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A fundamentação da medida provisória

requisito de legitimidade constitucional e garantia do Estado Democrático de Direito

A fundamentação da medida provisória: requisito de legitimidade constitucional e garantia do Estado Democrático de Direito

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RESUMO

A medida provisória é um ato do Executivo com força provisória de lei (art. 62, CF). É um instrumento novo do sistema constitucional brasileiro, inobstante a experiência passada com os decretos-lei. Seu objetivo é possibilitar ao Chefe do Executivo a adoção de medidas jurídicas em face de circunstâncias relevantes e urgentes que imponham a ação imediata do Estado, inexistindo outros instrumentos jurídicos capazes de satisfazerem a demanda.

Desde de sua adoção, a partir de 1988, seu uso vem sendo abusivo, em flagrante desrespeito ao mandamento constitucional que pressupõe a existência de circunstâncias extraordinárias para a sua adoção. Os outros dois Poderes têm se curvado ante à acintosa supremacia inconstitucional do Executivo, atentatória da separação dos Poderes.

Considerando que é um ato do Executivo, está ela adstrita aos elementos e requisitos que legitimam os atos desse Poder. Dentre esses requisitos, têm-se a fundamentação, que é o esclarecimento jurídico e fático da razão de se expedir determinado ato. Assim, estar-se-á possibilitando o exame da existência ou não dos pressupostos constitucionais legitimadores da medida provisória.

Portanto, o que se defende é a necessidade de fundamentação da medida provisória, a fim de que seja possível a adequada aferição do preenchimento dos pressupostos constitucionais, por parte do Congresso Nacional (controle político) e por parte do Judiciário (controle judicial). Com a viabilidade desse exame, garante-se o princípio da separação dos Poderes, que sofre uma séria exceção com a medida provisória e um perigoso atentado com o seu uso demasiado e descriterioso, como vem acontecendo.

Quer-se, outrossim, que o Judiciário firme uma posição de independência, assumindo o papel que lhe foi outorgado pela Constituição: o de guardião dela. Assim, força o Executivo a ser mais criterioso na adoção dessas medidas, garantindo a supremacia do Texto constitucional, ante essas tentativas — até agora — de violação dele.


EMENTA

Medida provisória. Ato do Executivo. Natureza jurídico-política. Elementos e requisitos dos atos administrativos. Necessidade de fundamentação. Controle judicial dos pressupostos constitucionais: relevância e urgência. Legitimidade constitucional e garantia do Estado Democrático de Direito.

"Persuada-se o príncipe que... a lei morta não pode dar vida à república; considere que as leis são os muros dela, e que se hoje se abriu uma brecha, por onde possa entrar um só homem, amanhã será tão larga que entre um exército inteiro."


(Pe. Antônio Vieira)


INTRODUÇÃO

Dentre as inovações da Constituição de 1988 tem-se a Medida Provisória (art. 62), em substituição ao Decreto-Lei, que fazia parte da ordem constitucional anterior (art. 58). O uso demasiado deste novel instituto, assim como as dúvidas que ainda planam acerca de sua natureza, características, efeitos e, sobretudo, de seus limites e controle, tornam por demais interessante e atual o seu estudo e debate.

A fim de obter algum êxito, visto que exíguo é o espaço que dispomos, centramos a análise em um aspecto que reputamos o "cerne da questão", em se tratando de EXPEDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS LIMITES CONSTITUCIONAIS: a fundamentação da medida provisória, que, a nosso ver, é requisito de legitimidade constitucional e garantia do Estado Democrático de Direito.

I. SEPARAÇÃO DOS PODERES E MEDIDAS PROVISÓRIAS

É consabido que as medidas provisórias são exceções constitucionais ao princípio da separação dos Poderes, que em nossa Constituição goza de enorme prestígio, haja vista os arts. 2º e 60, § 4º, inciso III, assim como todo o Título IV, versando sobre a Organização dos Poderes.

Em sendo uma exceção constitucional é limitada. Exige-se a sua submissão ao crivo do Congresso Nacional (art. 62), só tendo perfeição se aprovada pelo mesmo. Além de que, caso haja lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV), provocada por medida provisória, esta não escapa da apreciação judiciária.

Essa proeminência da separação dos poderes advém das lutas contra o Estado absolutista. Alguns se insurgiram contra a concentração de poder estatal em torno de um só, seja órgão ou pessoa. Dentre esses, temos Locke e Montesquieu, que foram os mais importantes teoristas do moderno constitucionalismo, no tocante à questão da divisão dos poderes.

No Absolutismo, a produção normativa estatal concentrava-se na vontade do rei. Era ele quem dizia o direito e quem dava a última, senão a única, palavra na aplicação do mesmo. Em face do direito, o monarca criava, executava e decidia.

A teoria da separação dos poderes não nega a indivisibilidade do poder estatal. Ocorre que o Estado não é um só indivíduo, conforme célebre frase de Luís XIV — o Rei-Sol — (L`état c’est moi). O sentido dos atos emanados do Estado, que se convencionou chamar de vontade estatal, já não é somente a do monarca soberano, mas sobretudo advinda do povo, através da soberania popular, expressada por seus representantes, os legisladores. De sorte que, ao Monarca (não mais soberano) ficava a atribuição ou poder de fazer valer a vontade emanada da lei, no aspecto executivo ou administrativo.

Formava-se o tripé que tinha como corolário a garantia dos direitos individuais e a limitação do poder estatal, com o legislativo criando as leis, o executivo administrando-as e o judiciário aplicando-as nos conflitos de interesses. Era a teoria dos checks and balances, "freios e contrapesos", de Bolingbroke.

A teoria da separação dos poderes procura ser um mecanismo racional de limitação ao uso do poder, do mesmo modo que é uma técnica de divisão das funções precípuas do Estado (legislar, administrar e julgar). Esse princípio tornou-se verdade insofismável no constitucionalismo ocidental. No Brasil, a atual Constituição é estruturada sobre esse princípio.

Toda a teorização em torno da estrutura e do exercício dos poderes estatais tem origem empírica. Foi a experiência histórica que possibilitou a sistematização de doutrinas concernentes ao poder. Em se tratando dos atos emanados do Poder Executivo com força de lei não é diferente. A pureza do princípio da separação dos poderes impunha uma total distinção entre os mesmos. As esferas de atuação estavam delimitadas, sendo vedada a interferência de algum Poder nas atribuições de outro.

Porém, a força da realidade foi (e é) maior que as palavras inscritas na "folha de papel". Mesmo sem prévia disposição constitucional, o Poder Executivo começou a imiscuir-se nas atribuições dos outros Poderes, mormente do Legislativo. Isso passou a ocorrer principalmente com a necessidade de maior atuação do Estado na vida social. A rigidez da separação dos poderes, apanágio do Estado liberal, sofria os seus primeiros abalos com o surgimento do Estado social, que exigia uma maior e mais rápida atividade normativa estatal.

II. MEDIDAS PROVISÓRIAS E DECRETOS-LEIS

É conveniente o estudo acerca das medidas provisórias com uma análise dos institutos que lhe são afins. A denominação usada para esses institutos é, geralmente, decreto-lei. Demonstrando a própria terminologia ser um ato híbrido, uma vez que contém dois termos que pertencem, em regra, a duas categorias de atuação do Estado: o decreto (Poder Executivo) e a lei (Poder Legislativo).

Para Biscaretti di Ruffia, o primeiro exemplo de ingerência do executivo na atividade legislativa, após a consagração da separação dos poderes, foi na Itália, com o Decreto nº 738, de 27 de maio de 1848, que invocava a urgência como razão de sua expedição. Apesar da falta de previsão constitucional (o Estatuto Albertino), o referido decreto e os demais que advieram foram validados tanto pela magistratura como pelo parlamento. Em razão, registre-se, do aspecto urgência.

Também foi na Itália que o constituinte brasileiro buscou a matriz das medidas provisórias. No art. 77, da Constituição italiana de 1947, está disposto, em vernáculo:

"Quando em casos extraordinários de necessidade e de urgência o governo adota, sob sua responsabilidade, provimentos provisórios com força de lei, deve apresentá-los no mesmo dia para a conversão às Câmaras, que, mesmo dissolvidas, serão especialmente convocadas para se reunir no prazo de cinco dias. Os decretos perdem eficácia desde o início, se não forem convertidos em lei no prazo de sessenta dias a partir de sua publicação. As Câmaras podem, todavia, regulamentar com lei as relações jurídicas surgidas com base no decreto"

É bem verdade que na ordem constitucional brasileira anterior (1967/69) havia o instituto do decreto-lei, in verbis, redação originária:

"Art. 58. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:

I - segurança nacional;

II - finanças públicas.

Parágrafo único. Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou o rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido como aprovado".

Posteriormente, esse artigo sofrera uma série de modificações, assim como toda a Constituição de 1967, principalmente através da Emenda nº 01 de 1969. Na terminologia originária, tinha-se "decreto com força de lei", que com a Emenda nº 01, passou a chamar-se de Decreto-Lei, como também foi acrescentado, no art. 58, o inciso III (criação de cargos públicos e fixação de vencimentos) e no inciso II, mesmo artigo, acrescentou-se "inclusive normas tributárias".

O atual Texto Constitucional brasileiro dispõe:

"Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo máximo de cinco dias.

Parágrafo único: As medidas provisórias perderão eficácia desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes".

Da leitura desses dois dispositivos e dos textos constitucionais nos quais estavam insertos, extraem-se algumas semelhanças e diferenças entre os institutos. Dentre as semelhanças, podemos dizer que: a) ambos os institutos fazem parte do processo legislativo (art. 49, inciso V, C.F. de 1967 e art. 59, inciso V, C. F. de 1988); b) são atos do executivo com força de lei; c) têm como pressupostos constitucionais a urgência e/ou interesse público relevante; d) devem ser apreciados pelo Congresso Nacional; e) as relações jurídicas oriundas devem ser reguladas por lei, em sentido estrito.

Já nas diferenças, podemos apontar: a) o caráter de provisoriedade das medidas; b) os prazos de aprovação e de exame são diferentes; c) a possibilidade de emenda do legislador, vedada no decreto-lei; d) a delimitação expressa do campo de atuação do decreto-lei (incisos I, II e III); e) a aprovação tácita do Congresso, em não havendo manifestação do mesmo acerca da matéria, no decreto-lei; f) a exclusividade de expedição do decreto-lei somente pelo Presidente da República (art. 188, das Disposições Gerais e Transitórias, e art. 200, da Emenda nº 01, de 1969), sendo que a atual Constituição não vedou a edição de medida provisória por parte dos outros chefes do poder executivo (Estados e Municípios); h) nos decretos-lei os pressupostos são alternativos, urgentes "ou" relevantes, enquanto que nas medidas provisórias os pressupostos não são alternativos, urgente "e" relevante, ou seja, a partícula é copulativa.

Entretanto, podemos afirmar que a principal diferença entre esses dois institutos não reside nos textos constitucionais, mas sobretudo no ambiente político-constitucional. A realidade política anterior à 1988 era bastante diferente. Havia uma imensa crise no constitucionalismo brasileiro.

Com o advento da nova Constituição e uma maior participação popular em sua elaboração, aos poucos ela vai atingindo o lugar que lhe cabe no ordenamento jurídico brasileiro: o de superioridade, não apenas textual, mas supremacia fática. E, essa supremacia, só é possível, se os atores políticos brasileiros interpretarem corretamente os seus papéis, assim como se houver uma organização da cidadania em busca da concretização constitucional.

III. NATUREZA DA MEDIDA PROVISÓRIA

Quanto à natureza da medida provisória, como são atos do Poder Executivo, de forte conteúdo político, quer-se dar uma natureza política. Ocorre que a medida provisória tem nascedouro constitucional, portanto, tem natureza jurídico-constitucional.

Essa politicidade tem como apanágio a discricionariedade do Presidente da República, que, achando oportuno e conveniente, edita a medida provisória em face de circunstâncias relevantes e urgentes, que seriam insatisfeitas com os instrumentos jurídicos existentes no ordenamento.

Os atos do Poder Executivo, especificamente do Chefe, podem ser distinguidos, basicamente, em dois tipos: atos administrativos e atos de governo. Aclare-se que são atos tipicamente de suas funções. Tanto o Legislativo, quanto o Judiciário, emitem atos administrativos, no entanto não são suas funções típicas.

Não se deve, todavia, confundir os atos políticos e os atos de governo. Apesar da distinção não ser de todo clara e estanque. Porém, no sistema político brasileiro, convencionou-se chamar ato de governo os que são emitidos pelo Poder Executivo, com o objetivo de conduzir a política de execução das normas superiores do Estado, diretamente emanadas da Constituição. Dentre eles, têm-se o veto, a sanção, a nomeação dos ocupantes de cargos de confiança, a iniciativa do processo legislativo, o decretos de intervenção, de estado de sítio ou de defesa, e a edição de medida provisória.

Considerando que os Poderes do Estado são poderes políticos, é inconveniente denominar de ato político o que deveríamos chamar de ato de governo. Uma vez que os atos do legislativo são eminentemente políticos, e não se confundem com os atos de governo emanados do Executivo. Porém, assevera-se que os atos de governo têm uma forte densidade política. Portanto, ato político é gênero, do qual são espécies os atos legislativos e os de governo.

Os atos de governo têm os mesmos elementos e pressupostos dos atos administrativos. Ou seja, o conteúdo e a forma (elementos); e o sujeito, o motivo, a finalidade, a motivação e a causa (pressupostos). Assim sendo, a perfeição, a validade e eficácia do ato de governo está adstrita ao preenchimento desses pressupostos e a existência daqueles elementos.

O jaez político da atividade legislativa advém justamente de todo processo que a antecede. É política na medida em que exige um modo de conduta dialógico. Isso inocorre na edição de medidas provisórias. Ela só vai a debate político posteriormente, no Congresso Nacional.

Quando da sua edição, a medida provisória é um ato do Executivo, próprio, com características especiais e só deve ser editada em circunstâncias excepcionais. Além de que é política no sentido da lição de HELY LOPES MEIRELLES:

"É forma de atuação do homem público quando visa a conduzir a Administração a realizar o bem comum"
(In: Direito Administrativo Brasileiro, 20ª edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo e outros. Malheiros, São Paulo, 1995, p. 35)

A caracterização da medida provisória quanto ao órgão emanador é clara. Tem como editor o chefe do Poder Executivo. Sua força vinculante é a mesma da lei. Sendo precária, no sentido que pode haver ou não sua conversão para se tornar lei. Pressupondo circunstâncias especiais de relevância e urgência.

Arriscamos, então, dizer que a medida provisória é um ato emanado do Presidente da República, em circunstâncias excepcionais de relevância e urgência, com força provisória de lei, que necessita da aprovação do Congresso Nacional para que tenha força definitiva de lei, posto que é convertida em lei mesma, caso contrário, perde sua eficácia desde o momento de sua edição.

A principal conseqüência dessa natureza jurídico-constitucional é a possibilidade de limites e de controle. Controle exercido pelo Congresso Nacional, quando aprova ou rejeita a medida provisória. É bem verdade que o Congresso faz o que se denomina de controle de constitucionalidade político, principalmente em torno da eficácia, da conveniência e da oportunidade da medida. Assim como pode fazer uma modificação no seu conteúdo.

No entanto, a última palavra acerca da constitucionalidade de atos normativos, sejam emanados do Legislativo, sejam do Executivo, compete ao Judiciário, especificamente ao Supremo Tribunal Federal. Nenhum ato que adentrou no mundo jurídico e esteve apto a produzir efeitos jurídicos escapa da apreciação judiciária (art. 5º, inciso XXXV), caso haja alguma pessoa que se sinta lesado ou ameaçado pelos efeitos de tal ato, pode questioná-lo no judiciário.

Dessa sorte, as medidas provisória são passíveis do controle jurisdicional, como o são todos os atos estatais. No específico das medidas provisórias, controla-se inicialmente a sua constitucionalidade, no tocante à competência da autoridade emissora - o chefe do Poder Executivo -, se tomaram as providências necessárias para submetê-las à apreciação do Congresso Nacional e, principalmente, se atenderam aos pressupostos constitucionais de urgência e relevância, que inquinam de vício de inconstitucionalidade se inatendidos.

Então, compete ao Judiciário o controle formal de edição de medida provisória, concernente aos procedimentos que devem ser adotados e o controle material de constitucionalidade, quanto ao conteúdo mesmo da medida, se atenta, ou não, contra o sentido das normas constitucionais, e quanto aos pressupostos de relevância e urgência, se os fatos ensejadores da edição estão contidos naqueles pressupostos. Portanto, o controle dos pressupostos não é tarefa apenas do Congresso Nacional, não é somente político, mas é também tarefa do Judiciário, uma vez que tem um cariz jurídico-constitucional, infringindo expresso dispositivo constitucional, se inexistentes. É condição necessária de validade do ato.

IV. A FUNDAMENTAÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA

Fundamentar ou motivar o ato, na lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:

"É a exposição dos motivos, a fundamentação na qual são enunciados (a) a regra de direito habilitante, (b) os fatos em que o agente se estribou para decidir, e, muitas vezes, obrigatoriamente,(c) a enunciação da relação de pertinência lógica entre os fatos ocorridos e o ato praticado. Não basta, pois, em uma imensa variedade de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agente tomou como base para editar o ato".


(In: Curso de Direito Administrativo, 4ª edição, revista, ampliada e atualizada. Malheiros, São Paulo, 1993, p. 181)

Afirmamos que somente os atos emanados do Poder Legislativo, em sua atividade típica, dispensam a fundamentação, em razão da própria sistemática do processo e procedimento legislativos. Tanto o Judiciário (art. 93, IX e X) quanto o Executivo devem fundamentar ou motivar os seus atos. Isso é corolário dos princípios da publicidade e da moralidade, que norteiam a atividade estatal.

Exceções há nos atos administrativos estritamente vinculados à determinação legal e aos atos de governo altamente subjetivos, como a sanção ou como a exoneração em cargos de estrita confiança. Em outros casos, tipo o veto, deve o Presidente da República expor os motivos que ensejaram o mesmo (art. 66, § 1º), a fim de que seja apreciado pelo Congresso Nacional.

Ao fundamentar os atos emanados do Poder Executivo, a publicização é além do mero conhecimento público do ato, é também das razões que ensejaram o mesmo, da adequação da medida à realidade dos fatos. Publicizando os motivos, estar-se-á controlando a própria moralidade de tais atos. Em sendo o Executivo o condutor da administração pública, e a medida provisória um ato executivo de administração superior dos interesses do Estado e da sociedade, torna-se indispensável a sua fundamentação.

Ora, se atos emanados do Poder Executivo que não têm o mesmo grau de importância (os estritamente administrativos) devem ser fundamentados, impõe-se o dever inarredável da fundamentação das medidas provisórias, principalmente em relação dos pressupostos constitucionais de urgência e relevância. Para que a medida provisória tenha validade, mister se faz a existência desses pressupostos, se não, incorre-se no vício de inconstitucionalidade.

Eis, portanto, o "cerne da questão": em havendo as circunstâncias excepcionais de urgência e relevância, e não existindo no ordenamento jurídico instrumentos legais capazes de solucionar e remediar os efeitos dos acontecimentos excepcionais, devendo o Estado atuar prontamente, cabe ao Chefe do Poder Executivo editar medida provisória com esse desiderato. Para tanto, como garantia de legitimidade constitucional, deve-se fundamentá-la, demonstrando-se a relevância e urgência. Não basta dizer que o Presidente considera relevante e urgente, mas dizer o porquê de sê-lo. Expondo a relação de causalidade entre o ato expedido e a finalidade perquirida.

Com a fundamentação, torna-se mais tranqüilo o exame dos pressupostos constitucionais. Não obstante a fluidez dos conceitos de relevância e de urgência, deixando ao executor da medida a liberdade de escolher o momento conveniente e oportuno para a sua edição. Mas essa discricionariedade é limitada, justamente pelos pressupostos constitucionais, devendo os mesmos serem examinados pelo Congresso Nacional, e, em havendo lesão ou ameaça a direito, pelo Judiciário.

A idéia de urgência e relevância à luz do direito brasileiro tem um significado próprio. Na lição de CÁRMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA:

"Urgência jurídica é, pois, a situação que ultrapassa a definição normativa regular de desempenho ordinário das funções do Poder Público pela premência de que se reveste e pela imperiosidade de atendimento da hipótese abordada, a demandar, assim, uma conduta especial em relação àquela que se nutre da normalidade aprazada institucionalmente".


(IN: Conceito de Urgência no Direito Público Brasileiro. Revista Trimestral de Direito Público, nº 01, Malheiros, 1993, p. 234)

A urgência requer uma pronta atuação, a fim de dirimir as conseqüências dos fatos.

Por relevante, tomemos a lição de ROSENICE DESLANDES e ALEXANDRE BARROS CASTRO:

"Seja de fato ou de direito, é a que se apresenta em toda exuberância, em toda evidência, para ser acatada ou apreciada como justificativa do pedido, da pretensão, ou da proteção do direito".


(In: Tributos x Medidas Provisórias no Direito Brasileiro, Carthago e Forte, São Paulo, 1992, p. 32)

A dicção do texto não permite interpretação diferençada: a circunstância deve ser relevante e urgente, ambas devem ocorrer juntamente, o termo "e" é copulativo. Portanto, é inicialmente válido o ato se atendido tais pressupostos constitucionais. O exame desses pressupostos verifica-se mais facilmente através da fundamentação do ato editor de medida provisória, quer pelo Congresso Nacional (controle político), quer pelo Judiciário (controle judicial).

Vacila-se, ainda, na possibilidade do judiciário em examinar os pressupostos constitucionais. Denominam-nos de políticos, alheios ao crivo judicial. Crêem que seria uma tarefa política, competência vedada ao juiz. É uma idéia que destoa da realidade constitucional brasileira, que coloca sob o crivo do Judiciário a apreciação de qualquer ato estatal que esteja a apto a produzir efeitos jurídicos, lesando ou ameaçando direito.

Na edição de medida provisória, se existirem as circunstâncias excepcionais, deve o emissor demonstrá-las através da fundamentação, posto que atende ao mandamento constitucional que requer a ocorrência delas. Além de que, é uma garantia do Estado Democrático de Direito, uma vez que exigindo-se a fundamentação, o Executivo estaria inibido de editar tantas medidas provisórias em demasia, como vem acontecendo. Seria mais complicado "arranjar" tantos fatos relevantes e urgentes que necessitassem da edição de medidas provisórias, como tem ocorrido desde a promulgação da atual Constituição.

Esse descontrole na quantidade de medidas provisórias é um atentado contra o Estado de Direito e contra a Ordem Democrática, pois dota o Executivo de um instrumento jurídico bastante forte, tornando-lhe um verdadeiro "ditador constitucional", que comete suas violências contra a ordem jurídica sob o manto da constitucionalidade, que sabemos ser camuflada.

Apesar disso, dizemos que o constituinte não vedou a edição de medidas provisórias em quaisquer matérias, seja tributária, penal ou privativa de lei complementar, nem mesmo aquelas que dizem respeito às leis delegadas. As vedações são a do art. 62 e seu parágrafo único, e as impostas pelas E.C. nº 07 e nº 08, de 15/08/95. Essas, cremos, serem as vedações constitucionais expressas. Evidentemente, que também àquelas que infrinjam materialmente o Texto Constitucional.

Inobstante os mais autorizados doutrinadores pátrios serem contra a edição de medida provisória em algumas matérias, tipo a tributária, pensamos sê-lo possível. Em nossa opinião, os argumentos usados não são suficientes para extrair tal interpretação do Texto Constitucional.

Os primeiros documentos de acordos políticos, limitando o poder estatal, relacionavam-se, principalmente, com questões tributárias. A instituição de um tributo, só a título exemplificativo, requer uma análise demorada e minuciosa, na qual envolvem-se vários setores da sociedade, tendo como foro legítimo de debates o Poder Legislativo. Lá, estão representados os mais variados interesses de uma sociedade, sobretudo a hodierna, tão complexa.

Em sendo assim, torna-se bastante delicada a existência de situações emergentes que ensejem a criação de tributos, pelos motivos acima expostos. Daí porque a impossibilidade de medida provisória acerca dessa matéria não é em razão dela em si, mas, diante do fato de que é implausível justificar sua edição pela existência de circunstâncias excepcionais, relevantes e urgentes. Ou seja, inviável são as medidas provisórias em matérias tributária porque injustificáveis são os fatos ensejadores de sua edição.

Entretanto, caso haja circunstâncias excepcionais que requeiram a imediata atuação dos poderes públicos, e que devem atuar em matéria tributária, inexistindo instrumentos jurídicos capazes de atender às exigências para a solução do caso, pode ser editada medida provisória. Como, por exemplo, a instituição de imposto de guerra (art. 154, II). Entretanto, para a validade do ato, deve o mesmo ser fundamentado, aclarando-se os motivos.

Portanto, se houver, conforme requer o art. 62, circunstâncias excepcionais, relevantes e urgentes, inexistindo instrumentos jurídicos capazes de solucionarem a questão, pode o Presidente da República, fundamentando, editar medida provisória. Assim, demonstra-se a ocorrência dos pressupostos constitucionais e se atendem os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, evitando-se os abusos do poder conferido constitucionalmente, através de um controle imediato e eficaz.

Inexistindo a fundamentação, inquina-se a medida provisória do vício de inconstitucionalidade, por não conter requisito essencial capaz de possibilitar o seu devido exame. Há uma presunção de inexistência dos pressupostos constitucionais se não for a medida provisória devidamente fundamentada. Posto que, a interpretação das exceções constitucionais deve ser restritiva. Diferentemente daquela no sentido de oportunizar o maior número possível de requisitos que ensejem os limites e controles dos atos estatais emanados do Poder Executivo.

V. A POSTURA DO PODER JUDICIÁRIO

Um dos pilares fundamentais para o fortalecimento do "sentimento de constitucionalidade" é o Poder Judiciário. Relevante, também, é a posição do Ministério Público. Aquele como "Guardião da Constituição" (art. 102), este como defensor do Regime Democrático e da Ordem Jurídica (art. 127). A postura dessas instituições pode fazer da nova Constituição um fator de modificabilidade da realidade social que vivemos.

Não se deve incorrer no "simbolismo" das constituições pretéritas, sobretudo a que antecedeu a atual, que procurava constitucionalizar, ou seja, camuflar de legitimidade uma situação jurídico-política que se impôs pela força das armas, e não pelo convencimento dialógico.

Com a "oxigenação" do "sentimento de constitucionalidade", havida depois de 1988, mais do que nunca, deve-se buscar transformar o texto constitucional, a "folha de papel", em instrumento político a serviço da vontade popular, dentro dos princípios de juridicidade. O discurso constitucional retórico deve ceder espaço à efetiva concretização do texto, sob pena de esvaziamento do conteúdo de constitucionalidade, em vista da decepção provocada por sua inefetividade.

A desculpa de serem os pressupostos constitucionais questões políticas e discricionárias, sujeitas apenas ao alvedrio do Presidente da República, e por isso insindicáveis ao Poder Judiciário, é própria de quem com receio de enfrentar os problemas prefere não conhecer-lhes, numa postura covarde.

O não reconhecimento do dever de examinar os pressupostos é uma omissão leviana do Judiciário, demonstrando a não receptividade da atual Constituição. Faltando ao Judiciário assumir os encargos que por ela lhe foram deferidos, principalmente a sua guarda. Ao Judiciário outorga-se o poder de decidir o que é ou não direito. Inafastável é o dever de julgar, sejam quais forem os atos públicos.

Outrossim, a apreciação judiciária é independente do exame feito pelo Congresso Nacional. De sorte que, não há o que se falar em convalidação da medida provisória, feita pelo Congresso. Se demonstrada a carência dos pressupostos constitucionais ou se materialmente a medida provisória fere a Constituição, deve a mesma ser expurgada do mundo jurídico.

Se a Constituição impõe a existência de determinados pressupostos para a validez de um ato estatal, ao Judiciário é vedado escusar-se de apreciá-los, a fim de que possa declarar válido ou não o ato emanado, a partir do exame daqueles pressupostos.


CONCLUSÃO

A fundamentação da medida provisória legitima constitucionalmente o ato, ensejando o controle judicial dos pressupostos de relevância e urgência, assim como garante o Estado Democrático de Direito, como sendo aquele no qual tem-se como requisito a juridicidade, a publicidade, a moralidade e o interesse público dos atos estatais.

O Poder Judiciário é o responsável pela integridade da Constituição, a sua imparcialidade e neutralidade não podem significar indiferença, sob pena de incorrermos no grave perigo de uma ditadura camuflada de constitucionalidade, que atentaria contra o Estado Democrático de Direito, violaria os direitos fundamentais e quebraria o princípio da separação dos Poderes.


Autor

  • Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

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Tese aprovada no Congresso Internacional de Direito Constitucional, Tributário e Administrativo, em Recife (PE), realizado nos dias 22 a 24 de agosto de 1996

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. A fundamentação da medida provisória: requisito de legitimidade constitucional e garantia do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 8, 3 mar. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/174. Acesso em: 28 mar. 2024.