagrados na nossa ordem constitucional, violando-se, sobretudo, os princípios da igualdade, na medida em que se estaria estabelecendo privilégios a alguns indivíduos em prejuízo de outros de forma injustificada; e da dignidade da pessoa humana, na medida em que não se estaria priorizando a tutela funcionalizada da família, tida como instrumento de promoção de seus integrantes.

Tepedino (2001b, p. 404) sintetiza esta ideia dizendo:

Tais entidades demonstram a mudança da ótica valorativa constitucional e impedem que se pretenda dar tratamento desigual a qualquer das entidades ali previstas. Vale dizer: toda e qualquer norma que se dirija à tutela das relações familiares deve ter como suporte fático (fattispecie) os tipos de comunidades familiares identificados pela Constituição, no âmbito dos quais a família fundada no casamento é apenas um deles. A comunidade, por sua vez, não é protegida como instituição valorada em si mesma, senão como instrumento de realização da pessoa humana.

Entretanto, é válido ressaltar que, para que se adote tal solução, necessário seria entender como inaplicável a regra trazida no caput do art. 1790 do CC/02, visto que, como já debatido no presente estudo, este limita os direitos sucessórios dos companheiros aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável.

Assim sendo, o companheiro herdaria também todo o patrimônio particular do falecido, inclusive o que eventualmente seja proveniente de uma meação de um bem comum incorporado ao patrimônio dos cônjuges quando ainda se estava estabelecido o vínculo matrimonial [30].

Ou seja, o cônjuge teria seu direito a meação respeitado quando tal houvesse, entretanto, em relação a outra metade do patrimônio do ex-casal, tal parcela seria privativa do de cujus, sendo então destinada a seus sucessores quando de sua morte, incluindo-se aqui, aquele que era seu companheiro a época de sua morte.

Assim, partindo-se da contemporânea vertente do Direito de Família, sobretudo no que tange a pluralidade da entidade familiar insculpida na CF/88, não haveria um elemento diferenciador que justifique tal limitação dos direitos sucessórios dos companheiros à somente aqueles advindos dos justos esforço durante a união, visto que, tanto o casamento, quanto a união estável são vistos atualmente como meios de promoção dos indivíduos, sendo esta a função precípua da família e o motivo da proteção estatal que lhe é conferida.

Ou seja, se a própria Carta Constitucional abandona a valorização do vínculo meramente formal, para dar lugar ao aspecto funcional da família, não há o que discutir sobre a existência, ou não, de hierarquia entre casamento e união estável.

É, portanto, da Constituição Federal que se extrai o sustentáculo para a defesa dos direitos sucessórios do companheiro quando da análise do artigo 1830 do CC/02, perquirindo assim, sua releitura frente à Lei Maior de nossa ordem jurídica.

Nesse sentido assevera Tepedino (2004, p. 224-227):

No âmbito da velocíssima evolução, qual o papel interpretativo da Constituição? A Constituição Federal não pode ser considerada como mero limite ao legislador ordinário. E nem mesmo como mero limite ao intérprete. (...) A Constituição é toda ela norma jurídica, seja qual for a classificação que se pretenda adotar, hierarquicamente superior a todas as demais leis da República, e, portanto, deve condicionar, permear, vincular diretamente todas as relações jurídicas, públicas e privadas. (...) Não se pode pretender adaptar a Constituição ao Código Civil, sendo indispensável proceder no sentido inverso, de modo a reler e forjar todo o tecido infraconstitucional, sob o manto inovador vinculante do texto maior.

Portanto, a promoção da dignidade humana, da igualdade substancial e da afetividade como base do núcleo familiar, tornaram-se fundamentos do Estado Brasileiro, fazendo com que todas as relações de Direito Civil, que antes se circunscreviam à esfera privada, passassem a ser revistas e funcionalizadas de acordo com os valores definidos pela Constituição.

É com base nesses valores que não se pode aceitar a dissonância de tratamento entre as espécies de entidades familiares, visto que, conforme já exaustivamente exposto, a Lei Maior de nosso ordenamento já reconheceu e garantiu proteção a todas elas independentemente de tais se originarem ou não de relações matrimonializadas.

Entretanto, na tentativa de corrigir os vícios legislativos cometidos quando da elaboração do novo - mas já ultrapassado - Código Civil de 2002, surgem propostas de promover alterações em tal diploma.

Dentre tais, pode-se destacar primeiramente o Projeto de Lei 4944/2005 proposto pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), com relatoria do deputado federal Guilherme Menezes (PT-BA). Tal proposição tenta compensar a distorção no tratamento entre casamento e união estável estabelecendo a igualdade de direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros, corroborando o entendimento já aqui exposto de que a disparidade de tratamento, trazida pelo Código Civil, contraria a própria Constituição Federal, que desconhece qualquer hierarquia entre casamento e união estável.

Dentre as alterações aludidas por tal projeto, destaca-se a nova redação sugerida ao art. 1830: "Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato".

Portanto, ao atribuir o direito sucessório do sobrevivente apenas quando ainda estiver convivendo com o autor da herança ao ensejo do óbito, tal redação vai perfeitamente ao encontro do posicionamento defendido neste trabalho, adequando-se o Novo Código à atual realidade constitucional.

Além de tal proposição, não se pode deixar de se mencionar o chamado "Estatuto das Famílias". Trata-se de um projeto elaborado também pelo IBDFAM e que tem como objetivo sanar os defeitos e omissões do atual Código Civil sobre o Direito de Família, promovendo toda uma reestruturação da matéria de modo a formar um estatuto autônomo, com novas regras materiais e processuais.

Dentre as inúmeras mudanças propostas por tal Estatuto, destaca-se a busca de supressão das assimetrias que o Código Civil ostenta quando do tratamento conferido aos companheiros em comparação àquele conferido aos cônjuges.

Porém, tais alterações ainda não ocorreram. Assim, deve-se entender que, independentemente de se considerar o Código Civil brasileiro avançado ou ultrapassado, é este que regerá as relações civis enquanto não sobrevierem normas mais coerentes com a nova perspectiva constitucional.

Deste modo, não pode o aplicador do Direito permanecer insensível frente a tais mudanças na ótica valorativa no que tange a proteção de todas as entidades familiares de forma igualitária, devendo-se assim, buscar sempre aplicar o Direito com base na tábua de valores que norteiam o nosso ordenamento.

"Trata-se de constatação indiscutível, que impõe ao intérprete uma mudança de atitude, sob pena de sucumbir à realidade social, perplexo e inerte à espera de uma mítica intervenção legislativa" (TEPEDINO, 2004, p. 226).

Portanto, urge a imediata interpretação das normas aplicáveis aos Direitos Sucessórios do companheiro à luz dos ditames constitucionais que regem a ordem jurídica brasileira, destacando-se, sobretudo, os princípios da afetividade e pluralidade das entidades familiares, de modo que até mesmo as próprias disposições legais que confrontem tais princípios norteadores devem ser afastadas.


5. CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho, observou-se a evolução conceitual e legislativa no âmbito das entidades familiares, tendo como marco principal o reconhecimento pela Constituição Federal de 1988 de outras formas de constituição familiar que não aquelas fundadas no casamento, incluindo-se as uniões estáveis.

Com os novos valores propugnados pela Carta Magna, com a valorização do afeto como a base do núcleo familiar, esta passou a ser vista também como instrumento de realização pessoal de seus integrantes, independentemente da forma de sua constituição.

Entretanto, o tratamento sucessório dado pelo legislador ao companheiro não acompanhou os avanços constitucionais, conferindo um tratamento desigual em relação ao cônjuge.

É necessário se ter em mente que o ordenamento jurídico brasileiro é hierarquicamente sistematizado e, sendo assim, seus princípios são superiores, sendo inaceitável a contraposição de qualquer norma aos ditames constitucionais.

Neste diapasão, é imprescindível a revisão dos direitos sucessórios disciplinados pelo Código Civil atual, de modo a se equiparar o tratamento entre os companheiros e os cônjuges.

Constitucionalmente, não há como conceber a existência de uma hierarquia entre as diversas formas de constituição familiar, visto que estar-se-ia inferiorizando uma forma frente a outra, o que não pode ser aceito diante do novo paradigma institucionalizado.

Entretanto, enquanto o legislador não promove a adequação dos institutos do Direito Civil aos novos paradigmas constitucionais, a doutrina pátria e os aplicadores do direito precisam encontrar a solução mais justa para o problema trazido no artigo 1830 do Código Civil.

Destarte, é com base nos ditames constitucionais, sobretudo na substituição, empreendida pelo Texto Constitucional, da "família-instituição" tutelada em si mesma, pela "família-instrumento", que tem no afeto o seu núcleo essencial, é que se buscou a solução que parece ser a mais justa para a solução do caso analisado no presente trabalho, consistindo em atribuir o quinhão hereditário exclusivamente à companheira quando entre seu convivente e a ex-esposa tenha havido mera separação de fato, evitando-se assim, privilegiar, mais uma vez, as relações fundadas no casamento em detrimento das uniões estáveis.


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Notas

  1. "Fala-se na sua desagregação e no seu desprestígio. Fala-se na crise da família. Não há tal. Um mundo diferente imprime feição moderna à família" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol. V. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 28).
  2. Conclui Celso Bastos em sua obra: "(...) pode-se afirmar que predomina, atualmente, a aceitação de que a sociedade é resultante de uma necessidade natural do homem, sem excluir a participação da consciência e da vontade humanas (...) não se poderá falar do homem concebendo-o como um ser isolado, devendo-se concebê-lo sempre, necessariamente, como o homem social" (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política. 6ª Edição. São Paulo: C. Bastos, 2004. p. 18/19).
  3. "Sociedade vem a ser toda forma de coordenação das atividades humanas objetivando um determinado fim e regulada por um conjunto de normas" (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política. 6ª Edição. São Paulo: C. Bastos, 2004. p. 1).
  4. "É ela considerada a celula mater da sociedade numa equiparação com as células dos organismos vivos, que são as menores partes em que pode ser decomposto o ser vivo sem perder a sua natureza" (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política. 6ª Edição. São Paulo: C. Bastos, 2004. p. 3).
  5. A Constituição Federal mostrou-se realmente protetora ao estabelecer em seu art. 227 § 6º a impossibilidade de existir no ordenamento pátrio quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, afastando as pejorativas adjetivações sempre presentes nos diplomas legislativos, tais como: legítimo, ilegítimo, naturais, espúrios, adulterinos, incestuosos e adotivos. Neste mesmo diapasão, o posterior Código Civil de 2002 instituiu, em seu art. 1596, os preceitos constitucionais afirmando, in verbis: "Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação"
  6. Neste sentido, consagra o artigo 226, § 5º da Constituição Federal de 1988: "Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher".
  7. Art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988: "Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".
  8. Art. 226, § 4º da Constituição Federal de 1988: "Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes".
  9. "Esta expressão latina é abreviatura da frase de cujus sucessione (ou hereditatis) agitur, que significa aquele de cuja sucessão (ou herança) se trata". (GONÇALVES, Carlos Roberto. Coleção Sinopses Jurídicas: Direito das Sucessões, Vol. IV. 6ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 1)
  10. Entretanto, conforme dispõe o artigo 1792 do Código Civil, "o herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demonstrando o valor dos bens herdados."
  11. Caso existam herdeiros necessários, o testador só pode dispor em testamento de no máximo metade de seu patrimônio, pois a outra metade compõe a legítima que deve ser dividida necessariamente entre os aqueles herdeiros (é a chamada "reserva da legítima). Se tal regra for violada, aquilo que exceder a parte disponível será desconsiderada. (Artigos 1846 e 1967 do Código Civil)
  12. Tal ordem vinha disposta no Livro IV, Títulos XCIV e XCVI das Ordenações Filipinas
  13. Redação dada pela Lei nº 8049/90.
  14. Art. 1725 do Código Civil de 1916: "Para excluir da sucessão o cônjuge ou os parentes colaterais, basta que o testador disponha do seu patrimônio, sem os contemplar."
  15. Válido ressaltar que, somente a separação de fato não afastava a condição de herdeiro do cônjuge sobrevivente, visto que, não havia, no Código Civil de 1916, regra que excluísse da herança cônjuge simplesmente separado de fato.
  16. Art. 1845 do Código Civil: "São herdeiros necessários os descendentes, ascendentes e o cônjuge".
  17. Aqui o cônjuge é excluído da sucessão porque ele já é meeiro (metade do patrimônio do casal já lhe pertence), não devendo, portanto, concorrer com os demais sucessores em relação à outra metade. A intenção do legislador foi impedir que restasse configurado um enriquecimento desmensurado por parte do cônjuge, visto que este poderia acabar recebendo mais da metade do patrimônio do casal, caso participasse da sucessão, enquanto que os descendentes ficariam com uma pequena parcela do bojo da herança. Válido ressaltar que, em tal regime, há bens que são excluídos da comunhão (art. 1668 do Código Civil), mas mesmo em relação a esses bens, o cônjuge não concorre em função da disposição legal não estabelecer nenhuma exceção.
  18. O legislador impôs a obrigatoriedade da adoção de tal regime quando ocorrerem as situações previstas no art. 1641 do CC/02. Neste caso, conforme dispõe a Súmula 377 do Superior Tribunal Federal, os bens adquiridos de forma onerosa na constância do casamento, sob o regime da separação legal de bens, se comunicam, sendo que o cônjuge em relação a tais bens é meeiro, não justificando, portanto, que o mesmo venha a concorrer com os demais sucessores quando da morte de seu consorte.
  19. Bens particulares são aqueles que já integravam o patrimônio da pessoa antes do casamento. Neste caso, se o autor da herança, casado sob o regime da comunhão parcial, não deixou bens particulares, não haverá concorrência, herdando apenas os descendentes. Entretanto, havendo bens particulares, sobre tais o cônjuge não teria direito à meação, mas concorreria com os descendentes na sucessão.
  20. "Seguindo esta corrente, mais recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo deferiu a separação por mera quebra de afeto, ou perda do amor, não entrando no mérito de discussão da culpa: Separação judicial – Inexistência de amor. A inexistência de amor autoriza a separação do casal (TJ-SP, AC 270.393-4/2-00, Rel. Des. Carlos Stroppa, Ac. Unan. Da 4ª CDPriv, julgado 04.09.2003). Nos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, Rio de janeiro e Rio Grande do Sul várias são as decisões neste sentido" (TARTUCE, Flávio & SIMÃO, José Fernando. Direito civil. Série concursos públicos: direito das sucessões, Vol. VI. São Paulo: Método, 2007, p. 194).
  21. Art. 1566 do Código Civil: "São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos".
  22. Art. 1777 do Código Civil de 1916: "A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até 2 (dois) anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (arts. 178, § 7º, VI, e 248, IV)".
  23. Admitindo-se inclusive a repartição da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira (Súmula 159 do extinto Tribunal Federal de Recursos: "É legitima a divisão da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os requisitos exigidos).
  24. Art. 57, § 2º da Lei 6015/73: "A mulher solteira, desquitada ou viúva, que viva com homem solteiro, desquitado ou viúvo, excepcionalmente e havendo motivo ponderável, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o patronímico de seu companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, de família, desde que haja impedimento legal para o casamento, decorrente do estado civil de qualquer das partes ou de ambas".
  25. Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal: "Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum".
  26. Art. 1º da Lei 8971/94: "A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei n. 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade".
  27. As discussões que versam sobre a introdução da possibilidade de discussão de culpa, no âmbito do processo de inventário, para apuração das causas da separação de fato já foram devidamente trabalhadas em tópico à parte, não sendo assim, retomadas neste momento.
  28. Art. 1521 do CC/02: " Não podem casar: (...); VI – as pessoas casadas".
  29. Art. 1790 do CC/02: "A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: (...) III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança".
  30. Considerando-se, frisa-se novamente, a não existência de outros herdeiros.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, João Gabriel Villela. Uma análise do controvertido art. 1830 do CC/02, sob um cotejamento civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2515, 21 maio 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14901. Acesso em: 28 abr. 2024.