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Júri: pequenas observações históricas sobre um instituto ainda não compreendido

Júri: pequenas observações históricas sobre um instituto ainda não compreendido

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Apesar de vivermos um período de estabilidade democrática há mais de vinte anos, inexplicavelmente o júri permaneceu relegado a um exercício menor do nosso poder político.

Introdução

"Todo poder emana do povo, que o exerce por meios de representantes eleitos ou diretamente"

Desde que nos reconhecemos como grupo social, necessitamos de mecanismos eficientes que possam apresentar uma solução válida para por fim a uma controvérsia, cuja repercussão tem a possibilidade de atingir ao menos parte da nossa coletividade. É latente a possibilidade de conflitos na sociedade, que se revelam por pretensões resistidas, cuja polêmica pode colocar em risco alguns valores estabelecidos e que são responsáveis, à sua medida, pelo equilíbrio da própria organização social.

É da natureza humana emprestar valores a determinados fatos, que são traduzidos por normas das quais nos baseamos para criar novos valores, e assim sucessivamente. O ser humano é, portanto, um contumaz produtor de normas, que se revelam em regras de condutas, pessoais ou coletivas, das quais podemos comparar os nossos valores e por eles nos determinarmos.

Assim, diante de um fato, conferimos um valor e como conseqüência produzimos uma norma. Por outras palavras, o fato constitui um objeto observado, diante de um "conjunto axiológico de valores de uma determinada sociedade no tempo e no espaço" [01], expressado por regras, que se constitui na "projeção ideal do mundo no dever-ser" [02]. Desse modo tridimensional nos comportamos, na revelação da nossa própria natureza.

Trata-se, portanto, de um comportamento profuso e intuitivo. Fazemo-no de forma diuturna, obedecendo a uma determinação atávica. Todos nós emprestamos valores a determinados fatos e elaboramos regras. Somos, por assim dizer, seres em eterno conflito com uma infinita possibilidade de assimilação e produção de normas. Isso nos torna vocacionados a sempre nos posicionarmos entre os choques dos valores observados, induzidos pelo dualismo do certo e do errado.

Portanto, desde que obtivemos a capacidade de comunicação, expressamos a nossa opinião (valor) sobre determinados fatos. Somos sempre auxiliados por conflitos originados pela contradição entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos, ou seja, a dialética. Assim, diante de uma tese e de uma "anti-tese" (antítese), podemos melhor decidir o que se demonstra como certo ou como errado. São essas as condições naturais intrínseca da formação do ser humano que permite há muito tempo o exercício do que denominamos ato de julgar.

Com efeito, julgar não se traduz em nenhuma novidade comportamental. Ao contrário. Pensamos, logo julgamos, emitimos um juízo de valor, conjecturamos, avaliamos, sentenciamos, condenamos. São condutas presentes diariamente em nosso cotidiano, que expressam toda nossa relação cultural e são independentes da capacidade intelectiva de cada um. Mesmo que seja de uma forma mais ou menos elaborada, o julgamento personifica a nossa formação, à maneira como compreendemos tudo em que está em volta, o mundo.

Essa expressão cultural, por sua vez, se manifesta em diversas situações. A medida em nos organizávamos socialmente, destacamos à nossa liderança, àquele que se apresentava mais capaz, por sua história, a possibilidade de demonstrar diante da contradição enfrentada o melhor caminho a se tomar. Com a crescente complexidade dessas relações sociais passamos a identificar líderes, que, por fim, para se tornarem cada vez mais em melhores líderes, ouviam a expressão de valores da comunidade e, através da sua média, podiam se situar melhor, de uma forma mais segura sobre os valores coletivos diante de um caso concreto.

O julgamento é natural do ser humano, assim como os conflitos de interesse qualificados por pretensões resistidas. Tudo ladeado pela nossa enorme facilidade geradoras de normas comportamentais. O julgamento, portanto, nasce no âmago do ser humano e se revela socialmente útil como uma expressão cultural, coletiva.

É da essência da nossa formação o julgamento popular, onde se procura a média dos valores da comunidade, em um explícito exercício democrático e de procura pela solução mais aprovada. Assim era na origem, por isso a grande identificação de se discutir (e julgar) as questões de repercussão cotidiana em um espaço público. Essa prática é puro atavismo. Todas as nossas decisões foram tomadas em conjuntos, em um lugar comum (praça). Desse modo iniciamo-nos na prática de dizer o que era certo ou errado para a coletividade. Ou seja, na pratica de dizer o direito.

Seguindo, ainda, no aprofundamento da complexidade das relações sociais, havia conflitos de interesses que foram "solucionados" pela força, com a conseqüente imposição de valores dentro da mesma comunidade ou entre comunidades distintas, promovendo a submissão do julgamento aos critérios dos vitoriosos.

Estamos na gênese da formação da sociedade. Essa contradição é a marca histórica da humanidade. À medida que obtemos um maior equilíbrio social, explicitamos a nossa prática democrática, especialmente exibida pelo julgamento popular e pela eleição de representantes do povo. Prestigia-se a vontade coletiva, em detrimento do individual.

Por outra medida, se historicamente vivemos um período de força, de imposição de valores, afastamos o exercício da democracia e aceitamos a intervenção no ato coletivo de julgar ou mesmo no de ser representado. Calam-se as vozes e o exercício partilhado do poder. Perde-se a expressão coletiva de idéias, fonte reveladora dos nossos valores comuns, que sucumbem diante do dominador. Sobrevivem apenas os isolados e individuais pronunciamentos, que não influenciam o poder normativo na coletividade tomada, afastando-nos, assim, da nossa essência.

O Tribunal Popular é o nosso resgate histórico, a nossa manifestação enquanto participantes de toda a complexa engrenagem social, consubstanciando-se na democracia direta para alcançar a expressão do valor médio da coletividade na solução de problemas (conflitos) que afetam a todos e se evidencia em uma das mais importantes incumbências do Estado: a de dizer o que é certo e o que é errado na realização da pacificação social.

Discutir pejorativamente a sua importância revela um ato de autoridade, embasado em razões nem sempre sustentáveis ou mesmo no profundo desconhecimento do tema, que por muitas décadas se viu cercado dos piores preconceitos, plantados justamente por aqueles que se preocupavam unicamente como a manutenção de seus privilégios na forma que se encontravam.

Por certo que o Tribunal Popular na história da humanidade foi usado para se impor valores, especialmente na manipulação da escolha de seus integrantes. Todavia, não é menos certo que os grupos de força escolheram na sua origem juízes monocráticos, substituindo a manifestação popular diante de um conflito, com absoluta dependência do poder político dominante. Convencer um é muito mais simples que a coletividade organizada expressando legitimamente os seus valores.

Por isso nos deparamos com um grande desequilíbrio em nossa história, contando inúmeras cicatrizes. A compreensão do instituto do júri e a sua projeção como meio eficaz de solução de conflito produz a certeza de que diante de um quadro de equilíbrio político-social, jamais poderíamos ter optado pela justiça monocrática, mesmo com pretexto de segurança, como o duplo grau de jurisdição.

Estamos mais uma vez diante da contradição do certo e do errado. Impossível negar a nossa natureza democrática, por mais embaçada que seja a história. Como um pião que sempre gira com o objetivo de atingir (retornar) à inércia, o curso da história sempre nos levou (retornou) a participação popular. As considerações a seguir procuram fazer um breve apanhado desse instituto com o objetivo de avançarmos na compreensão e na discussão crítica, buscando pontuar a diferença do que é para com o que deveria ser, em razão das inúmeras intervenções de força tão próprias da nossa história.


A História do Tribunal Popular

Costuma-se iniciar esse tema pela conhecida imprecisão doutrinária da origem do instituto. No entanto, não compreendemos assim. Acreditamos que o julgamento popular nasce junto com a própria formação da sociedade, desde que os seres humanos foram desenvolvendo a sua capacidade de comunicação e vivendo em coletividade, onde surgiam conflitos que a todos implicavam em uma necessária intervenção para restaurar o estado anterior e solucionar a controvérsia. Era uma necessidade comum, portanto foi partilhada e culturalmente divulgada entre diversos povos.

Em uma obra publicada em 1904, Firmino Whitacker [03] lembrava que "o jury em sua simplicidade primitiva, remonta ás primeiras épocas da humanidade. Qualquer que fôsse a duvida levantada nas tribus errantes, sem leis positivas e auctoridades permanentes, a decisão era proferida pelos pares dos contendores". Hoje, essa formação sociológica é bastante expressiva em nosso universo cultural, embora tudo indique que estamos sempre negando o óbvio.

Desse modo, quando compartilhamos o mesmo espaço, necessitamos organizar a nossa forma de convivência. Em um condomínio de apartamentos isso se faz evidente. Estabelecemos representantes para administrar, legislar e julgar os conflitos porventura existentes. Fazemo-no pela única forma conhecida que permite a convivência pacífica: o exercício democrático, com a participação de todos.

Assim, elegemos o administrador (síndico) e criamos comissões para o acompanhamento da regularidade fiscal. Entretanto, nos reunimos no espaço público para dizer quais são as regras de convivência (estatuto) permitidas e para julgarmos a existência ou não de transgressões a essa regra (conduta ilícita), para uma eventual aplicação de penalidade (sanção), sempre de forma coletiva, não obstante a existência de um mandatário. O condomínio se apresenta como exercício primeiro da nossa cidadania e aonde, de fato, ela se expressa de forma mais direta, próxima e democrática. Trata-se de um espaço respeitado e de uma instituição consolidada.

Essa é a nossa natureza e assim culturalmente nos expomos. Quantos conselhos populares estão disseminados em nossa sociedade, em pleno funcionamento nas instituições profissionais, públicas ou mesmo organizados pela sociedade civil? Todos julgam, expressam o valor que cada um dá ao fato observado para se criar uma norma. Trata-se de uma atividade cotidiana, presente sem ao menos grande parte da sociedade se dar conta de que estamos repetindo condutas dos nossos antepassados, de origem na remota formação da sociedade humana.

A história do tribunal popular, portanto, é a própria história da humanidade. Todas as sociedades primitivas assim se expressavam. Contudo, em uma perspectiva ocidental, é inegável a contribuição cultural fornecida pela Grécia e por Roma para a formação dos Estados Modernos, na forma que hoje conhecemos.

Desse modo, em um determinado período, a história registrou que na Grécia foi constituído um tribunal popular, um conselho para julgar, composto de 6000 membros de todas as 10 tribos atenienses, divididos em 10 câmaras, com cerca de 500 julgadores e 100 suplentes. Ficou conhecido após uma reforma instituída por Solón (594 a.C). Dentre os 6000 cidadãos, chamados no Tribunal de Heliaia de heliastas, eram escolhidos por votação os julgadores, sempre em número ímpar, quando passavam a ser chamados de dikastas, atuavam nas sessões de justiça, as chamadas dikasterias.

Um dos mais famosos julgamentos do Tribunal de Heliaia foi o do filósofo Sócrates (469-399 a.C), retratado em obras de Platão, que foi condenado por 280 a 220 votos e que embora tivesse a possibilidade de se exilar ou mesmo fugir, decidiu se submeter a justiça da polis (Atenas). Ou seja, Sócrates reconheceu a legitimidade do julgamento popular que lhe impôs uma pena de morte.

Em Roma, no período do sistema acusatório, lembra Rogério Lauria Tucci [04], "com o surgimento das quaestiones perpetuae, é que se visualiza mais nitidamente os traços da instituição do júri como hoje a conhecemos. Eram os julgamentos dos judices jurati. A quaestio foi criada pela Lex Calpurnia de 149 a.C. E era como uma missão de inquérito, ou um conselho de julgamento, provisório, com a finalidade de investigar e julgar funcionários do Estado que tivessem prejudicado um provinciano. Há relatos ainda de várias quaestio que se seguiram, criando um costume, que acabou lhes tornando perpétuas, dando início à jurisdição penal em Roma".

Rogério Lauria Tucci [05] "cita várias semelhanças entre o procedimento das quaestiones em relação ao Tribunal do Júri brasileiro: a) idêntica forma de recrutamento (cidadãos de notória idoneidade, cujos nomes contam de lista anualmente confeccionada pelo juiz-presidente); b) mesma denominação dos componentes do órgão judicante popular – jurados; c) formação deste mediante sorteio; d) recusa de certo números de jurados sem necessidade de qualquer motivação; e) juramento dos jurados; f) método de votação (embora realizada secretamente), com respostas simples e objetivas – sim ou não".

Aqui há que se fazer uma pequena e oportuna distinção doutrinária. Há uma diferença de concepção entre o tribunal popular e o júri. Aquele tem origem na própria formação da sociedade, em todos os aspectos de expressão cultural e da organização social. Este tem uma origem mais definida e precisa, sendo neste particular identificada com a Inglaterra, o que gerou todas as conseqüências históricas que vamos analisar em seguida.

Em uma excelente tese de doutorado, hoje já publicada, Paulo Rangel [06], reproduzindo as lições de João Mendes Almeida Júnior, ensina que "o tribunal popular, portanto, não nasceu na Inglaterra, mas o júri propriamente dito, que hoje se conhece e tem no Brasil, recebeu do sistema inglês o grande júri, isto é, o primeiro conselho de jurados ou o júri de acusação, e do sistema francês, o ministério público e a instrução secreta e escrita". Portanto, ao nos referirmos a júri, estamos tratando desse instituto criado e desenvolvido na Inglaterra e que tanta influência teve em diversas partes do mundo, inclusive em nosso país.

A referência mais segura da origem da instituição júri ocorreu em 1166, no governo do Rei Henrique II (1154-1189) que instituiu um writ "chamado de novel disseisin (novo esbulho possessório) pelo que encarregava o sheriff de reunir doze homens da vizinhança para dizerem se o detentor de uma terra desapossou, efetivamente, o queixoso, eliminando, assim, um possível duelo judiciário praticado até aí" [07]. Ainda segundo Paulo Rangel [08], "nesse conjunto de medidas, a acusação pública, que até então era feita por um funcionário, espécie de Ministério Público, passou a ser feita pela comunidade local quando se tratava de crimes graves (homicídios, roubos, etc.), surgindo, assim, o júri que, como era formado por um número grande de pessoas (23 jurados no condado) foi chamado de Grand Jury (Grande Júri). Por isso era chamado de Júri de acusação".

Em sua origem, portanto, havia dois tribunais do júri, com missões distintas: um com a responsabilidade pela confirmação da acusação (Grand jury), com 23 membros, e o outro pelo julgamento propriamente dito, com a imposição da sentença. De acordo com John Gilissem [09], "os jurados (pessoas do povo daquela comunidade onde ocorreu o crime) deviam decidir segundo o que sabiam e com base no que se dizia, independentemente de provas, já que estas eram de responsabilidade de outros doze homens de bem, recrutados entre vizinhos, formando assim o pequeno júri (Petty jury) que decidia se o réu era culpado (guilty) ou inocente (innocent)".

No entanto, em 1215, houve um movimento de reação da nobreza e do clero inglês aos constantes fracassos político do Rei João I, quinto filho de Henrique II, que entrou para a história conhecido como João Sem Terra, por não ter herdado nenhum quinhão de seu pai, pois seria na ordem de sucessão muito difícil ascender ao trono. Pois, contrariando a previsão, assumiu o poder, mas sempre teve inúmeros problemas com a nobreza instituída. Em uma quebra no modelo monárquico então vigente, a revolta levou os barões ingleses a impor limites ao poder real (afastamento do poder absoluto), instituindo uma Carta Magna, que veio a ser considerada a origem do constitucionalismo.

A Carta Magna que continha 63 cláusulas, cuja denominação completa era "Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês" previu na clausula 48 que "nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra". Trata-se, portanto, da instituição do princípio do devido processo legal e da instituição do julgamento por um tribunal popular composto pelos pares do réu.

Certamente, como recurso histórico, a cláusula 48 foi um subterfúgio para que os nobres não fossem mais julgados pelo Rei, mas não invalidou a propagação do instituto, uma vez que cópia da Carta foi encaminhada a todos os sheriffs e bispos, o que facilitou, com os anos, a sua incorporação ao direito inglês. No ano seguinte, 1216, João I, que havia nascido exatamente no ano da instituição do writ novel disseisin em 1166, faleceu, tendo assumido o seu filho Henrique III, que apresentou uma versão menor da Carta. Quando da sua morte, em 1272, a cláusula que instituía o julgamento pelos pares já havia se propagado.

Paralelamente, no mesmo ano de 1215 foi realizado pela Igreja Católica sob o comando do Papa Inocêncio III, o IV Concilio de Latrão, que aboliu as chamadas ordálias, ou seja,"um tipo de prova judiciária usado para determinar a culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza e cujo resultado é interpretado como um juízo divino, também é conhecido como juízo de Deus (judicium Dei, em latim). As práticas mais comuns do ordálio são as que envolvem submeter o acusado a uma prova dolorosa. Se a prova é concluída sem ferimentos ou se as feridas são rapidamente curadas, o acusado é considerado inocente. Na Europa medieval, este tipo de procedimento fundava-se na premissa de que Deus protegeria o inocente, por meio de um milagre que o livraria do mal causado pela prova". [10]

Assim, com o fim das ordálias e a afirmação de que o homem tinha que ser julgado por seus pares, não foi difícil a propagação da idéia do júri na Europa, até que o advento da Revolução Francesa multiplicou o alcance do instituto. Afirma James Tubenchlak [11] que "espargiu-se o júri pelas mãos da Revolução Francesa, por numerosos países, notadamente da Europa, simbolizando vigorosa forma de reação ao absolutismo monárquico, vale dizer, um mecanismo político por excelência, malgrado com supedâneos místicos e religiosos, ainda presente na fórmula do juramento do júri inglês, onde há expressa invocação a Deus". No mesmo sentido, Guilherme Souza Nucci [12] informa que "após a Revolução Francesa, de 1789, tendo por finalidade o combate às idéias e métodos esposados pelos magistrados do regime monárquico, estabeleceu-se o júri na França. O objetivo era substituir um Judiciário formado, predominantemente por magistrados vinculados à monarquia, por outro, constituído pelo povo, envolto pelos ideais republicanos".


A história da Instituição do Júri no Brasil

É indiscutível que o fenômeno da Revolução Francesa teve repercussão direta na história de nosso país. Por outro lado, sempre houve também uma grande afinidade diplomática e comercial entre Portugal e a Inglaterra. Há quem sustente, inclusive, razões históricas de aproximação, pois teriam sido os cruzados ingleses que contribuíram para a independência de Portugal da Espanha. Depois do denominado Bloqueio Continental, promovido pelos franceses, já sob o julgo de Napoleão, a família real portuguesa passou a ser a primeira corte européia a viver no novo mundo. Chegou ao Brasil em 1807 (Salvador) e, posteriormente, em 1808 (Rio de Janeiro), protegida pelos ingleses.

Não obstante a revolução cultural e social em nosso país com o advento da Corte do Príncipe Regente D. João, acompanhado de toda a nobreza e a burocracia de Portugal, inclusive da Rainha Maria I, que havia sido afastada por uma junta médica desde 1792, os princípios revolucionários franceses já ecoavam por aqui. Não era incomum se ouvir falar em liberdade, igualdade e fraternidade. Inúmeras Ordens foram instaladas no Brasil, divulgando à sua maneira o ideal revolucionário.

O Brasil passou a ter vida própria e logo depois, em 1815, foi alçado a condição de Reino Unido de Portugal e Algarves. Mesmo com a queda de Napoleão (1814), D. João foi coroado no Brasil o 27º Rei de Portugal, tendo sido o primeiro monarca a tomar posse no continente americano. Com a Revolução Liberal do Porto, de cunho constitucionalista, em 1820, o Rei D. João VI foi obrigado a voltar a Portugal, deixando em seu lugar o Príncipe Regente Pedro, que em dezembro de 1822 foi coroado imperador do Brasil, com o título de Pedro I.

Essa passagem histórica tem uma enorme repercussão no direito brasileiro. Os movimentos liberais ganhavam força na Europa e repercutiam, por obviedade, por aqui, que até então utilizava a legislação portuguesa (Ordenações Filipinas). Tal fato, (vigência da legislação portuguesa) foi de alguma forma reforçado mesmo depois da independência, quando o Decreto de 20 de outubro de 1823 determinou a manutenção da legislação de Portugal no Brasil, naquilo em que não conflitasse com a sua soberania e com o novo regime.

É sintomático o fato de que no retorno de D. João VI a Portugal, tenha prontamente jurado a primeira Constituição portuguesa, que foi aprovada em 22 de setembro de 1822. Quinze dias antes, porém fora proclamada a independência do Brasil e em maio de 1823 iniciaram-se os trabalhos da primeira Assembléia Nacional Constituinte, logo depois dissolvida (12 de novembro de 1823) por ter muitos deputados liberais-democratas, que trabalhavam por uma Constituição que respeitasse mais os direitos individuais e limitasse o poder do imperador. Apesar desse fato, a primeira Constituição brasileira que foi outorgada em 25 de março de 1824, trouxe significativos avanços.

O historiador Thomas Skidmore [13], sobre o tema, ensina que "a elite brasileira absorveu muito de liberalismo político da Inglaterra. A Assembléia Constituinte delineou uma constituição sob a direção de José Bonifácio de Andrada e Silva, um proeminente proprietário de terra e jurista. Ele copiava, em grande medida, o sistema parlamentar inglês, com o objetivo de criar um governo controlado pela elite por meio de uma elegibilidade altamente restrita. O imperador Pedro I não gostou dela. Ele dissolveu a assembléia e arbitrariamente promulgou a sua própria constituição".

Como exemplo dessa renovação ideológica que tomava o nosso país, James Tubenchlak [14] conta que, "coube ao Senado da Câmara do Rio de Janeiro, dirigindo-se, em 04.02.1822, ao Príncipe Regente D. Pedro, para sugerir-lhe a criação de um ‘juízo de Jurados’. A sugestão, atendida em 18 de junho, por legislação que criou os ‘Juízes de Fato’, tinha competência restrita aos delitos de imprensa. A nomeação desses juízes – vinte e quatro homens bons, honrados inteligentes e patriotas – competia ao Corregedor e aos Ouvidores do crime. Da sentença dos ‘Juízes de Fato’ cabia somente o recurso de apelação direta ao Príncipe".

Nascia, assim, nesse ambiente efervescido, a instituição do júri no Brasil, antes inclusive da declaração da nossa independência de Portugal e antes também da instituição do júri por nosso colonizador. Guilherme Souza Nucci [15] comenta que "há que se considerar que o Brasil, às vésperas da independência, começou a editar leis contrárias aos interesses da Coroa ou, ao menos, dissonante do ordenamento jurídico de Portugal. Por isso instalou-se o júri em nosso país antes mesmo que o fenômeno atingisse a pátria colonizadora. Assim, em 18 de junho de 1822, por decreto do Príncipe Regente, criou-se o Tribunal do Júri no Brasil, atendendo-se ao fenômeno de propagação da instituição corrente em toda a Europa. Pode-se dizer que, vivenciando os ares da época, o que ‘era bom para a França o era também para o resto do mundo".

Essa iniciativa, ainda em 1822, foi de vital importância para a consolidação do júri no Brasil. Mesmo outorgada, a Constituição de 1824 fez expressa referência ao instituto, além de estender-lhe a sua competência. O artigo 151 dispunha que "Poder Judicial independente, e será composto de Juizes, e Jurados, os quaes terão logar assim no Civel, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Códigos determinarem". Completando o dispositivo, determinava o artigo 152 que "os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juizes applicam a Lei". Assim, "a Constituição de 1824 colocava os jurados como integrantes do Poder Judiciário com competência (territorial) tanto no cível como no crime e lhes dava competência para decidirem sobre o fato e aos juízes para aplicarem a lei". [16]

Apesar de dissolvida uma Assembléia Constituinte, com exílio do seu líder, José Bonifácio de Andrada e Silva, e de ter sido outorgada a Constituição pelo Imperador, é fato que o Brasil vivia momento de profundas transformações políticas, ladeadas por ventos liberais. Com a morte do Rei D. João VI, que à época já detinha o título de Imperador Titular do Brasil, e uma reação das forças absolutistas em Portugal que tomaram o poder com o seu irmão Miguel, D. Pedro I retornou em 1831, deixando o seu filho Pedro de apenas cinco anos como Príncipe Regente. Começa aqui um período da história conhecido como Regência Trina, "onde várias reformas importantes trataram de suprimir ou diminuir atribuições de órgãos da monarquia e estabelecer uma nova estrutura legal para o país". [17]

No contexto da Regência, após a edição do Código Criminal do Império em 1830, é elaborado o Código de Processo Criminal do Império pelas mãos do Senador Alves Branco, que passou a vigorar em 29 de novembro de 1832. Segundo Paulo Rangel, "nasce aí a distância entre os jurados e os réus. Os réus nem sempre eram eleitores, mas pessoas das camadas mais baixas da sociedade, aquelas que depois passaríamos a chamar de excluídos". Com efeito, dispunha o artigo 23 que "são aptos para serem jurados todos os cidadãos que podem ser eleitores", mas para ser eleitor o cidadão teria que comprovar uma renda de 200 mil-reis anuais, o que não era pouco.

Todavia, ainda sob os auspícios do liberalismo francês e a sempre onipresente influência inglesa na história do Brasil, o primeiro Código de Processo, além de instituir formalmente o habeas corpus (Art. 340. Todo o cidadão que entender que elle ou outrem soffre uma prisão ou constrangimento illegal em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de — habeas corpus — em seu favor), adotou o modelo inglês de julgamento, com a instituição do grande júri e o júri de sentença. Paulo Rangel [18] pontua que "o júri do império era a cópia aproximada do júri inglês pela própria história que antes contamos, ou seja, havia o grande júri e o pequeno júri. O primeiro, com o debate entre os jurados, decidia se procedia a acusação contra o réu. Se os jurados respondessem afirmativamente, o réu seria submetido a julgamento perante o pequeno júri. Do contrário, o juiz julgava improcedente a denúncia ou a queixa".

Conclui Paulo Rangel [19] que "a estrutura do tribunal do júri no Império, levando-se em conta a sociedade da época, foi a mais democrática já tida em nosso ordenamento jurídico, até porque originária do berço da democracia e dos direitos e garantias individuais da Inglaterra".

Seguindo o curso da história, durante o período de Regência, foi necessário fazer em 1834 um Ato Adicional à Constituição com propostas políticas centralizadoras com relação às províncias, o que redundou em várias revoltas no Brasil com motivações locais, entre elas a Cabanagem (Pará), Sabinada (Bahia), Balaiada (Maranhão) e a Farroupilha (Rio Grande do Sul). Essas revoltas obrigaram a Regência a adotar mais medidas conservadoras, com a conseqüente reforma no júri pela Lei nº 261, de 03 de dezembro de 1841 e o Decreto regulamentador nº 120, de 31 de janeiro de 1842, que aboliu o júri de acusação, atribuindo a pronúncia à chefes de polícias, juízes municipais, delegados e subdelegados (art. 54).

O caso que por muitos anos foi considerado o maior erro judiciário da história do Brasil [20], o do julgamento popular e enforcamento do fazendeiro Manuel da Costa Coqueiro, que posteriormente veio inclusive a influenciar D. Pedro II na concessão de graça para impedir a pena de morte, ocorreu por essa época (o crime foi 1852 e os dois julgamentos populares em 1853), tendo sido todo o processo instruído por um subdelegado e um delegado, que tinham interesses políticos e pessoais na morte do fazendeiro.

Só para exemplificar a necessidade de se fazer um controle político das decisões do júri, até o advento da Lei 261, para se condenar a pena de morte era necessário a unanimidade dos 12 jurados. Com a nova Lei passou a ser 2/3, e nos demais crimes a maioria absoluta, ressalvando que em caso de empate seria beneficiado o réu (art. 66).

Com a guerra do Paraguai que se estendeu de 1864 a 1870 os militares voltaram a ter força política no Brasil, o que culminou com deposição do regime imperial e a proclamação da República em 1889, que de certa forma foi apoiada pela burguesia cafeeira, que veio a dominar os primeiros anos do novo regime. A Constituição Federal de 1891 representava o afastamento do Brasil da Inglaterra e a sua aproximação com os Estados unidos, potência emergente, essencialmente liberal e desenvolvimentista, mais ajustadas aos novos tempos "pós-império".

Nesse contexto a instituição do júri foi mais uma vez prestigiada e pela primeira vez passou a ser tratada dentro do título referente aos cidadãos brasileiros e na secção da declaração de direitos. Dispôs o artigo 72 que a "Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: §31 - é mantida a instituição do júri.

Observa Guilherme Souza Nucci [21] que "com a Proclamação da República, manteve-se o júri no Brasil, sendo criado ainda um júri federal, através do Decreto 848, de 1890. Sob a influência da Constituição americana, por ocasião da inclusão do júri na Constituição Republicana, transferiu-se a instituição para o contexto dos direitos e garantias individuais (art. 72, §31, da Seção II, do Título IV). Esse resultado foi obtido em face da intransigente defesa do Tribunal Popular feita por Rui Barbosa, seu admirador inconteste".

Com efeito, após a Proclamação da República e quatro meses antes da Constituição de 1891 (24 de fevereiro), o júri passou a ser organizado pelo Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, que ao regulamentar a Justiça Federal, criou o júri federal com 12 jurados sorteados dentre 36 cidadãos do corpo de jurados estadual da comarca. Apesar da influência nitidamente norte-americana da época, não foi repristinado o grande júri, que até hoje se encontra em vigência nos Estados Unidos.

Posteriormente, como informa Frederico Marques [22] "a Lei Federal nº 515, de 3 de novembro de 1898 excluiu da competência do Júri o julgamento dos crimes de moeda falsa, contrabando, peculato, falsificação de estampilhas, selos adesivos, vales postais e cupons de juros dos títulos de dívida pública da União, atribuindo-o ao juiz da secção. Finalmente, todas essas reformas foram consolidadas pelo Decreto Federal nº 3.084, de 5 de novembro de 1898, que constituiu, durante muitos anos, o Código de Processual Civil e Criminal da justiça federal. Enumeraram-se, então, todos os casos de competência do júri".

Com a chegada da década de 30, inúmeros acontecimentos políticos mundiais, dentre os quais a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, o que deixou grande parte da elite política (e cafeeira) endividada, precipitou um golpe de Estado no Brasil, com a instalação de um governo provisório com Getúlio Vargas.

Após nomear interventores em vários Estados, houve uma revolta em 1932 do Estado de São Paulo, que exigiu com o fim do conflito a instalação de uma nova assembléia constituinte, que por sua vez iniciou os trabalhos em novembro de 1933. Assim, em 16 de julho de 1934, o Brasil ganhava uma nova Constituição, em um cenário político interno em que se verificava a chegada ao poder da burguesia industrial, da classe média e novamente dos militares, em detrimento da falida oligarquia cafeeira e leiteira. Enquanto isso, no plano externo, as idéias totalitárias de Hitler e Mussolini, dentre outros na Europa, tomavam força. A nova Constituição brasileira foi inspirada na Constituição alemã de 1919, conhecida como Constituição de Weimar, que marcou um breve período de república na Alemanha, pós-primeira guerra mundial, até a tomada do poder pelos nazistas em 1933.

No entanto, apesar de todo abalo político do momento, a Constituição de 1934 preservou o júri, dispondo o artigo 72 que "é mantida a instituição do júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei". Cabe observar que a mudança retirou o júri dos direitos e garantias individuais, do qual foi alçado pela Constituição de 1891 e, assim, o recolocou no capítulo referente ao Poder Judiciário, tal como na nossa primeira Constituição, em 1824.

Seguindo a lógica dos acontecimentos no velho mundo, especialmente os regimes totalitários que instalaram na Alemanha (Hitler), Itália (Mussolini), Rússia (Stalin), Espanha (Franco), houve um recrudescimento da democracia também no Brasil. Getúlio Vargas que tinha sido confirmado no poder pela Constituição de 1934, instituiu, em 10 de novembro de 1937, uma ditadura denominada Estado Novo, com a outorga de uma nova Constituição.

Como sempre ocorreu na história, todas as vezes que nos afastamos do exercício da democracia, nos afastamos da idéia de sermos julgados pelos nossos pares. Na Constituição de 1937, diferentemente de todas as anteriores (1824, 1891 e 1934), não mencionou sequer a existência do júri. Isso contribuiu para um grande debate à época, sobre a permanência ou não do instituto no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, o artigo 183 da Constituição de 1937 declarava em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, não contrariassem o texto constitucional.

Como esperado, diante desse ambiente hostil à democracia, em 05 de janeiro de 1938, o tribunal do júri no Brasil sofre o seu maior revés, com a edição do Decreto-Lei nº 167, considerado a primeira lei nacional de processo penal do nosso país. Lembra James Tubenchlak [23] que "o art. 92, b, do citado decreto-lei, não fez menos que abolir a soberania dos seus veredictos, ao ensejar recurso de apelação quanto ao mérito, nos casos de ‘injustiça de decisão, por sua completa divergência com as provas existentes nos autos ou produzidas em plenário’. E, consoante o art. 96 do mesmo diploma, o Tribunal de Apelação poderia, ao prover o recurso, aplicar a pena justa ou absolver o réu, conforme o caso, se a decisão do júri não encontrasse nenhum respaldo nos autos".

Assim, diante da supressão de um dos pilares do julgamento popular, ou seja, a soberania dos vereditos, o instituto do júri foi diretamente violentado. Como tal fato se deu em 1938, foi esse ambiente perverso que influenciou o nosso atual Código de Processo Penal, editado em 03 de outubro de 1941 (Decreto-Lei nº 3689), e que até a pouco tempo (2008) vigorou em quase sua integralidade original com relação ao júri.

Paulo Rangel [24] retrata muito bem o que ocorreu na época: "na medida em que o regime é endurecido, o governante precisa intervir no Poder Judiciário dificultando a liberdade e facilitar a repressão com a conseqüente privação das liberdades públicas. O Estado passa a se constituir em Estado punitivo e não, como deveria ser, Estado do bem-estar-social. O Direito Penal passa a ser usado como instrumento de defesa e do chamado bem jurídico, ante possíveis lesões ou perigos. O Tribunal de Apelação, na época, sofria fortes influências do ditador Vargas, que exercia controle sobre ele. Por isso o júri era manipulado pelo exercício abusivo do poder, perdendo a sua origem de tribunal popular, democrático, criado para retirar das mãos do déspota o poder de decisão sobre a vida dos súditos".

Com o final da Segunda Guerra Mundial, o ciclo histórico se renova, apontando para um céu bem menos carregado de nuvens escuras. A esperança na justiça social se refaz o que mais uma vez representa mudanças no júri. A Constituição de 1946 dispôs ser "mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contando que seja sempre impar o número de seus membros e garantindo o sigilo das votações, a plenitude de defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente de sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida" (artigo 141, §28).

James Tubenchlak [25] retrata bem quando afirma que "finda a ditadura de Getulio Vargas, a Constituição de 18.09.1946 restaurou, no §28 do art. 141, a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri, além de recolocar a instituição no capítulo das garantias individuais. Na síntese de José Frederico Marques (1963, p. 26), o referido parágrafo criou limitações ao legislador ordinário, de variado matizes: no tocante à organização do Júri, vedou o conselho julgador com número par de membros; quanto à forma de funcionamento, proibiu julgamentos descobertos e qualquer forma de cerceamento do direito de defesa; em relação à competência: a) estabeleceu a competência ratione materiae – atribuição privativa para julgamento dos crimes dolosos contra a vida – b) afastou dos tribunais superiores ou de qualquer outro órgão do judiciário, no concernente à competência funcional, o conhecimento dos veredictos do Júri para reformá-los, como judicium rescisorium, em grau de recurso.

Somente em 23 de fevereiro de 1948, com a promulgação da Lei nº 263, é que foram incorporadas reformas ao Código de Processo Penal, para adequar o júri as diretrizes da Constituição de 1946. Entretanto, sobreviveu no texto constitucional e na sua regulamentação, a possibilidade de o tribunal de apelação, hoje de justiça, de apreciar recurso de julgamento por Tribunal do Júri, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária às provas dos autos, disposição que se encontra em vigor até hoje no artigo 593, III, d, do Código de Processo Penal.

Ademais, a adoção também do número impar de jurados contraria de certa forma o caráter democrático do julgamento popular. Para que o direito seja bem dito, seria interessante a preservação do número par, pois, tanto em caso de absolvição, como de condenação, precisaria de no mínimo mais de um voto de diferença, constituindo-se em uma maioria qualificada e, por conseqüência, expressando melhor a vontade popular. Do mesmo modo a limitação da competência para os crimes dolosos. Trata-se de um desperdício institucional. São procedimentos simples, que fazem a diferença, mas não são como tudo referente ao júri bem compreendidos.

Novamente, embora diante de um o refluxo democrático, advindo do golpe de 1964 e a tomada do poder pelos militares, a Constituição de 1967 mantém o júri e a sua soberania para os crimes dolosos contra a vida (artigo 151, §18), o que logo depois (naturalmente) foi alterada pela Emenda Constitucional nº 01 (na verdade uma nova Constituição), outorgada em 17 de outubro de 1969, em que foi mantida a instituição do júri sem referencia à sua soberania (art. 153, §18). Apesar disso, nesse ambiente conservador, o Código de Processo Penal foi recepcionado, o que demonstra a força da sua origem inspirada no Decreto nº 167/1938 e na Constituição Federal de 1937.

Já em 1988, na volta integral ao regime democrático, com a adoção de um real Estado Democrático de Direito, cujo fundamento da República, dentre outros, é a cidadania (art. 1º, II) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), além do princípio de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (art. 1º, parágrafo único), mais uma vez, diante da esperança de justiça social, o instituto do júri sai fortalecido como cláusula pétrea (impossível de ser reformada), sendo assegurando, conforme pelo artigo 5º, XXXVIII, a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos, a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, com a organização que lhe der a lei.

É possível deduzir, de pronto, que a competência do júri não está mais só determinada aos crimes dolosos contra a vida, tudo vai depender da organização que lhe der a lei. Nesse sentido se posiciona Eugenio Pacelli [26]: "a primeira observação que faríamos é que a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida não é a única assegurada ao aludido tribunal. Como vimos, na hipótese de conexão entre crime doloso contra a vida e outro de competência originária de juiz singular, prevalecerá a do primeiro (art. 78, I, CPP). O Tribunal do Júri, então, julga também outras infrações penais, tudo a depender de previsão legal".

Do mesmo modo, Guilherme Souza Nucci [27] sustenta que "o texto constitucional menciona ser assegurada a competência para os delitos dolosos contra a vida e não somente para eles. O intuito do constituinte foi bastante claro, visto que, sem a fixação da competência mínima e deixando-se à lei ordinária a tarefa de estabelecê-la, seria bem provável que a instituição desaparecesse do Brasil". Tal posicionamento também é endossado por Denílson Feitoza [28] ao lecionar que "se a Constituição utiliza o verbo assegurar, significa que é competência mínima e, portanto, é teoricamente possível que a lei amplie a sua competência para crimes diversos, além dos dolosos contra a vida".

Diríamos, inclusive, mais: não só para crimes, como também para condutas por ato de improbidade e para matéria civil em geral, especialmente aquelas que dizem respeito a indenização por ato ilícito ou referente a direito difuso, coletivo e individual homogêneo, a ser manejado por ação civil pública. Ademais, havendo liberdade para o legislador formatar o Tribunal do Júri, nada impede que com uma melhor compreensão democrática do instituto, fosse repristinado o número par de jurados, para qualificar a decisão.

Neste sentido, inclusive, Aury Lopes Júnior [29], crítico do instituto, defende estar "plenamente de acordo: o número par de jurados (8), resolveria esse problema, pois a condenação somente ocorreria com uma diferença de, no mínimo, dois votos. O aumento do número de jurados é imprescindível, não apenas para dar uma maior representatividade do corpo social no conselho de sentença, mas, principalmente para a máxima eficácia do direito constitucional de defesa".

Lamenta-se, por outro lado, que se tenha que resguardar o sigilo da votação, pois a discussão entre os jurados, antes da decisão, é medida salutar e de segurança jurídica, pois, de alguma forma, estariam fundamentando as suas decisões. Neste sentido, a excelente tese de doutorado de Paulo Rangel: A Inconstitucionalidade da Incomunicabilidade do Conselho de Sentença no Tribunal do Júri Brasileiro. [30]


Conclusão

O júri na história sempre foi uma instituição violentada pelas circunstâncias políticas que um Estado ainda não consolidado de direito se prestava. O poder de julgar, de dizer o direito no caso concreto, de produzir uma norma jurídica concreta entre as partes, de reconhecer no semelhante o grau de reprovação ou aprovação da sua conduta é determinante em uma sociedade amadurecida. O discurso da impunidade é preconceituoso e demonstra apenas um enorme desconhecimento e, por conseqüência, incompreensão da sua natureza.

Ao negar o júri, estamos incorrendo em um retrocesso democrático, de convivência comunitária, originado em nossas raízes, exposto pela nossa tradição e comumente observado pelo comezinho hábito das pessoas levarem as discussões relevantes para a um espaço público. Hoje essa praça pode ser vista de diversas formas, seja com a assunção de novas mídias, criando comunidades virtuais sobre a discussão do tema, seja pela ainda existencial presença que procuramos ter uns com os outros, mesmo com aqueles que não conhecemos. Visualmente relembramos a idéia que não somos seres autárquicos e necessitamos ainda dos nossos semelhantes, das nossas tribos, freqüentando os mesmo lugares com algum significado ideológico e construtivo.

A luta histórica da humanidade sempre foi no sentido de aumentar ou diminuir o poder do déspota (nas múltiplas formas que se apresenta), o julgamento popular foi um dos maiores expoentes dessa secular batalha. Mas nunca nos posicionamos para discutir, aprofundar e melhorar o nosso sistema, deixando-o como se fosse uma coisa menor dentro de toda a nossa prática democrática. Ser jurado ainda é uma função inexpressiva, uma exceção ao exercício da cidadania, um dever (ônus) e não um direito (bônus).

O chamado "repouso dogmático" do instituto, apontado por Aury Lopes Júnior, "pois há anos ninguém ousa questionar mais a sua necessidade e legitimidade" [31], implica na necessidade de uma clara revisão do que passamos, com as novas perspectivas de uma sociedade moderna e mais conectada. A utilidade do instituto será proporcional à possibilidade de renovarmos a sua prática, sem que com isso implique necessariamente no desprezo de sua existência.

Apesar de vivermos um período de estabilidade democrática há mais de vinte anos, feito quase inédito na nossa história, com a assunção de inúmeras práticas modernas da democracia, inexplicavelmente o júri permaneceu relegado a um exercício menor do nosso poder político. Para tanto, registre-se que só alteramos, e, diga-se muito timidamente, o Código de Processo Penal, que foi editado sob a Constituição de 1937, apenas no ano de 2008, deixando de incorporar um novo sentido de cidadania, que a Constituição de 1988 nos delegou.

A indiferença ao fortalecimento do instituto se explica de certa maneira pelas inúmeras intervenções políticas que sofreu ao longo da nossa história, o que levou E. D. Magalhães de Noronha a afirmar que "seria ir muito longe na crítica ao apontar os defeitos da instituição (do Júri). Em sua essência, ela é recomendável, em teoria perfeitamente aceitável, pois permite que o indivíduo julgado por seus pares seja; é o Júri a expressão de democracia. Todavia, na prática é facilmente desvirtuado".

De fato, como uma expressão geral podemos afirmar que o desvirtuamento em nossa democracia, especialmente no exercício do poder, na prática também é facilmente ocorrente, nem por isso relegamos os ideais de juntos, coletivamente, pelo voto, eleger (e renovar) os nossos mandatários e fiscalizar os atos de governos, muito menos de aperfeiçoarmos legislativamente essa prática.

O sistema jurídico norte-americano tem por pedra angular a discussão dos conflitos (cíveis ou criminais) pelo Tribunal do Júri, ainda numa formação pura, como foi concebido na Inglaterra em 1166, com um Grand Jury e um Petit Jury. Nem por isso eles abandonaram a sua conhecida praticidade ou incentivaram qualquer forma de impunidade. Ao contrário, isso não pode ser debitado àquela coletividade. Por outro lado, ao fortalecerem essa instituição, por conseqüência, revigorou-se na origem o sentido de cidadania do país, outro reconhecido traço marcante de sua sociedade.

Já em nosso sistema, em que predomina as decisões monocráticas, é disseminada na sociedade a idéia de que vivemos na impunidade, com uma inegável crise de legitimidade de decisão. Por mais injusto que possa ser esse ou aquele entendimento, isso é um fato, que se explica à sua medida pela falta contumaz de participação da sociedade no importante exercício de dizer o direito, que foi há anos usurpado pela elite sob o argumento da fragilidade/possibilidade de nosso povo de julgar bem.

Enquanto continuarmos a difundir esse modelo, estamos ao mesmo tempo condenando perpetuamente os nossos cidadãos a uma tutela desnecessária e injusta. Por outro lado, verifica-se que as deficiências do nosso modelo democrático de participação popular estão de alguma forma sendo superadas pelo exercício do voto, embora ainda com muitas resistências de setores mais conservadores. Nesse sentido, portanto, devemos prosseguir com o exercício contumaz da prática de julgamento popular, para que possamos naturalmente alcançar o aperfeiçoamento institucional necessário, sempre olhando para frente e sem esquecermos o que fomos submetidos no passado, superando todo acomodamento dogmático.

Estamos no Século XXI. A nossa constituição foi hábil em delegar à lei a organização do júri. Já nos encontramos suficientemente maduros enquanto nação para assumirmos uma nova roupagem, atual e eficiente, controlada e acessível, para o julgamento popular. O que de fato não podemos é ficar, sem uma mínima postura construtiva, repetindo as práticas (erros) do passado e continuarmos criticando um instituto de vital importância para o nosso reconhecimento enquanto cidadãos e desenvolvimento/reconhecimento de nossa sociedade.

Por fim, é sempre bom lembrar Luigi Ferrajoli, quando professa que "em um verdadeiro Estado Democrático de Direito as garantias do Direito e do Processo Penal, de fato, expressam a técnica adotada pelo Estado com o objetivo de minimizar a violência e o poder punitivo, ou seja, para reduzir no máximo possível a previsão do delito, o arbítrio dos juízes e a aflição da pena". [32]


Notas

  1. Reis Friede, Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica. 5ª edição. Editora Forense Universitária. 2002. p. 09.
  2. Reis Friede, idem.
  3. Firmino Whitacker. Jury. 1904. TYP. ESPÍNDOLA, SIQUEIRA & COMP. Disponível no sítio eletrônico: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bd000105.pdf
  4. Rogério Lauria Tucci Tribunal do Júri – estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira, 1999, p.21. apud Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo Rezende no sitio eletrônico: http://jus.com.br/artigos/6865
  5. Idem.
  6. Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica. 2ª edição. Editora Lumen Juris, p. 42
  7. Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica. 2ª edição. Editora Lumen Juris, p. 43
  8. Idem
  9. Apud Paulo Rangel. Direito Processual Penal. 16ª edição. Editora Lumen Juris. 2009, p. 541
  10. Wikipédia no sitio eletrônico: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ord%C3%A1lia
  11. James Tubenchlak. Tribunal do Júri. Contradições e Soluções. 4ª edição. Editora Saraiva. 1994, p. 3 e 4.
  12. Guilherme Souza Nucci. Tribunal do Júri. Editora Revista dos Tribunais, p. 42
  13. Apud Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica, p. 62
  14. James Tubenchlak. Obra citada, p. 5.
  15. Guilherme Souza Nucci, Obra citada, p. 42 e 43.
  16. Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica, p. 63
  17. Paulo Rangel. Direito Processual Penal, p. 545.
  18. Paulo Rangel. Direito Processual Penal, p. 546.
  19. Paulo Rangel. Direito Processual Penal, p. 547.
  20. Carlos Marchi. A Fera de Macabu – O Maior Erro da Justiça Brasileira. Edições BestBolso. 1998.
  21. Guilherme Souza Nucci, Obra citada, p. 43.
  22. Instituições do Júri, apud Paulo Rangel. Direito Processual Penal, p. 554.
  23. James Tubenchlak. Obra citada, p. 7.
  24. Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica, p. 84
  25. James Tubenchlak. Obra citada, p. 7 e 8.
  26. Eugenio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. Editora Lumen Juris. 2009, p. 588.
  27. Guilherme Souza Nucci, Obra citada, p. 34
  28. Denílson Feitoza. Direito Processual Penal. 6ª edição. Editora Impetus. 2009, p. 493
  29. Aury Lopes Jr. Direito Processual Penal e a sua Conformidade Constitucional. Volume II. 2ª Edição Editora Lumen Juris. 2009. p. 338
  30. Universidade Federal do Paraná. Tese de doutorado. 2005. Disponível no sitio eletrônico: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/handle/1884/2619
  31. Aury Lopes Jr. Obra citada. p. 333
  32. Apud Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica, p. 85
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Fernando Antônio Calmon. Júri: pequenas observações históricas sobre um instituto ainda não compreendido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2667, 20 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17652. Acesso em: 5 maio 2024.