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Ação de cobrança para servidor com salário em atraso, liminar é deferida

Ação de cobrança para servidor com salário em atraso, liminar é deferida

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Em todo o País, são comuns os casos em que o Estado ou o Município atrasa o pagamento dos salários dos servidores públicos por vários meses, sem que nada estes possam fazer. Em Angélica (MS), o defensor público obteve liminar numa ação de cobrança contra o Município, para que os autores pudessem receber seus salários atrasados imediatamente, dado seu caráter alimentar. O entendimento do MM Juiz, que merece aplauso, deve ser seguido em todo o País, a fim de coibir a irresponsabilidade de muitos governantes que se julgam acima do bem e do mal. Segue abaixo a ótima petição inicial do nobre defensor.

          EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA JUÍZA DE DIREITO DA COMARCA DE ANGÉLICA/MS:

..., brasileiro, casado, serventuário da Justiça, portador da cédula de identidade RG nº ... e do CPF nº ..., residente e domiciliado na ..., nesta cidade e comarca de Angélica; ..., brasileiro, casado, conselheiro tutelar, portador da cédula de identidade RG nº ... e do CPF nº ..., residente e domiciliado na ..., nesta cidade e comarca de Angélica; ..., brasileira, casada, conselheira tutelar, portadora da cédula de identidade RG nº ... e do CPF nº ..., residente e domiciliada na ..., nesta cidade e comarca de Angélica; ..., brasileira, divorciada, conselheira tutelar, portadora da cédula de identidade RG nº ... e do CPF nº ..., residente e domiciliada na ..., nesta cidade e comarca de Angélica; ..., brasileiro, casado, conselheiro tutelar, portador da cédula de identidade RG nº ... e do CPF nº ..., residente e domiciliado na ..., neste município de Angélica, através da Defensoria Pública, vêm, mui respeitosamente, perante Vossa Excelência, promoverem AÇÃO DE COBRANÇA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA em face do MUNICÍPIO DE ANGÉLICA, pessoa jurídica de direito público, com sede na Rua 13 de maio, nº 676, nesta cidade e comarca de Angélica, pelo que passam a expor e a requererem o seguinte:


1. Os requerentes são membros do Conselho Tutelar deste município de Angélica. Os referidos membros são remunerados, conforme previsto em lei municipal, cujos vencimentos são de R$ 240,00 (duzentos e quarenta reais) ao mês.

Os conselheiros estão passando por situação de extrema penúria. Desde janeiro transato os requerentes não recebem seus vencimentos. Tem-se, com isso, que a prioridade municipal não esteve – e não está - voltada aos funcionários. O dinheiro arrecadado possui outras prioridades que não pagar os funcionários que, de forma inegável, utilizam seus salários para própria sobrevivência. As empreiteiras, os fornecedores e demais credores da Prefeitura tem prioridade sobre aqueles que utilizam seus vencimentos para pagar o alimento comprado no mercado. Se o mercado não lhe fornece a comida, esta inevitavelmente faltará. Por certo, a barriga (principalmente dos filhos de tenra idade) não tem mais como esperar.

2. A prefeitura Municipal não pagou os salários dos requerentes nos meses de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho e julho do corrente ano que totaliza a quantia de R$ 8.400,00 (oito mil e quatrocentos reais). Todavia, faz-se mister requisitar da secretaria de administração e finanças da requerida que apresente a folha de pagamento do mês de março, bem como a somatória de todos os valores devidos aos requerentes e que se encontram em atraso, apresentando a este Juízo o valor descriminado que cada um tem direito a receber, para que possa ser efetuado o pagamento, sob as penas do art. 359, I, do Código de Processo Civil.

A situação dos requerentes é calamitosa, os problemas decorrente da falta de dinheiro estão se acentuando dia a dia. Se se persistir a inadimplência da requerida, irá gerar danos de difícil reparação aos requerentes, que estão com suas necessidades vitais ameaçadas. As verbas pleiteadas, por tratar-se de vencimentos, têm nítida característica alimentar, como se infere do ensinamento de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, in verbis:

"...a remuneração do trabalho pessoal, de maneira geral, destina-se ao sustento do indivíduo e de sua família. Trata-se, por isso de verba de natureza alimentar, donde sua impenhorabilidade". (Processo de Execução, EUD, 16ª ed. P. 253 – Neste mesmo sentido, ainda, CANDIDO RANGEL DINAMARCO, Impenhorabilidade de vencimentos e descontos feitos pela administração, RT 547, pp 19.).

Possuindo, assim, nítido caráter alimentar, deve-se considerar, então, que os alimentos se constituem, como apostrofado por Yussef Sahid Cahali, "em uma modalidade de assistência imposta por lei, de ministrar recursos necessários à subsistência, à conservação da vida, tanto física como moral e social do indivíduo; sendo portanto, a obrigação alimentar, le devoir imposé juridiquement à une personne d’assurer la subsistance d’une autre personnne". (Yussef Sahid Cahali, Dos Alimentos, 1ª ed. 2ª tiragem, Editora RT, p. 02.).

Essa característica de natureza alimentar dos vencimentos, já está plenamente pacificada na doutrina, valendo conferir, dentre outros, Themístocles Brandão Cavalcante, que aduziu:

"A todo serviço deve corresponder uma retribuição pecuniária: esta constitui, por conseguinte, uma contraprestação que se acha obrigado o Estado"

...Numerosas são as teorias sobre a natureza jurídica dos vencimentos, ou melhor, dos estipêndios.

Para alguns, têm caráter alimentar; É a DOUTRINA DOMINANTE. Especialmente Laband insiste neste ponto, mostrando "como esse salário é devido e porque deve também corresponder à situação econômica do funcionário". (Tratado de Direito Administrativo, Ed. Freitas Bastos S/A, Vol IV, 3ª ed 1956, p. 249/250).

JOSÉ AUGUSTO DELGADO, Juiz Federal no Rio Grande do Norte e Professor Adjunto do Departamento de Direito Público na Universidade do Rio Grande do Norte, sustentou com base em Geoges L. Pierre François, que o "o crédito de natureza alimentícia define-se, de modo muito nítido, por seu objeto, em face de consistir em uma prestação nitidamente positiva, com função de fazer viver, permitir a subsistência e mais genericamente a existência normal do credor, considerado o sentido largo no qual convém entender a noção jurídica de alimentos". (Aut. Cit., - Execução de quantia certa contra a Fazenda Pública – art. Publicado na Revista de Processo, vol. 57, p. 13 e seguintes, em homenagem ao Professor José Frederico Marques, a convite da Professora Teresa Celina de Arruda Alvim Pinto).

É inquestionável a natureza alimentar dos vencimentos dos requerentes, até mesmo porque o STF assim já se posicionou, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 88.110, publicado em audiência em 18.10.1978, ementário STF 1.112-2.

Cumpre salientar que, se deixar de pagar os conselheiros, é uma forma de dissolver o Conselho Tutelar com enormes prejuízos à comunidade local. Portanto, o não pagamento dos requerentes é passível até de responsabilidade administrativa, pois a sociedade, mormente as crianças, estão sendo lesadas pela administração pública municipal.

De outro lado, os munícipes de Angélica já receberam a prestação devida através do trabalho árduo, digno e honesto dos referidos conselheiros, razão pela qual têm o correspondente dever e obrigação de lhes pagar a remuneração devida, no tempo previsto na legislação em vigor, sem atrasos que venham impor dificuldades de ordem financeira aos mesmos servidores, de qualquer espécie.

Tal, com efeito, é a regra geral, porquanto, como já salientou HELY LOPES MEIRELLES "a percepção de vencimentos pelo exercício do cargo é a regra da administração brasileira, que desconhece cargo sem retribuição pecuniária".

3. Os salários dos servidores, aqui pleiteados não estão sujeitos ao precatório, senão vejamos:

José Cretella Júnior, acentuou que, mesmo havendo excessos nos limites contidos no orçamento, que evitaria o repasse do duodécimo até que houvesse a implementação da lei reguladora do pedido de suplementação, terão ainda os funcionários e servidores do Poder, de modo amplo, geral e irrestrito, o direito de receber imediatamente os seus proventos, não podendo haver escusas do Governo no repasse respectivo, que assegure a efetividade do pagamento de todos os valores devidos, posto que "os funcionários, nem por isso, deixarão de receber o estipêndio, cuja natureza é alimentar, caso em que o chefe do Poder executivo, não podendo de imediato pagar, solicitará ao Poder Legislativo a votação urgente de verba ou crédito" ao que acrescenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho1. (Comentários à Constituição, 1988, Forense Universitária, 1989, v. VII, p. 3831 – 1Aut. Cit., Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 3ª ed. 1989, p. 328/329).

Ao se criar a previsão de pagamento e remuneração do cargo, é feita uma projeção dos valores que a folha de pagamento irá causar no orçamento do ente público. Portanto, há previsão no orçamento dos valores que serão gastos com o funcionalismo. Não há, por conseguinte, necessidade de se incluir no orçamento do ano seguinte o débito que já foi previsto anteriormente no orçamento.

Se outro fosse o entendimento, poderíamos fazer a seguinte assertiva: vamos deixar para comer apenas daqui a dois anos; isso se o administrador tiver vontade de cumprir a lei.

4. É palmar e inegável o direito dos requerentes em compelir a Prefeitura Municipal em pagar imediatamente e sem maiores delongas os valores de verba salarial. No caso sub judice é, também, possível a TUTELA ANTECIPADA, na forma do art. 273, I, do Código de Processo Civil.

Relativamente a este aspecto, deve ser salientado que não há tempo para aguardar-se o advento da sentença condenatória. Se os desesperados requerentes ficarem a mercê de um provimento futuro, por certo ficarão a mercê da sorte, causando males irreversíveis.

As necessidades básicas e vitais do ser humano não pode ser colocada em compasso de espera, muito menos esperar a boa vontade da Prefeita Municipal em pagar quando quiser e se quiser.

Já dizia o matuto: "cavalo bom é o que cerca a vaca na hora, depois que foi para o brejo não adianta...". Por isso, o Poder Judiciário deve estar atento para que o adágio popular não se faça presente, pois o desespero que atinge as famílias dos funcionários não pode ser deixada ao desabrigo da justiça.

No moderno processo civil, como bem lembrado por Luiz Guilherme Marinoni, está se abandonando a concepção clássica de que o CPC é fundado no binômio processo de conhecimento e processo de execução. Esse binômio, continua o doutrinador, "não é adequado para tutelar as novas situações criadas pela sociedade contemporânea. As tutelas antecipatórias – prestadas por exemplo para a proteção dos direitos da personalidade – são fundadas no art. 798, do Código de Processo Civil, que constitui a válvula de escape para o juiz prestar a adequada tutela jurisdicional."

Se o pagamento dos vencimentos tem caráter alimentar, inequívoco o direito dos autores em receber os valores a que fazem jus, com sua respectiva correção monetária, sendo de igual forma inequívoco o dano de difícil reparação, posto que os autores se encontram privados de valores necessários à sua subsistência, valendo lembrar, mais uma vez, a característica alimentar das verbas pleiteadas, que não podem ser postergadas.

Aí está a verossimilhança do direito invocado e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, a ensejar de pronto a concessão da liminar de tutela antecipada.

Com efeito, antecipar a tutela, para evitar que as delongas do processo de conhecimento traga prejuízo irreversível aos funcionários públicos deste município, é fato que não se pode negar.

5. Com um análise superficial poderia se afirmar que não é possível a antecipação de tutela contra o poder público, máxime em relação a questão salarial. Mas ao interpretar a Lei 8.437/92, vemos que a mesma não tem aplicação ao caso em testilha. O Desembargador Rubens Bergonzi Bossay, em decisão dada em agravo de instrumento, publicada no diário da Justiça nº 4.951, no dia 03 de fevereiro de 1999, disse:

"Examinando os termos do art 1º da Lei 9494/97 vê-se que manda aplicar "a tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil, o dispostos nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7ª da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5021, de 09 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992."

O art. 5º e seu parágrafo único, da Lei 4.348, de 26 de junho de 1964, vedam a concessão de liminar em mandados de segurança visando a reclassificação ou equiparação de servidores públicos ou a concessão de aumento ou extensão de vantagens, bem como a execução da sentença referentes a esses casos, antes do trânsito em julgado.

Já o art. 7º impõe o efeito suspensivo a recurso contra decisão concessiva de mandado de segurança que importe em outorga ou adição de vencimento ou ainda reclassificação funcional.

À toda evidência, o caso dos autos não se enquadra em quaisquer dessas hipóteses, pois o objeto da ação e a cobrança de vencimento em atraso, sobre os quais não há conflito de interesses entre as partes. O objeto da ação não versa sobre a outorga de direito ou adição de vencimento e nem sobre o "quantum" desses vencimentos, cinge-se apenas ao atraso no pagamento.

O art. 1º da Lei nº 5.021, de 09 de junho de 1966, disciplina apenas o dies "a quo" do pagamento de vencimentos e vantagens asseguradas em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor municipal, dispondo que só deve ser efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial.

Resta evidente que não se trata de simples atraso no pagamento de vencimentos (como ocorre na hipótese dos autos) e vantagens, mas sim de cumprimento de sentença prolatada em mandado de segurança compondo conflito de interesse entre as partes quanto ao próprio direito a vencimento ou vantagens de servidor público.

O parágrafo 4º do art. 1º da Lei nº 5021, de 09 de junho de 1966, não estende a proibição da concessão de liminar para efeito de pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias, além das hipóteses abrangidas no "caput", ou seja, além dos casos onde haja conflito de interesses entre as partes quanto ao próprio direito ao vencimento ou vantagem de servidor público.

Assim, a proibição de liminar não se estende às ações de cobrança de vencimentos incontroversos e em atraso."

Outrossim, como bem salientou o magistrado Marcelo Câmara Rasslan, ao decidir questão semelhante no processo que tramitou nesta comarca – Feito nº 238/98, in verbis:

"Entretanto, há que verificar-se, mais detidamente, que o disposto no art. 273 e seus parágrafos, do Código de Processo Civil, trata de instituto inteiramente novo. Antes da Lei nº 8.952/94, à falta de previsão legal para antecipar-se os efeitos da tutela preiteada, o próprio processo já era meio de punição àquele que reclamava direitos, validando as célebres palavras de Ruy Barbosa, no sentido que "de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver crescer as injustiças, de tanto ver agigantar-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."

Com o escólio do Desembargador Rubens Bergonzi Bossay, bem como dos áureos ensinamentos do Juiz Marcelo Câmara Rasslan, chegamos a conclusão de que a norma federal não impede que Poder Judiciário antecipe a tutela nos casos de cobrança de vencimentos atrasados, máxime quando tais alimentos consistem direito líquido e certo dos requerentes.

Ante o exposto, requer a citação da requerida, através de seu representante legal, para que conteste a presente ação, a qual deverá ser julgada procedente para condená-la no pagamento da quantia de R$ 8.400,00 (oito mil e quatrocentos reais), bem como dos salários que vencerão no curso da presente demanda, acrescidos de correção monetária, juros de mora, custas do processo e honorários advocatícios, devidos à Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul.

Requer, outrossim, o deferimento de LIMINAR DE TUTELA ANTECIPADA, INALDITA AUTERA PARS E IN LIMINE LITIS, na forma do art. 273 do Código de Processo Civil, para o fim de ordenar a expedição de mandado de bloqueio e subseqüente apreensão de valores que se encontram depositados – e os que vierem a ser – em nome do município de Angélica, nas agências bancárias que a requerida mantiver conta corrente, no valor de R$ 8.400,00 (oito mil e quatrocentos reais), até que a secretaria de administração traga o valor dos respectivos contra-cheques, ficando tais valores a disposição desse juízo.

Na mesma decisão, deverá ser requisitado ao Diretor de Recursos Humanos da Administração de Pessoal da Prefeitura para que encaminhe a esse juízo, no prazo de quarenta e oito horas, o valor líqüido que cada um dos servidores municipais têm a receber.

A prova do alegado se fará com a juntada e exibição de documentos, depoimento pessoal da representante legal da requerida, com testemunhas, perícia e com os demais meios de prova em direito permitido e moralmente legítimos, o que desde já fica requerido.

Requer os benefícios da assistência judiciária, haja vista que o sindicato requerente não tem fins lucrativos, podendo seu Presidente afirmar que o referido sindicato não possui condições de constituir advogado, mormente diante do atraso injustificado da Prefeitura Municipal de Angélica, conforme declaração fornecida à esta Defensoria Pública.

Dão à causa o valor de R$ 8.400,00 (oito mil e quatrocentos reais).

Termos em que,
         pedem-se deferimento.

Angélica, 05 de agosto de 1999.

EDSON CARDOSO
DEFENSOR PÚBLICO


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Edson. Ação de cobrança para servidor com salário em atraso, liminar é deferida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16184. Acesso em: 25 abr. 2024.