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Biodiversidade e desenvolvimento sustentável.

Aspectos teóricos da proteção legal brasileira ao patrimônio genético

Biodiversidade e desenvolvimento sustentável. Aspectos teóricos da proteção legal brasileira ao patrimônio genético

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"O Minotauro era um monstro, metade touro, metade homem, fruto do relacionamento da esposa de Mino, Pasifae, com um touro extremamente bonito" – trecho da obra Theseus and the minotaur, de Edith Hamilton¹.


1. INTRODUÇÃO

Desde o surgimento do homem na terra que se houve falar em agressão ao meio ambiente. É, contudo, a partir da Revolução Industrial, que tal problemática começa a tomar contornos de realidade preocupante para toda a sociedade, principalmente devido ao avanço (ou retrocesso?) industrial, dirigido principalmente pelos grandes grupos comerciais, os quais, por falta de uma educação ambiental, passam a utilizar-se de maneira irresponsável da tecnologia alcançada, gerando graves conseqüências para o ecossistema.

É de assombrar, hodiernamente, a velocidade com que a biotecnologia, apoiada pelas grandes empresas do ramo de alimentação, vem inovando em termos de manipulação do patrimônio genético de plantas e animais, tornando-os mais resistentes a herbicidas, com maior desenvolvimento em curto período de tempo assim maior capacidade de sobreviver às pragas. Isto sem contar com o custo de manutenção, que cai vertiginosamente para os produtores. Trata-se da aplicação perfeita do binômio produtividade x baixo custo de produção.

Contudo, em meio a tanta euforia, crescem as dúvidas acerca da legitimidade de tais inovações. Isto porque, segundo Alberto Nobuoki Momma², "mais de 90% (noventa por cento) dos investimentos em engenharia genética na agricultura referem-se a um único caráter, isto é, a herbicidas (cerca de 70%) e inseticidas (em torno de 20%), cabendo menos de 1% para objetivos de qualidade", como proteínas benéficas ao homem, por exemplo. Enfim, visam, os grandes conglomerados econômicos, com o apoio, principalmente, do governo norte-americano, o lucro. Daí a desconfiança geral, notadamente dos europeus, que possuem cerca de apenas 1%, dos 35 milhões de hectares plantados com transgênicos no mundo, enquanto que os Estados Unidos respondem por 88% do total (dados constantes da palestra do Profº José Roberto Goldim³, no I Congresso Latino Americano de Nutrição Humana. Gramado, RS, 26 de junho de 1999).

Fora a discussão acerca dos malefícios que podem trazer os transgênicos ao ser humano em si, há também o medo e a desconfiança quanto à disseminação destes organismos geneticamente modificados (OGM) na natureza, ocasionando um verdadeiro extermínio das espécies mais fracas, principalmente nos ecossistemas mais desestabilizados, pelos OGMs. Além disso, mais perigosa do que a extinção de uma espécie, é a transmutação das existentes em outras, a exemplo do Minotauro da antiga Grécia, cujo texto ilustrativo foi propositadamente transcrito mais acima, como se o homem tivesse o poder e o dom Divino de se sub-rogar na tarefa da criação.

É neste diapasão, portanto, em linhas gerais, que situar-se-á o presente trabalho, procurando demonstrar, teoricamente, a proteção jurídico-legal existente em nosso ordenamento quanto ao patrimônio genético, numa abordagem geral do Direito Ambiental enquanto disciplina essencial para a manutenção da ordem social no limiar deste novo milênio, que, segundo o juspublicista Leon Fredja Sklarowsky4, citando Jeremy Rifkin, promete ser o "Século da Biotecnologia".


2. BREVE HISTÓRICO DA TUTELA JURÍDICO-AMBIENTAL NO DIREITO PÁTRIO

Antes da Constituição Federal de 1988, que hoje rege nosso ordenamento jurídico, a proteção outorgada pelo legislador ao meio-ambiente sempre foi de uma visão homocêntrica da questão, ou seja, amparava-se nosso patrimônio biológico-ambiental à medida em que a própria saúde do ser humano estivesse em risco. Daí não existir qualquer menção expressa de arrimo constitucional, em nosso ordenamento jurídico, no sentido de se tutelar a biota, antes de 1988. Desta forma, para se alcançar a punição ou reparação de danos causados ao meio-ambiente, necessário far-se-ia, antes, que se provasse a existência de degradação das condições de saúde humana, o que, lato sensu, poderia jamais ocorrer de maneira direta, sendo, portanto, uma visão extremamente minimista dada a um problema de tamanha monta.

É de se notar, contudo, que, sem querer impor uma determinação nesta divisão, mesmo antes de 1988 era possível se perceber o desenvolvimento de um Direito Ambiental em nosso ordenamento jurídico, tendo Antônio Herman V. Benjamin5 dividido a evolução histórica do período de surgimento da disciplina, em termos de legislação, até os dias atuais, em três fases, demostrando, muito corretamente, a preocupação que a sociedade outorgou ao nosso patrimônio ambiental nos últimos anos.

A primeira fase, denominada de "exploração" ou "laissez-faire ambiental", foi marcada pela quase inexistência de salvaguarda jurídica da biota, principalmente no Brasil, transcorrendo-se do período colonial e imperial ao republicano, caminhando-se até a década de 60, sendo as ações governamentais caracterizadas por iniciativas isoladas, mais com o sentido de se conservar determinadas culturas do que propriamente buscar a preservação. Basicamente, a conquista de novas fronteiras era tudo o que importava na relação do homem para com natureza. A omissão legislativa, portanto, era dominante neste período.

Seguiu-se a segunda fase, denominada de "fragmentária", marcada (justificando a denominação) pela preocupação não ainda com o mundo natural em si, mas sim com as diversas categorias de recursos naturais existentes, impondo o legislador controles às atividades exploradoras. Deu-se o surgimento dos Códigos, tais como: o Florestal (Lei nº 4.771/65); o de Caça (Lei nº 5.197/67); o de Pesca (Dec-lei nº 221/67) e o de Mineração (Dec-Lei nº 227/67). Mais tarde, surgiram também algumas leis específicas: a Lei de Responsabilidade por Danos Nucleares (Lei nº 6.453/77); a Lei do Zoneamento Industrial nas Áreas Críticas de Poluição (Lei nº 6.803/80); e, por fim, a Lei de Agrotóxicos (Lei nº 7.802/89).

Ademais, e finalmente, veio a terceira fase, chamada de "holística", sendo a ocasião, nas palavras do Profº Benjamin (Ob. cit.), "na qual o ambiente passa a ser protegido de maneira integral, vale dizer, como sistema ecológico integrado (resguardando-se as partes a partir do todo) e com autonomia valorativa (é, em si mesmo, bem jurídico)". Temos como ícone inaugural desta fase, que segue até hoje, a Lei da Política Nacional do Meio-Ambiente (Lei nº 6.938/81). Mais recentemente, foi promulgada a Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), com responsabilização inclusive para pessoas jurídicas, concretizando-se, em lei ordinária, texto até então com previsão apenas constitucional (CF/88, art. 225, § 3º). Em 1995 criou-se a Lei da Engenharia Genética (Lei nº 8.974/95), seguida de diversas instruções normativas. Estas duas últimas leis serão objeto de estudo mais detalhado no corpo do presente trabalho.

Perceba-se, conforme acima dito, que não há compartimentação estanque destas fases no tempo, não podendo, portanto, haver cientificidade na observância das condutas daqueles que elaboraram as leis. A verdade é que o estudo destas fases apenas serve para impor uma certa didática ao conteúdo, pois tais legislações, infelizmente, apenas começaram a surgir com a necessidade imposta pela realidade factual que ia, na medida do tempo, se apresentando, e não como fruto da materialização de pesquisa científica atenta para os problemas respeitantes ao meio ambiente natural e ao desenvolvimento sustentável humano.


3. TUTELA CONSTITUCIONAL E PRINCÍPIOS AMBIENTAIS

3.1. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO DIFUSA AO MEIO AMBIENTE

Existem alguns fundamentos constitucionais que não dispõem de forma expressa sobre a proteção do meio-ambiente, sendo, contudo, numa visão homocêntrica da causa, importantes para se buscar a proteção de nossa biosfera. Informam-nos, portanto, de maneira indireta, a forma de como devemos agir, servindo como mais uma garantia ao ser humano de conservação da saúde e do bem-estar, além de, juridicamente, constituírem tais princípios maneiras inarredáveis de exercício dos direitos fundamentais.

Começamos com o disposto no art. 1º, III, da CF/88. Expressa tal comando que, em um Estado Democrático de Direito, toma-se como fundamento a dignidade da pessoa humana.

Segundo Alexandre de Moraes6, a dignidade da pessoa humana é "um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos". Ora, sendo a dignidade da pessoa humana um "mínimo invulnerável" garantido constitucionalmente, tudo o quanto mais possa vir a abalar tal fundamento será inconstitucional, devendo as normas atentarem para tal proposição, inevitavelmente. Com o meio ambiente não é diferente. O desrespeito aos princípios de direito ambiental, por lei que não os tenha observado, fatalmente, irá também afetar, por via indireta, o direito fundamental da dignidade da pessoa humana. Seria o caso, por exemplo, de se autorizar, por lei, o descarregamento de materiais tóxicos em represa que abastece toda uma população. A poluição, neste caso, atingiria a água da represa, mas, conseqüentemente, também os que dela dependam, sendo cruel atentado à dignidade da pessoa humana, bem como à Constituição, portanto, tal referida e absurda hipótese de lei.

Outro dispositivo constitucional que trata de forma indireta do tema em comento é o trazido pelo art. 6º. Trata-se do direito social à saúde. Forma de garantir-se a saúde não é outra, senão, a efetiva proteção ao nosso ecossistema e à biodiversidade. O direito a alimentos puros implica em garantia indisponível inerente a todos os seres humanos, por acarretar, sua não observância, em males para a saúde de todos, e, quiçá, de seus descendentes também. A poluição mais conhecida é aquela provocada pelos agrotóxicos, fácil de ser identificada, e que não é de hoje conhecida; há, contudo, uma nova forma de poluição, feita a partir de mutações genéticas, de difícil percepção, e de conseqüências ainda não sabidas inteiramente pela comunidade científica. Ambos os tipos de poluição hão de ser combatidos, para o bem da saúde humana, e, também, preservação do meio ambiente.

          3.2. TUTELA CONSTITUCIONAL ESPECÍFICA E PRINCÍPIOS AMBIENTAIS

Para a análise dos Princípios Fundamentais, é preciso, antes, verificar-se o teor do art. 225 da Constituição Federal (Capítulo VI – Do Meio Ambiente), pois é de sua redação que extrair-se-ão a maioria deles. Vejamos, portanto, o citado artigo, ipses literis:

"Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

Passando-se ao estudo dos Princípios Fundamentais de Direito Ambiental, é de destacar-se a transcrição do elenco trazido por Paulo Affonso Leme Machado7, face a importância dos mesmos para o trabalho:

1. O homem tem direito fundamental a condições de vida satisfatórias, em um ambiente saudável, que lhe permita viver com dignidade e bem-estar, em harmonia com a natureza, sendo educado para defender e respeitar esses valores.

Como é de se notar, encontra-se tal princípio no caput do artigo acima transcrito, bem como nos seu § 1º, VI, que diz competir ao Poder Público "promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente". Trata-se de direito social e fundamental do homem à saúde e corolário do Princípio da Educação Ambiental.

2. O homem tem direito ao desenvolvimento sustentável, de tal forma que responda eqüitativamente às necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes

Este é o denominado Princípio do Desenvolvimento Sustentável, encontrado no caput do art. 225 (no trecho que diz: "...preservá-lo para as presentes e futuras gerações"), e definido como aquele que "atende às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das futuras gerações atenderem às suas próprias necessidades" (conceito dado pela Comissão Mundial sobre meio ambiente, em 1972, na Conferência Mundial de Meio Ambiente – Estocolmo)8.

3. Os países têm responsabilidade por ações ou omissões cometidas em seu território, ou sob seu controle, concernente aos danos potenciais ou efetivos ao meio ambiente de outros países ou de zonas que estejam fora dos limites da jurisdição nacional.

Cria-se aqui uma responsabilização civil de reparação e/ou indenização para as ações ou omissões Estatais que resultem em prejuízo para o meio ambiente de outros entes políticos soberanos. Pouco importando se o agente causador é um particular, o Estado onde está localizado o poluidor ou potencial poluidor, deverá responsabilizar-se pelo dano efetivo ou potencial.

4. Os países têm responsabilidades ambientais comuns, mas diferenciadas, segundo seu desenvolvimento e sua capacidade.

Muitos países pobres não podem direcionar uma parte sequer de seu patrimônio para aplicação na área de preservação, prevenção ou recuperação ambiental, uma vez que outros graves problemas, como de saúde, educação e fome assolam toda a nação. Assim, impossível imputar-se grau de responsabilidade idêntico para entes que estejam em situações diferentes. Trata-se do Princípio da Igualdade Material, que deve reger as relações internacionais também, sob pena de latente injustiça.

5. Os países devem elaborar uma legislação nacional correspondente à responsabilidade ambiental em todos os seus aspectos.

Conforme esboçado anteriormente, o Brasil apenas iniciou sua atividade legiferante relativa à proteção efetiva do meio ambiente em meados de 1981, com a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, o que, a grosso modo, tornou-se divisora de águas, dentro de nossa política de elaboração de leis ambientais, entre os antigos regulamentos, que apenas se preocupavam com a quantidade de recursos naturais existentes, e as novíssimas leis de crimes ambientais e de regulamentação de atividade biogenética, criadas já agora, nos anos 90. O que interessa é que hoje tem-se um arcabouço jurídico-legal razoável, faltando, contudo, um melhor aparelhamento para um efetivo policiamento da ampla gama de atividades descritas pelas leis.

6. Quando houver perigo de dano grave e irreversível, a falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para adiar-se a adoção de medidas eficazes em função dos custos, para impedir a degradação do meio ambiente.

Vislumbra-se aqui o Princípio da Precaução, que, segundo Cristiane Derani9, "objetiva prevenir já uma suspeição de perigo ou garantir uma suficiente margem de segurança da linha de perigo. Seu trabalho está anterior à manifestação do perigo". Está expresso este princípio na posição asseverada por nossa Constituição Federal, art. 225, § 1º, IV, onde se adotou a obrigatoriedade da realização do estudo de impacto ambiental (EIA) para toda atividade potencialmente causadora de degradação ambiental, conforme nos lembra Amaitê Iara Giriboni de Mello10, Promotora de Justiça do Meio Ambiente em Taubaté, São Paulo.

7. O Poder Público e os particulares devem prevenir os danos ambientais, havendo correção, com prioridade, na fonte causadora.

Encerra este item os Princípios da Prevenção e Participação (CF, art. 225, caput). O Princípio da Prevenção é um dos mais importantes do Direito Ambiental, haja vista que os recursos naturais, uma vez destruídos, ou não se consegue recuperá-los, ou fica quase impossibilitado tal desiderato, devendo haver uma consciência ecológica pré-formada na consciência de todos que fazem parte de uma sociedade. Havendo o malefício, sendo o meio ambiente um bem de uso comum do povo, todos irão sofrer, ainda que indiretamente, os efeitos do ato, sendo dever coletivo a participação na defesa e preservação do ecossistema.

8. Quem polui deve pagar e, assim, as despesas resultantes das medidas de prevenção, de redução da poluição e da luta contra a mesma, devem ser suportadas pelo poluidor.

Trata-se do Princípio do Poluidor-Pagador, previsto na CF/88, art. 225, § § 2º e 3º: Trata-se do princípio "que impõe ao poluidor o dever de arcar com as despesas de prevenção, reparação e repressão da poluição. Ou seja, estabelece que o causador da poluição e da degradação dos recursos naturais deve ser o responsável principal pelas conseqüências de uma ação (ou omissão)"11.

9. As informações ambientais devem ser transmitidas pelos causadores, ou potenciais causadores de poluição e degradação da natureza, e repassadas pelo Poder Público à coletividade.

O art. 220 da CF/88 nos informa que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição", constituindo-se direito difuso inerente à sociedade brasileira, podendo, qualquer do povo, pelos meios jurídicos cabíveis, ante a falta de informação de qualquer artigo ligado ao meio ambiente (produtos expostos à venda, como soja, carne, etc...), requerer à Administação Pública ou mesmo ao Judiciário, as providências que caibam para o fiel cumprimento de tal dispositivo.

10. A participação das pessoas e das organizações não governamentais nos procedimentos de decisões administrativas e nas ações judiciais deve ser facilitada e encorajada.

A ninguém é negado o acesso ao Judiciário; este é o entendimento do art. 5º XXXV, da CF/88 (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), que perfeitamente se coaduna com o princípio em questão. Fortalece-se com o que dispõe o inciso XXXIV, "a", do mesmo artigo 5º, dispondo que a todos é garantido o direito de petição ao Poder Público, em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Ou ainda o inciso LXXIII, que garante ao cidadão o direito à ação popular, para, entre outros fins, resguardar o patrimônio ambiental de quaisquer atos lesivos que o ponham em risco.


4. OS ORGANISMOS TRANSGÊNICOS: CONCEITOS, RISCOS E BENEFÍCIOS.
A QUESTÃO DA ROTULAGEM EM FACE DO DIREITO DO CONSUMIDOR

4.1. CONCEITO DE "TRANSGÊNICOS"

Vivemos hoje uma revolução no mercado consumidor, principalmente de carnes e grãos, devido à eficácia de métodos biogenéticos, perfazendo pequenas alterações, com resultados fantásticos, em organismos vivos como a soja, o trigo, as aves, o gado, etc... São os chamados Organismos Geneticamente Modificados (OGM), definidos pelo art. 3º, IV, da Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, como o "organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética". A própria lei exclui da classificação de transgênicos (ou OGM) aqueles organismos "resultantes de técnicas que impliquem a introdução direta, num organismo, de material hereditário, desde que não envolvam a utilização de moléculas de ADN/ARN recombinante ou OGM, tais como: fecundação in vitro, conjugação, transdução, transformação, indução poliplóide e qualquer outro processo natural".

De forma bastante simples, mas elucidativa, a Profª Drª Lenise Aparecida Martins Garcia12, do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília, definiu os transgênicos:

"Chamamos transgênicos (ou OGMs – organismos geneticamente modificados) aqueles organismos que adquiriram, pelo uso de técnicas modernas de Engenharia Genética, características de um outro organismo, algumas vezes bastante distante do ponto de vista evolutivo. Assim, o organismo transgênico apresenta modificações impossíveis de serem obtidas com técnicas de cruzamento tradicionais, como uma planta com gene de vaga-lume ou uma bactéria produtora de insulina humana".

          4.2. OS RISCOS E BENEFÍCIOS DOS TRANSGÊNICOS E A QUESTÃO DA ROTULAGEM: INTERPENETRAÇÃO DO DIREITO AMBIENTAL COM AS GARANTIAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

Muito se comenta acerca dos riscos dos transgênicos, talvez devido à insegurança gerada pela falta de pesquisa suficiente para esclarecer quais as verdadeiras conseqüências trazidas pela sua introdução tanto no mercado consumidor, como na própria biota.

Há de se verificar, com bastante serenidade, o que de real existe em toda esta especulação, para que não caiamos na vala comum e sejamos envoltos pelo romantismo inerente, principalmente, aos políticos, que, por trás de falsos argumentos científicos, na verdade, escondem um inegável desejo de favorecer os grupos econômicos que os apóiam, interessados que são neste imenso mercado consumidor, e celeiro do mundo, que é o Brasil.

O presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Eloi Garcia, em matéria publicada no Correio Braziliense, de 9 de junho de 1999, assim colocou o seu posicionamento acerca dos riscos trazidos pelos transgênicos:

"A questão é tão importante que não podemos deixar também de discutir os riscos dessa tecnologia. Será que o processo transgênico não pode ser também tóxico e provocar reações alérgicas? Não serão os transgênicos ‘poluidores genéticos’ que espalham genes estranhos por transferência horizontal planta-planta, planta-microorganismo e planta-animal, ou marcadores genéticos de resistência a antibióticos? A resistência aos herbicidas e pesticidas não aumentará o consumo desses compostos que também poluem plantas, animais, solo e água?"

O relatório da British Medical Association13 (1999) afirmou que a introdução de alimentos transgênicos na Inglaterra é prematura, devido à falta de dados suficientes que evidenciem a segurança do processo de produção.

A Profª Drª Lenise A. M. Garcia (Ob. cit.)coloca que "um dos principais problemas com o risco relacionado aos transgênicos é exatamente a incerteza sobre quais são. Os que se colocam desfavoráveis à sua disseminação usam, como um dos principais argumentos, o fato de que não conhecemos todas as características dos organismos que estamos produzindo, e, portanto, o seu possível efeito sobre a saúde humana e/ou o ambiente".

Curiosamente, segundo noticiário do Notimex Brasil14 , a incidência de câncer de mama nos Estados Unidos aumentou ao mesmo tempo em que foi iniciada a comercialização, naquele país, de carne e leite de vaca produzidos a partir de animais geneticamente modificados. A União Européia iniciou os embargos a tais produtos (pois adota, diferentemente dos E.U.A, Argentina e Canadá – maiores produtores de OGM – o princípio da precaução), tendo, contudo, cedido ante a fortíssima pressão da Organização Mundial de Comércio (OMC).

Quanto ao risco de perturbação ecológica, com o descarte de OGM na natureza e a possibilidade de poluição genética, Sérvio Pontes Ribeiro e Rogério Parentoni Martins15, Professores de Ecologia da UFMG, assim discorreram:

"Mas, as transgênicas não trariam o mesmo risco que quaisquer outras plantas introduzidas? A resposta talvez seja não, em parte porque não existem dados, e este é um dos grandes perigos. O controle e teste de quaisquer espécies devem ser feitos com muito cuidado, investimento e fiscalização para gerar dados confiáveis. Nesse ponto, ecólogos e biotecnólogos até concordam. O que é amplamente desconsiderado pelos últimos é o aspecto evolutivo. As plantas modificadas, ao contrário das domesticadas, podem não Ter inimigos naturais. Simultaneamente ao processo de domesticação de uma planta oriunda da natureza, evoluem parasitas, doenças e competidores. Como uma planta transgênica vem de um laboratório, no caso de se tornar uma praga, seria mais difícil seu controle biológico, restando assim os tradicionais produtos químicos".

A soja RR (Roundup Ready), manipulada pela Monsanto Internacional, primeira a ser utilizada no Brasil para plantio e consumo, foi alterada em seus cromossomos para, com a introdução de um gene de bactéria, tornar-se resistente ao herbicida Roundup (glifosato), identicamente produzido pela Monsanto. Por meio de parecer técnico do CTNBio – Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (D.O.U de 1 de outubro de 1998), foi a semente liberada para cultivo e consumo. Foi, contudo, pela insuficiência de dados considerados no parecer, contestado o resultado entregue pela CTNBio, principalmente pela Drª Glacy Zancan (vide nota 12) , vice-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), configurando-se, de acordo com as palavras desta, a atitude da comissão, uma afronta ao Princípio Ambiental da Precaução:

"A rapidez da liberação das plantas transgênicas, nos Estados Unidos, chamou a atenção de que não estavam sendo considerados os riscos a longo prazo e que os testes e protocolos experimentais necessários à definição da segurança para o meio ambiente, para a saúde humana e animal, não estavam convenientemente detalhados. As dúvidas levantadas sobre cada caso têm aparecido permanentemente na literatura pertinente, apontando para a necessidade de maiores estudos sobre as implicações do cultivo em larga escala de plantas alteradas geneticamente, via biotecnologia. É o problema de insetos resistentes a proteína tóxica do Bacillus thuringensis (toxina Bt) incorporada no algodão seletivamente na folha. É a transferência de gene de resistência a um herbicida da canola para Brassica comprestis, uma planta selvagem da mesma família (...). Em nosso país, além das dúvidas gerais, se acrescem aquelas decorrentes do desconhecimento da biodiversidade florística dos diferentes ecossistemas que compõem o país... . Com relação ao meio ambiente, um dos problemas levantados é a destruição da biodiversidade de insetos, com a quebra da cadeia alimentar de outros animais. É bom lembrar, que só a floresta da Tijuca, no Rio, tem mais espécies de insetos do que os Estados Unidos".

M. A. Hermitte e C. Noiville, citados pelo jurista Paulo Affonso Leme Machado (Ob. cit., p. 782), colocam, ainda, como riscos da engenharia genética, "o aparecimento de traços patógenos para humanos, animais e plantas; perturbação para os ecossistemas; transferência de novos traços genéticos para outras espécies, com efeitos ‘indesejáveis’; dependência excessiva face às espécies, com ausência de variação genética".

Não pretende-se, com tais assertivas colocadas no corpo do trabalho, tomar-se uma posição alarmista e inconseqüente da questão, e, sim, abrir espaço para novas discussões acerca do tema, vez que tão próximo de nossa realidade de consumo. Além disso, diante do quadro de evolução biotecnológica que ora apresenta-se, boas novas também existem, tais como: a criação de organismos capazes de produzir a insulina humana, altamente utilizada pela medicina; a produção do fator VIII de coagulação sangüínea, com bactérias geneticamente modificadas, evitando a obtenção a partir de sangue humano, escusando-se, assim, a contaminação de hemofílicos pelo vírus da AIDS, entre outras citáveis.

Diante de tantas controvérsias, é de se perguntar: enquanto a conclusão em torno dos malefícios e benefícios dos transgênicos não sai, como ficam os consumidores finais dos produtos que já se encontram à disposição no mercado? Deve haver rotulação? A exigência é pertinente?

Quanto à rotulagem dos transgênicos, ocorre uma situação interessante, de pôr-se mesmo em dúvida a lisura do processo de desmistificação do consumo de alimentos transgênicos. O fato é que os produtores de transgênicos, as grandes empresas de biotecnologia, utilizam-se de dois pesos e duas medidas quando da abordagem propagandística para com os agricultores e consumidores. Explica-se: para o segmento de grãos (mercado comum), a fim de assegurar o consumo por parte da população em geral, procuram os produtores de transgênicos misturá-los aos demais produtos similares, com o argumento de que são idênticos (por exemplo, a soja RR e a soja comum); já para os agricultores (setor de sementes), o marketing é utilizado para diferenciar o transgênico, como elemento de superprodução, imune a agrotóxicos e pestes. É uma lógica nefasta, sem cabimento, e que apenas serve de engodo mercadológico.

Conforme explicita Alberto Nobuoki Momma16, "do ponto de vista do genoma, da análise do DNA, uma planta natural e outra modificada são intrinsecamente distintas pelo fato de uma conter o gene de resistência ao herbicida, além do marcador molecular que o ‘identifica’ como planta transgênica de propriedade, por exemplo, da Monsanto" - grifamos. Portanto, se, do ponto de vista científico, um alimento é diferente do outro, e sendo ambos postos em comércio para consumo, há de ser observada a rotulação, como meio de garantir a legítima liberdade de escolha do consumidor.

Assim, a Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, dispõe, no art. 6º, III, ser direito básico do consumidor, a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem.

No mesmo sentido, e ampliando as responsabilidades dos empresários, o disposto no art. 8º do CDC: "Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito".

É medida importantíssima, impondo-se que seja tomada por todos os fornecedores, pois, senão, apenas para argumentar, como ficariam os consumidores que são vegetarianos, se um gene animal fosse incluído em um determinado vegetal? Não teria o consumidor que tomar ciência desta alteração?

Diante de todas estas problemáticas, e outras mais que se apresentam, há o Direito de proteger o patrimônio genético de maneira contundente, a propiciar o desenvolvimento sustentável, para, assim, garantir a sobrevivência das gerações futuras. O que se quer não é evitar os avanços da ciência, conforme já ocorrido ao longo da história, até porque os benefícios também estão à mostra de todos, conforme se observa nos noticiários; o que deve imperar, contudo, é a ética e a correta aplicação, por pessoas bem intencionadas, das diversas técnicas de biotecnologia que dia a dia vão surgindo, o que fica bastante difícil, ante a visão extremamente capitalista que hoje impera no mundo, bem como pelo poderio e capacidade de manipulação das grandes multinacionais, influenciadoras que são de países pobres de líderes políticos, como é o caso de nosso Brasil.


5. ASPECTOS DAS LEIS NºS 8.974/95 E 9.605/98

5.1. NOÇÕES GERAIS ACERCA DA LEI DE BIOSSEGURANÇA (8.974/95)

O patrimônio genético nacional, com o advento da Carta Magna de 1988, veio a ser tutelado por meio do art. 225, § 1º, II, cabendo ao Poder Público, para garantir a defesa do meio ambiente, "preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético". Sendo ainda incubência do Estado, dentro do que dispõe o mesmo artigo, em seu inciso V, "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente".

Com a chegada da Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, altamente inspirada nos princípios ambientais acima elencados, e que veio para regulamentar exatamente os incisos II e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, ficaram estabelecidos, de acordo com o disposto no art. 1º da lei, "normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismos geneticamente modificados (OGM), visando a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente".

Erigiu o legislador ordinário, assim, ao mesmo patamar de importância, de acordo com o final da redação deste artigo 1º da Lei 8.974/95, a saúde humana, vegetal e animal, valorizando-se, assim, o ecossistema, pondo por terra, afinal, a velha visão antropocêntrica que antes reinava em nossa legislação.

Previu, a lei sob comento, a proibição de manipulação genética de células germinais humanas (art. 8º, II), elevando esta conduta ao status de crime (art. 13, I), com pena de reclusão de 6 a 20 anos em caso de resultado morte, afastando assim, nossa legislação, ao menos em tese, o perigo de termos verdadeiros monstros de laboratório, ou mesmo a tentativa de prática de eugenia em nosso país, objetivo este buscado em certo período da história alemã, sob os auspícios do nazista Adolph Hitler.

A utilização de técnicas da biotecnologia fica reservada para a exceção que a própria lei põe para tanto: a intervenção em material genético humano in vivo, para tratamento de defeitos próprios genéticos, com ressalva para a observância de princípios éticos, tais como o princípio da autonomia e o princípio de beneficiência (arts. 8º, III e 13, II).

O Princípio bioético da Autonomia informa que a pessoa é livre para determinar sua vontade relativamente à intervenção médica, pontuando-se, contudo, que nem todas as pessoas possuem esta vontade livre e consciente, devido à interferência de distúrbios mentais ou doenças que não permitam a manifestação do querer; tais pessoas não possuem a capacidade de se autodeterminar.

O outro princípio, o da Beneficiência, é resultado de um postulado proposto ainda em 430 a.C., por Hipócrates (§ 12, 1º Livro da obra Epidemia): "Pratique duas coisas ao lidar com as doenças; auxilie ou não prejudique o paciente". É o princípio que informa a obrigação do profissional médico de atuar no sentido de não prejudicar aquele que necessita dos seus cuidados.

A importância desta lei se deve, principalmente, ao controle da atividade biogenética por meio de um sistema, que, ao menos teoricamente, é quase ideal, por impor sanções de ordem administrativa, penal e civil.

          5.2. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO DO EXERCÍCIO DE ATIVIDADES BIOGENÉTICAS ÀS PESSOAS FÍSICAS

É importante frisar a imposição que a Lei nº 8.974/95 colocou de somente poderem atuar na área da engenharia genética pessoas jurídicas:

Art. 2º, § 2º: "As atividades e projetos de que trata este artigo são vedados a pessoas físicas enquanto agentes autônomos independentes, mesmo que mantenham vínculo empregatício ou qualquer outro com pessoas jurídicas" – grifamos.

Este artigo é contestado por grande parte dos juristas, entre eles Paulo Affonso Leme Machado (Ob. cit., p. 786), por contrariar o disposto no arts. 5º, XIII e 170 da Constituição Federal, transcritos a seguir, na ordem respectiva:

"Art. 5º, XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer".

"Art. 170, parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".

Louvável a intenção do legislador ordinário ao não querer, por certo, a proliferação de clínicas ou laboratórios biogenéticos em toda a extensão do território nacional, o que dificultaria a fiscalização. Contudo, o espírito da norma não é o de dificultar o trabalho de profissionais sérios existentes, mas que, de acordo com o dispositivo ordinário supracitado, têm que estar empregados a alguma pessoa jurídica para, assim, poderem trabalhar. Até mesmo pela leitura dos objetivos da lei percebemos claramente que este artigo encontra-se um tanto quanto destoante. O Estado existe para exercer o seu Poder de Polícia, e não para, por comodidade, vedar o acesso ao trabalho, por suposta facilitação da fiscalização, sendo, por estas razões, inconstitucional o § 2º, do art. 2º, da Lei nº 8.974/95.

          5.3. DA OBRIGATORIEDADE DE APRESENTAÇÃO DO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL – EIA – À COMISSÃO TÉCNICA NACIONAL DE BIOSSEGURANÇA – CTNBio

Por intermédio da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 (marco inaugural da 3ª fase da evolução histórica de nosso Direito Ambiental), em seu art. 9º, III, incluiu-se como meio de precaução ambiental (em atenção ao princípio de mesmo nome, acima estudado) e instrumento da política nacional do meio ambiente, a avaliação ou estudo de impacto ambiental (EIA), espelhado, segundo informes de Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues, nos chamados "environmental impact assessment", do direito norte-americano (vide nota 8, p. 218), que, depois, veio a ser confirmado pela CF/88, no seu art. 225, IV, como incumbência do Poder Público:

"IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;" – grifamos.

Segundo Paulo de Bessa Antunes17, "...o EIA é conditio sine qua non para a concessão de qualquer licenciamento de obra ou empreendimento de impacto ambiental. Destarte, o licenciamento transmutou-se em ato administrativo complexo, cujo requisito básico é a apresentação e aprovação do RIMA, em seus aspectos técnicos e formais. Parece-me que, por força de caráter eminentemente público, assumido pelo EIA, os requisitos formais para sua elaboração assumem natureza imperativa, de essencialidade para a própria validade do ato. A formalidade administrativa é, aqui, um pressuposto capaz de garantir a coletividade a correta utilização do meio ambiente".

Mostra-se o EIA, portanto, instrumento preciosíssimo na luta contra a disseminação de OGM em nossa biosfera, principalmente porque as pesquisas nesta área tecnológica ainda são imprecisas, daí a razão do veto presidencial ao espúrio art. 6º da Lei de Biossegurança, que dispensava a apresentação do estudo prévio de impacto ambiental para as atividades envolvendo transgênicos. Com o veto, continua a ser exigido o EIA, que deve ser apresentado à CTNBio – Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.

Esta Comissão, a CTNBio, criada pelo Decreto nº 1.752, de 20 de dezembro de 1995, é composta por 18 membros, sendo:

  1. oito especialistas em biotecnologia;
  2. um representante de cada um dos seguintes ministérios: Ciência e Tecnologia, Saúde, Meio Ambiente, Educação e Relações Exteriores;
  3. dois representantes do Ministério da Agricultura;
  4. um representante de órgão de defesa do consumidor;
  5. um representante do setor empresarial;
  6. um representante de órgão de proteção à saúde do trabalhador.

Trata-se de uma comissão, conforme visto, ao menos na teoria, bem formulada, aliando-se o vetores sociais e tecnológicos da sociedade, competente para analisar todos os processos enviados pelos Ministérios, relativos a projetos e atividades relacionados a OGM no território nacional (art. 7º, VII, Lei nº 8.974/95), contemplando no EIA todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto a ser implantado, identificando e avaliando sistematicamente os impactos ambientais gerados na implementação, definindo geograficamente a área a ser, direta ou indiretamente, atingida pelos impactos (art. 6º da resolução CONAMA nº 237/97), emitindo o Certificado de Qualidade em Biossegurança (art. 2º, § 3º, Lei nº 8.974/95), ofertando parecer técnico conclusivo sobre qualquer tipo de liberação ou comercialização de OGM, entre outras tarefas definidas por lei.

Outros instrumentos administrativos de controle do impacto ambiental são o RIMA – Relatório de Impacto Ambiental -, e o RAIAS – Relatório de Ausência de Impacto Ambiental. O primeiro, que quase sempre acompanha o EIA, serve, principalmente, sendo o estudo de impacto ambiental de cunho eminentemente técnico, para "transcrever" o resultado científico obtido, em linguagem clara e concisa para os leigos e a população em geral, em conformidade, portanto, com o princípio da informação. Já o RAIAS é decorrente de uma falha da CF/88, que em seu art. 225, IV, apenas mencionou que o EIA serviria para atividades potencialmente causadoras de impacto ambiental, sem defini-las. Desta feita, em presunção relativa de que a Constituição quis, assim, açambarcar todas as atividades relacionadas ao meio ambiente, deve o empreendedor apresentar o relatório de ausência de impacto ambiental, podendo este ser regulamentado em cada Estado do país.

Mostram-se o EIA, o RIMA, e o RAIAS, portanto, como meios importantíssimos de se avaliar as condições com que determinadas empresas atuarão no meio ambiente, podendo-se, conforme visto, não outorgar-se a licença ambiental, caso sejam os relatórios acima mencionados negativos.

Em consonância com o espírito destes relatórios, a Lei nº 8.974/95, em seu art. 8º, VI, § 1º, assim dispôs:

"Os produtos contendo OGM, destinados à comercialização ou industrialização, provenientes de outros países, só poderão ser introduzidos no Brasil após o parecer prévio conclusivo da CTNBio e a autorização do órgão de fiscalização competente, levando-se em consideração pareceres técnicos de outros países, quando disponíveis" – grifos não originais.

Trata-se de um plus elencado pela Lei nº 8.974/95, a que a empresa de biotecnologia terá que se submeter, apresentando o EIA/RIMA, e aguardando o parecer da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, configurando-se infração administrativa, penalizada com multa a partir de 16.110,80 UFIR, o ato daquele que liberar no meio ambiente qualquer OGM sem aguardar a sua prévia aprovação (Lei de Biossegurança, art. 12, III), configurando-se, ainda, esta atitude, fato típico criminoso, conforme o art. 13, V, da citada lei.

          5.4. DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NOS CRIMES AMBIENTAIS – ART. 3º DA LEI Nº 9.605/98

Versa o art. 3º da Lei de Crimes Ambientais:

"As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativamente, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade" – grifamos.

Trata-se, inegavelmente, de responsabilização penal de pessoa jurídica, introduzida em nosso ordenamento jurídico pela CF/88, art. 225, § 3º, no caso específico dos delitos ambientais, e art. 173, § 5º, nos crimes contra a economia popular.

Diz o art. 225, § 3º:

"As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados" – grifo nosso.

Trata-se de verdadeira revolução no âmbito do direito pátrio, que sempre adotou a teoria da ficção da pessoa jurídica de Savigny, a qual nega possibilidade de incriminação da chamada "pessoa moral", filiando-se, neste ponto, à teoria da realidade objetiva de Gierke, que atribui vontade própria ao ente jurídico.

Muito se discute acerca da legitimidade de tal proposição, entre eles os Professores Eugenio Raúl Zaffaronni e José Henrique Pierangelli18:

"Não se pode falar de uma vontade em sentido psicológico no ato da pessoa jurídica, o que exclui qualquer possibilidade de admitir a existência de uma conduta humana. A pessoa jurídica não pode ser autora de delito, porque não tem capacidade de conduta humana no seu sentido ôntico-ontológico".

E, segundo David Santos Fonseca19, "seria suficiente a simples demonstração de incapacidade de conduta dos entes coletivos para demonstrar a incongruência de sua respectiva responsabilização. Afinal, a sociedade, pelo exposto, somente poderia delinqüir pela atuação individual de seus prepostos, os quais deveriam ser os únicos responsabilizados, mesmo que o delito fosse cometido em favor da coletividade".

Falta, portanto, à pessoa jurídica, um dos requisitos para se imputar uma conduta a alguém, ou seja a consciência da ilicitude do fato cometido. Apresenta-se falha esta corrente de pensamento, infelizmente adotada em parte pela nossa Constituição, pois impossibilita a realização de uma de suas funções, qual seja, a de prevenção especial, restando impossibilitadas a ressocialização e a reinserção social de uma empresa. É a negativa de todos os principais postulados de Direito Penal até hoje construídos com muitos esforços.

É importante frisar, concluindo este ponto, que o argumento apresentado pelos que adotam a teoria da realidade objetiva para a responsabilização dos entes jurídicos, pautando-se na defesa de que, assim, fica mais fácil de se aplicar multas mais robustas, de forma equivalente ao patrimônio das empresas, é falho, pois a pena não possui finalidade indenizatória, e, sim, de prevenção geral e especial, podendo o ressarcimento pelos danos causados ser buscado na esfera civil, por meio de ação adeqüada.


6. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto e fundamentado, verifica-se que, ao menos teoricamente, está o Direito brasileiro caminhando na direção certa para a via do desenvolvimento sustentável, de modo a garantir o meio ambiente, que hoje aqui se encontra, para as gerações futuras.

A ameaça dos transgênicos, conforme exposto, é real e, livre de qualquer tipo de preconceito, merece a apreciação científica necessária, em tempo ideal, para fins de precaução e posterior prevenção (vide item 3.2), devendo nossa legislação, pelo sistema de controle acima estudado, garantir a preservação do patrimônio genético humano, animal e vegetal, pois, conforme lição de Celso A. P. Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues (Ob. cit., p. 457), trata-se "antes de tudo, um seguro e um investimento necessário para manter e melhorar as opções futuras".

Quedar em esquecimento tal matéria, ou fazer-se vistas grossas ante o bonde da "revolução verde" que já está em andamento, é, para todos os que operam na área do Direito, igual a decretar o sepultamento de nossa ciência, de função social tão relevante, em face da inesgotável capacidade de mutação da sociedade.

A discussão do assunto não termina por aqui, vez que a sua continuação possibilita a atualização e a conclusão sobre a pertinência de institutos jurídicos a serem utilizados ou mesmo a serem criados. O que aqui se expôs foi apenas um panorama da vasta gama de instrumentos jurídicos que aí estão, e que podem, de igual modo, serem utilizados para a defesa do patrimônio genético, como a Ação Popular e a Ação Civil Pública, a serem tratadas em outra ocasião.

Termina-se por aqui este sucinto trabalho, na expectativa de que não surja, em nosso mundo real, com o avanço desenfreado da tecnologia, um verdadeiro Minotauro, como o que existiu na dimensão mitológica grega, pois, aqui, ao contrário da Grécia antiga, nós não contamos com um Teseu para eliminá-lo, e sim com a vontade política daqueles que legislam, assim como daqueles que executam. A luta pela defesa do patrimônio ambiental, e, atualmente, mais especificamente, do patrimônio genético (o DNA humano foi, recentemente, mapeado por uma empresa privada norte-americana) há de se tornar perene, eficaz e contundente, sob pena de extinção da própria raça humana.


NOTAS

1. retirado do laboratório de tradução do Curso de Letras da UFMG: site www.letras.ufmg.br/translators.

2. Revista de Direito Ambiental, ano 4, nº 15, São Paulo, Revista dos Tribunais: julho-setembro 1999

3. www.orion.ufrgs.br/HCPA/gppg/transg1.htm

4. A Civilização Transgênica e Cibernética, artigo capturado no sítio www.buscalegis.ccj.ufsc.br

5. In: Revista de Direito Ambiental, ano 4, nº 14, São Paulo, Revista dos Tribunais: abril-junho 1999

6. Direito Constitucional, 6ª ed., Atlas, São Paulo, 1999, p. 47

7. Direito Ambiental Brasileiro. 7ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998.

8. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável, p. 118/119, 2ª ed., Max Limonad, São Paulo, 1999.

9. Direito Ambiental Econômico. São Paulo, Max Limonad, 1997

10. Anais do 3º Congresso de Meio Ambiente, Ministério Público do Estado de São Paulo, Ubatuba, 1999.

11. Antonio Herman V. Benjamin, citado por Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Adriana Diaféria, em Biodiversidade e Patrimônio Genético no Direito Ambiental Brasileiro, p. 82, Max Limonad, São Paulo, 1999

12. Plantas Transgênicas, artigo capturado no sítio www.mindware.com.br/edutecnet/edtransg.htm

13. Silvio Valle & Marco Antonio F. Costa – Fundação Oswaldo Cruz – artigo capturado na internet: www.agrobrasil.com.br.

14. www.sos.doutor.com.br

15 www.globoon.com.br/ecoturismo/texto3.htm

16. Revista de Direito Ambiental, ano 4, nº 16, São Paulo, Revista dos Tribunais: outubro-dezembro 1999

17. Curso de Direito Ambiental, Ed. Renovar, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1992, p. 112/113

18. Manual de Direito Penal Brasileiro – parte geral. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997, p. 893.

19. Anais do I Congresso Internacional de Direito Ambiental, vol. II, São Paulo: IMESP, 1999


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Felipe Luiz Machado. Biodiversidade e desenvolvimento sustentável. Aspectos teóricos da proteção legal brasileira ao patrimônio genético. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1691. Acesso em: 28 mar. 2024.