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A aplicação da sanção administrativa disciplinar.

Relação entre a vinculação deôntica, a razoabilidade e a proporcionalidade das medidas punitivas

A aplicação da sanção administrativa disciplinar. Relação entre a vinculação deôntica, a razoabilidade e a proporcionalidade das medidas punitivas

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A aplicação da sanção disciplinar constitui exercício do "jus puniendi" estatal, consubstanciando-se em concreção do direito subjetivo de elaborar o ato administrativo que lhe dê efeitos jurídicos.

1.Introdução

A aplicação da sanção disciplinar constitui exercício do jus puniendi estatal, referente ao controle da disciplina interna do serviço público, consubstanciando-se em concreção do direito subjetivo de, após constatada a infração, a sua responsabilidade e o quantum incidente (dosimetria da sanção), elaborar o ato administrativo que lhe dê efeitos jurídicos.

O tema em comento está afeto ao princípio da legalidade que vincula a Administração Pública [01]. A exemplo do instituto ora tratado (dosimetria da sanção disciplinar), em muitos outros casos específicos o aplicador do Direito depara-se com a ausência de margem discricionária para o seu agir, ante a analítica descrição pela norma (i) do ato a ser produzido (ii) ou do procedimento a ser adotado, para a persecução da finalidade pública.

Porém o dever de dosar a sanção administrativa a ser aplicada parece ser fonte de equívocos, onde a Administração, no exercício de seu poder disciplinar, não tem dispensado a correta interpretação normativa, infringindo, destarte, o referido princípio da legalidade, ao passo que livremente efetiva a comutação de sanções, sem a previsão expressa de lei nesse sentido, sob o pretexto de assim se levar a efeito a dosagem da penalidade ao caso concreto, com fundamento nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Não obstante, a autoridade julgadora do processo administrativo disciplinar não se deve esquecer de que operacionaliza (interpreta e aplica) institutos jurídicos postos, em tese, validamente no direito positivo, constituindo-se linguagem técnica, em forma de proposições que, implicadas a conseqüências jurídicas, formam a norma jurídica, in casu, de imposições afirmativas ou negativas de direito sancionador.

Essa regra vale para o direito penal e para os demais ramos do Direito que aplicam sanções em razão do descumprimento de suas imposições, a exemplo do direito tributário, do direito administrativo e, no caso que nos interessa, do direito administrativo disciplinar. Assim, para a aplicação da sanção neste ramo do Direito, há de observar-se o vínculo implicacional a ligar hipótese e tese, extraindo-se, destarte, a proposição normativa.

Como bem assevera Diniz De Santi, "a norma não é a oralidade ou a escritura da linguagem, nem é o ato de querer ou de pensar ocorrente no sujeito emitente da norma, ou no sujeito receptor da norma, nem é, tampouco, a situação objetiva que ela denota. Norma é uma estrutura lógico-sintática de significação, que conceptua fatos e condutas, representando-os como significações objetivas. Proposição é a significação do enunciado. Como juízo significativo que é, apresenta necessariamente uma estrutura lógica. A proposição normativa (jurídica ou prescritiva) revela estrutura hipotética (implicacional) geral ou individual, é sua forma lógica. Tem composição dual. Suas partes, elementos que inexistem por si só, podem estar dispersos na legislação positiva, integrando corpos jurídicos dos mais diversos. Entretanto, recompondo logicamente, temos (i) hipótese ou pressuposto, parte da norma que tem por função descrever situação de possível ocorrência no mundo e (ii) tese ou conseqüente, que prescreve uma relação modalizada pelo functor relacional deôntico num de seus três modos relacionais específicos: permitido, proibido ou obrigatório". [02]

Para haver norma jurídica, faz-se mister a correlação entre a hipótese e o seu legal conseqüente, ou seja, a norma de direito é extraída da modalização do antecedente com o conseqüente e, assim, para cada fato descrito o legislador implica um ou mais conseqüentes.

Partindo-se dessa premissa, verificamos que as proibições e imposições prescritas no ordenamento administrativo disciplinar são vinculadas por modulações deônticas a determinadas sanções, obtendo-se a norma jurídica afeta a referida relação jurídica implicacional e que rege as relações entre o Estado-administração e o agente público investido no cargo ou função pública.

Para a infringência de determinado preceito primário é descrita uma determinada sanção que "deve ser", acaso realizado ou não o tipo descrito na lei. No entanto, cumpre ressaltar que a lei, o direito positivo, é quem se encarrega de implicar determinada prescrição a determinadas descrições. Deste modo, poderia, se assim entendessem os encarregados pelo ato de enunciação, os legisladores, vincular uma única hipótese legal a mais de uma conseqüência jurídica. Isso é discrição (opção) do legislador.

Como elucidativamente sustenta Karl Engisch: "o legislador institui, entre a hipótese legal e a conseqüência jurídica – quer dizer, o estar obrigado de uma pessoa -, uma conexão causal cuja existência ele mesmo determina". [03]

À vista disso, se descumprindo determinado prescritor pelo servidor público, deve ser a aplicação da sanção, contida no descritor, tese que, em alguns casos, conforme estatuído no direito positivo – geralmente em forma de circunstância atenuantes ou agravantes -, pode comportar alguma graduação de intensidade e, destarte, dosagem, levada a efeito pelo aplicador do direito.

A dosimetria consiste em graduar - dentro de uma escala de amplitude e seguindo a determinados parâmetros postos por lei - a intensidade da sanção a ser aplicada ao sujeito da relação jurídica e infrator da norma jurídica primária proibitiva, com vista à individualização da sanção e à aplicação do direito ao caso concreto, potencializando ou amenizando a retribuição, a coerção e a correção estatal.

Destarte, qualquer aplicação de sanção administrativa disciplinar que não considere os dispositivos legais afetos às circunstâncias atenuantes e agravantes será desprovida de validade por lógica e formal ofensa ao direito positivo.

Neste diapasão, o artigo 128, caput, da Lei n.º 8.112/90 - assim expresso: "Na imposição da penalidade serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais." - traz, de forma cogente, para o agente público aplicador da penalidade, a autoridade julgadora nos termos do artigo 141 do mesmo diploma legal, a obrigação de sopesamento acerca de dadas circunstâncias - a) natureza da infração; b) gravidade da infração; c) os danos provocados ao serviço público: d) as circunstâncias agravantes; e) as circunstâncias atenuantes; e f) os antecedentes funcionais, de forma que a ausência dessa análise, devidamente declinada na fundamentação do ato de julgar, invalida a decisão (ato administrativo) de aplicação de penalidade face ao motivo discordante, a requerer adequação ao caso concreto.

Em análise ao sistema jurídico-disciplinar, no que tange ao positivado em sede de legislação federal no Direito brasileiro, não se encontram descritos em diploma legal algum os parâmetros para suporte vinculado à aplicação dessa norma exarada no artigo em epígrafe. Preferiu o legislador, deste modo, ao contrário do que ocorre no direito penal, quando, e.g., definiram-se as circunstâncias agravantes e as circunstâncias atenuantes, bem como o quantum da pena a se reduzir, deixar tal juízo no âmbito da atribuição discricionária do agente público.

Ante o exposto, questão relevante se ora apresenta como fonte de equívocos a se abeberarem os aplicadores do direito administrativo a casos deste jaez, qual seja a possibilidade de, com fundamento nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, efetivar-se a comutação de sanções disciplinares. Deste modo, importante formular resposta à indagação: quais os limites e alcance dessa norma exarada no artigo 128, caput, da Lei n.º 8.112/90, quando em confronto com o princípio da observância do modal deôntico (vinculum juris)?

A resposta ora buscada, embora raramente levadas em consideração, abstrai-se da análise minuciosa do diploma legal regente, bem como, sistematicamente, da interpretação de normas de direito público, que não podem ser desprezadas sob pena de deturpar um todo, o Direito, que apenas se subdivide com a finalidade epistemológica de facilitar o seu estudo – o direito administrativo é apenas didaticamente autônomo [04]. Não constitui distinto ramo de ciência, posto que está inserto no bojo publicístico e dele não se pode separar com fins outros senão epistemológicos, a ponto de repulsar princípios e conceitos de outros ramos de direito perfeitamente a ele aplicáveis.

Deste modo, para a aplicação da sanção disciplinar, pervagando pela sua anterior dosagem, necessário se faz a análise da norma em seu sentido técnico, decorrente de uma modulação deôntica, onde se encontram relacionados os preceitos primários e secundários, tipificação e sanção ou penalidade, conforme veremos abaixo.


2.Quais os limites da norma exarada no artigo 128, caput, da Lei n.º 8.112/90, quando em confronto com o princípio da observância do modal deôntico (vinculum juris)?

Quanto ao alcance do dispositivo em estudo, imprescindível tecer apontamentos de lógica jurídica, onde nos deparamos com a significação de functor relacional deôntico, conectivo ou modal deôntico, entendendo suas implicações, com a finalidade de aplicação às penalidades disciplinares. Para tanto, em primeira aproximação, valemo-nos dos ensinamentos de Hans Kelsen, em abordagem sobre norma e produção normativa, onde assevera que "com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É este o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem. Dizemos que se dirigem intencionalmente à conduta de outrem não só quando, em conformidade com o seu sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando a permitem e, especialmente, quando conferem o poder de realizar, isto é, quando a outrem é atribuído um determinado poder, especialmente o poder de ele próprio estabelecer normas. (...) Na proposição jurídica não se diz, como na lei natural, que, quando A é, B é, mas que, quando A é, B deve ser, mesmo quando B, porventura, efetivamente não seja. O ser o significado da cópula ou ligação dos elementos na proposição jurídica do diferente do da ligação dos elementos na lei natural resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser estabelecida pela autoridade – através de um ato de vontade, portanto -, enquanto que a ligação de causa e efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer intervenção dessa espécie. (...) O dever-ser jurídico, isto é, a cópula que na proposição jurídica liga pressuposto e conseqüência, abrange as três significações: a de um ser-prescrito, a de um ser-competente (ser autorizado) e a de um ser-(positivamente)-permitido das conseqüências". [05]

Como exemplo, podemos citar a norma positivada no caput do artigo 121 do Código Penal Brasileiro, que traz sob o nomem juris de "homicídio simples", o preceito "matar alguém", descrevendo "reclusão de seis a vinte anos". Neste exemplo, temos a descrição de um fato consubstanciado numa norma proibitiva que, violada, desencadeará o direito subjetivo de o Estado-juiz aplicar o preceito secundário, qual seja, a pena prevista em lei.

Podemos também citar ainda as normas tributárias, em especial a instituidora de tributo, desencadeadora da obrigação principal que, sem exceção, traz a norma padrão de incidência, hipótese normativa, consistente no preceito primário, conectada, caso ocorra a subsunção fática de seu conceito, à obrigação de recolhimento aos cofres públicos, nos termos da lei, de determinada quantia em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir.

Note-se que tais finalidades perquiridas pela lei, imposições normativas afirmativas ou negativas, só podem ser alcançadas face à existência de conexão, imputação relacional, entre o tipo legal e a ameaça de sanção, entre o prescritor e o descritor, entre o preceito primário e o preceito secundário ou, na denominação de Lourival Vilanova, entre proposição-hipótese e proposição-tese [06]. Essa ligação é denominada modal ou conectivo deôntico, relação normativa, que pode ser operacionalizada, especificamente, com os functores: "permitido", "obrigado" ou "proibido". Dessarte, inadmissível, no mundo jurídico, no mundo do dever-ser, a aplicação de determinada sanção que não seja a pura conseqüência [07] de infringência de tipo a ela legalmente relacionado. Este é o princípio do conectivo deôntico no que concerne ao functor "proibido" ou "obrigado", como proibição ou imposição de conduta, imposição afirmativa ou imposição negativa, na seara do direito disciplinar.

Insta ressaltar que é tarefa da lei, direito positivo, fixar a relação implicacional entre hipótese e tese, função externa ao campo lógico, podendo relacionar o descumprimento de determinado preceito primário a um ou mais preceitos secundários. Porém, se assim não for positivado, não cabe ao operador do direito, o intérprete, modalizar o que de fato não foi feito pelo direito positivo, conquanto linguagem técnica prescritiva.

Diniz de Santi assinala que "norma jurídica é proposição prescritiva. Se é proposição – entidade lógica – sua composição interior obedece às leis de formação de proposições normativas. O sujeito titular da competência para produzir normas jurídicas pode selecionar fatos para sobre eles incidirem as hipóteses; pode optar por estes ou aqueles conteúdos sociais; pode vincular livremente em função dos valores positivos e contextos sociais, no limite do gozo de sua competência – quaisquer conseqüências (efeitos jurídicos) às hipóteses delineadas. Mas – como adverte o Prof. Lourival Vilanova – ‘não pode deixar de sujeitar-se às relações meramente formais ou lógicas que determinam a relação-de-implicação entre hipóteses e conseqüências’. O direito positivo destaca-se pela intrínseca homogeneidade sintática de seus elementos: toda norma jurídica apresenta idêntica estrutura hipotético-condicional, i.e., associa, num nexo de causalidade jurídica (imputação), a descrição de um fato de possível ocorrência no mundo objetivo (hipótese) a uma relação deôntica (conseqüência). É limite sintático. Por outro lado, na perspectiva semântica que se estabelece entre o suporte físico do enunciado (o texto) e o significado (aquilo que a norma prescreve) reside um limite ontológico, próprio do direito: o sentido semântico em prescrever o factualmente impossível e o factualmente necessário. (...) As normas jurídicas, necessariamente, incidem sobre o suporte factualmente possível. Importa afirmar: condutas e situações jurídicas impossíveis não são alcançadas pelo direito. É o limite semântico". [08]

Assim, limita-se – aspecto sintático - o alcance da norma exarada no artigo 128, caput, da Lei n.º 8.112/90, pois, se determinada conduta é, por exemplo, passível de demissão, ou seja, se a infringência de determinado prescritor está correlacionada, conectada, ao descritor que impõe a demissão do servidor faltoso, não se pode usar a regra da norma em estudo, dosimetria da penalidade administrativa, para relacioná-la a outro preceito secundário, senão o seu próprio, descrito na lei que assim, e somente assim, o fez. Deste modo, não se pode, ao contrário de demitir o servidor e valendo-se dos dizeres do artigo 128, aplicar, por exemplo, a sanção de suspensão se não houver previsão explícita para assim proceder-se. Tal medida fere o princípio da correlação entre os preceitos da norma sancionadora, princípio da imputação deôntica, vinculação normativa.

Dentro desse propósito e ciente desses fundamentos de deontologia ensina J. Guimarães Menegale que a "demissão é o ato por meio do qual se exclui o funcionário dos quadros da Administração, a título de sanção disciplinar, por incorrência em falta irresgatável. Não se tem em conta os antecedentes do funcionário: provada a falta e caracterizada a culpa, chega-se à conclusão de que o fato, por prejudicial aos interesses do serviço público, exige o afastamento definitivo do infrator, ainda que seja este o primeiro pelo qual responda. O supremo rigor da depuração corresponde, na hipótese, à última gravidade da infração, de tal forma que se não se propicia o culpado a eventualidade de reabilitar-se. Nem a experiência da conduta pretérita, nem a perspectiva do futuro influem, na hora da punição extrema, o ânimo da autoridade. A falta como que decide por si própria, isolada, por sua caracterização e suas consequências, no tempo, no momento em que ocorreu" [09].

É, assim, um efeito legal, dos meandros da lei em si e permeado pela deontologia jurídica, para apresentar ao sistema um razoável grau de certeza e de segurança, posto e mirado para regular as relações interpessoais, conquanto alocado no regime jurídico, legitimado pelo titular do poder, o povo.

Do mesmo modo, não se pode, valendo-se dos mesmos fundamentos, desqualificar a penalidade de suspensão, aplicando uma advertência, pois, mutatis mutandi, não poderia o magistrado, valendo-se de atenuantes cogentes do direito penal, aplicar ao homicida a pena referente a lesões corporais. Poderia sim, dentro do contido no preceito secundário, ameaça de sanção, que no caso do homicídio simples é de reclusão de seis a vinte anos, atenuá-la até alcançar o mínimo (podendo, por dadas circunstâncias reduzi-la abaixo do mínimo legal), em conformidade com a lei, quando do sopesamento das circunstâncias judiciais e legais.

O aqui exposto vale, em seu inteiro teor, para o direito administrativo, quando da aplicação da penalidade, onde concluímos que a dosimetria determinada pelo artigo 128, caput, da Lei n.º 8.112/90, só é aplicável aos casos de suspensão, pois esta sanção pode variar de um a noventa dias, fornecendo à autoridade julgadora amplitude, dentro de um mesmo preceito secundário, para a aplicação desta reprimenda, conforme confrontada com as circunstâncias do artigo em estudo.

Com efeito, sopesando as circunstâncias do artigo 128, pode a autoridade julgadora aplicar a sanção de suspensão de um a noventa dias, mas nunca agravar essa pena para aplicar a demissão ou abrandá-la para aplicar a advertência, sendo a recíproca, também, ilegal, não podendo, como já dito, abrandar a demissão, aplicando suspensão ou advertência. Nisto consiste o princípio da correlação (vinculum juris) dos preceitos penais, ou do modal deôntico. Caso contrário, estar-se-ia diante de uma norma não atenuante, mas sim substitutiva de pena, extra legem.

O próprio DASP, cujas formulações não conflitantes com a Constituição Federal ainda são vinculativas para a Administração Pública se recepcionadas pela Constituição Federal, assim já entendia, consoante a égide do antigo estatuto dos servidores públicos civis da União, Lei nº 1.711, de 28 de outubro de 1952, ao analisar a dosimetria contida nos artigos 202, 203 e 205, cuja redação é idêntica às dos artigos que tratam da dosimetria no atual Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União, senão vejamos: "Formulação n.º 141. Demissão e Suspensão. O atual Estatuto dos Funcionários não admite se substitua a pena de demissão pela de suspensão."

Atento ao acima explanado, o legislador fez inserir, por meio de determinação legal, no direito positivo sancionador federal expressado pela Lei n.º 8.112/90, uma única situação em que é possível a substituição de pena, no caso de reincidência de falta apenada com advertência, determinando, nos termos do art. 130 do referido diploma normativo, a aplicação da suspensão, in verbis: "Art. 130. A suspensão será aplicada em caso de reincidência das faltas punidas com advertência (...)"

No entanto, verifica-se in casu a não incidência da norma auferida do artigo 128 do diploma regente, que trata da dosimetria da sanção, mas sim, nesse caso do artigo 130 acima, de substituição legal de uma sanção por outra (comutação de sanções disciplinares).


3.A posição favorável da jurisprudência, em especial do Superior Tribunal De Justiça, para a comutação da sanção disciplinar, com fundamento no princípio da razoabilidade e da proporcionalidade

Em que pese a ocorrência esporádica de decisões que limitem a comutação de sanções disciplinares, o Superior Tribunal de Justiça tem-se posicionado mais de uma vez no sentido de que "em face dos princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e culpabilidade, típicos do regime jurídico disciplinar, não há juízo de discricionariedade no ato administrativo que impõe sanção a Servidor Público, razão pela qual o controle jurisdicional é amplo, de modo a conferir garantia aos servidores públicos contra eventual arbítrio, não se limitando, portanto, somente aos aspectos formais". Com isso a jurisprudência dessa Corte assinala favoravelmente à transmutação da sanção disciplinar, com fundamento nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade [10] que normatizam os contornos do ato de decisão e de dosagem da sanção disciplinar pela autoridade julgadora. A Corte entende possíveis as comutações entre as sanções previstas no ordenamento jurídico afeto ao tema [11]/ [12], possibilitando, se de forma fundamentada e após a identificação de causas agravantes ou atenuantes, ou mesmo de aumento ou diminuição, a aplicação das sanções de advertência a casos de suspensão ou demissão, ou de demissão aos casos previstos como de suspensão ou mesmo advertência, facultando, malgrado entendermos inconstitucional tal procedimento, qualquer tipo de comutação.

Esses apontamentos favoráveis à comutação também se depreendem do teor do Informativo de Jurisprudência n.º 423 – STJ, onde a Terceira Turma inclina-se no sentido da necessidade de razoabilidade e proporcionalidade na aplicação da sanção, nos seguintes termos "servidores do Judiciário, conforme apurado em processo administrativo disciplinar (PAD), com objetivo de obterem o anonimato, teriam ludibriado partes para que assinassem documento de cujo teor e finalidade não tinham conhecimento: assinaram representações contra a juíza, o escrivão e dois escreventes da comarca, acusando-os de cometer injustiças, maltratar usuários do serviço forense, contribuir para a morosidade e praticar corrupção. Segundo o Min. Relator, apurados os ilícitos de indisciplina, eles merecem reprovação na medida em que demonstrado o intuito dos ora recorrentes de, no mínimo, submeter os representados a constrangimento, por figurarem em processo instaurado em corregedoria-geral de Justiça estadual. Também aponta que, não obstante sua indiscutível gravidade, o ato não teve maiores consequências nem para os representados nem para a própria Administração, uma vez que logo foi constatada a impropriedade das imputações. Assim, conclui que a aplicação da pena máxima de demissão, imposta com base nos arts. 273, I e IV, 274, V, e 285, III, da LC estadual n. 59/2001, deu-se mediante inobservância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, impondo-se que a Administração aplique sanção disciplinar mais branda. Diante do exposto, a Turma deu parcial provimento ao RMS, concedendo em parte a segurança para anular a demissão dos recorrentes e determinar a reintegração aos cargos que ocupavam, ressalvada à Administração eventual aplicação de pena menos gravosa em decorrência das infrações disciplinares já apuradas, se for o caso. Precedentes citados: MS 12.369-DF, DJ 10/9/2007, e MS 8.401-DF, DJe 17/5/2009. RMS 29.290-MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 18/2/2010".

A doutrina expressiva, em posição intermediária à adotada pela jurisprudência e defendendo a comutação parcial, a depender da gravidade da sanção a ser aplicada, considera comutáveis as sanções de natureza leves ou médias. Nesta esteia são os ensinamentos de Marcello Caetano, ao alinhavar que "ao contrário do que sucede no direito criminal, na lei disciplinar não se estabelece a correspondência rígida de certas sanções para cada tipo de infração, deixando-se a quem haja de decidir amplo poder discricionário para punir as infrações verificadas. Esta regra tem exceções para certas infrações e sobretudo quanto à aplicação das sanções mais graves – como a demissão" [13]. Entende ainda o autor que o princípio da legalidade é plenamente atendido com a simples enumeração do rol taxativo de sanções passíveis de aplicação (taxatividade das sanções disciplinares), facultando-se-lhe à autoridade competente escolher, a partir dessa premissa, a sanção adequada ao caso concreto, considerando as causas agravantes e as atenuantes, "consoante a gravidade das infrações e o interesse dos serviços impuser, a pena aplicável procurará melhorar o agente que se conserva ao serviço, ou expulsá-lo dele por inconveniente, pernicioso ou incorrigível" [14].

Deste modo, sem embargo da plena aceitação da comutação das sanções para a jurisprudência, para a doutrina dominante, a nosso ver arraigada em razões de política administrativa da disciplina interna do serviço público, é possível a comutação de sanções para os ilícitos de leve ou de média gravidade, estando impossibilitada, entretanto, para os ilícitos graves.


4.Conclusão: a impossibilidade de utilização dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para comutação de sanções disciplinares

Em que pese os argumentos da doutrina e da jurisprudência, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, para a realização da comutação de sanções disciplinares, estes institutos não se prestam a sustentar tal mister.

Os argumentos da razoabilidade e da proporcionalidade não podem suplantar os ditames legais, para, em substituição ao legislador, dizer a sanção a ser aplicada ao caso concreto, sem que haja previsão legal nesse sentido.

Não estão autorizados a dizer que uma lei não é razoável ou proporcional e, com efeito, aplicar outra em analogia. Ao julgador cabe sim dizer se a lei ou o ato normativo são constitucionais e, com isso, declarar em concreto ou em abstrato, a sua não compatibilidade vertical com o Texto Constitucional. Cabe também declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de determinada interpretação (interpretação conforme a Constituição), mas dizer que a norma válida não é razoável, sem declará-la inconstitucional, isso não é possível.

A razoabilidade e a proporcionalidade são incidentes em ambientes normativos que comportem dosagem de efeitos jurídicos, os quais ficam a cargo de determinado intérprete e aplicador do Direito e, em cima disso, cabe, para o poder judiciário, dizer se tal medida adotada foi ou não razoável, foi ou não proporcional. Mas dizer que o fato de a Administração ter seguido a lei, em observância a deontologia jurídica que implica, na aplicação da sanção, o tipo à penalidade, foi desproporcional, desarrazoado, é, sem dúvida, ofensa em concreto à própria lei que regula a forma de sanção disciplinar.

Com efeito, se a lei previu que para determinada conduta é passível, por exemplo, somente a demissão, não pode o poder judiciário contrariar a lei, sem declará-la inconstitucional, para dizer que para essa mesma conduta, no caso concreto, sob a análise subjetiva de cada caso e sob a luz da razoabilidade e da proporcionalidade, não cabe a demissão, mas sim outra sanção disciplinar.

Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não podem, sem a declaração de inconstitucionalidade, irem de encontro ao disposto em lei, quando esta seja válida e eficaz.

No nosso entender, a comutação de sanções disciplinares, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade é levada a efeito concretamente e aparadas por doutrina e jurisprudência, por medida de política administrativa disciplinar que, porém, não encontra amparo na deontologia jurídica.

Assim, em que pese os doutos posicionamentos de juristas de escol e de relevante jurisprudência da Corte de Legalidade, mas pelos argumentos já esposados, pautamo-nos pela impossibilidade de comutação de sanções disciplinares sem a previsão específica no estatuto disciplinar ou em legislação especial aplicável. Quanto à dosimetria, deve a dosagem incidir somente sobre os limites das sanções que possibilitem, pela própria natureza jurídica, ampliar ou reduzir o seu quantum sem, contudo, modificar a essência da medida sancionatória.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Caetano, Marcello. Princípiosfundamentais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.

Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.

Informativo de Jurisprudência n.º 423 – STJ.

Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Menegale, J. Guimarães. O Estatuto dos funcionários. Vol. II. 1. Ed. São Paulo: Forense, 1962.

Moussallem, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001.

Santi, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 1996.

Vilanova, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.


Notas

  1. Atento à vinculação da dosimetria com o princípio da legalidade, J. Guimarães Menegale, op. cit. p. 586, ensina que a norma que determina a dosagem da sanção disciplinar faz parte do preceito secundário da norma proibitiva, em uma espécie de duplo preceito secundário ou "momentos" de aplicação da sanção, onde o primeiro momento seria a ameaça de sanção e o segundo momento a individualização da ameaça, com a dosimetria da repressão estatal.
  2. Santi, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 31-32.
  3. Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, p. 46.
  4. Como bem assevera o Prof. Tárek Moysés Moussallem, op. cit., p. 28: "O estudo do conhecimento é a principal tarefa do ramo da Filosofia chamado Epistemologia (do grego, episteme, conhecimento) ou Teoria do Conhecimento."
  5. Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 05 e 87.
  6. Vilanova, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.
  7. Mister observar que essa pureza metodológica só pode ser assegurada no plano do dever-ser.
  8. Santi, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 34-35.
  9. Menegale, J. Guimarães. O estatuto dos funcionários. Vol. II. São Paulo: Forense, 1962, ppj. 596/597.
  10. No mesmo sentido, com fundamento na razoabilidade e na proporcionalidade, o tribunal Regional Federal da 4.ª Região assim prescreveu: "ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL. DEMISSÃO. PROPORCIONALIDADE. 1. A autoridade competente, na aplicação da penalidade, em respeito ao princípio da proporcionalidade (devida correlação na qualidade e quantidade da sanção, com a grandeza da falta e o grau de responsabilidade do servidor), observar as normas contidas no ordenamento jurídico próprio, verificando a natureza da infração, os danos para o serviço público, as circunstâncias atenuantes ou agravantes e os antecedentes funcionais do servidor. Inteligência do art.128, da Lei n° 8.112/90. 2. Ademais, por se tratar de demissão, pena capital aplicada a um servidor público, a afronta ao princípio supracitado constitui desvio de finalidade por parte da Administração, tornando a sanção aplicada ilegal, sujeita a revisão pelo Poder Judiciário.3.Deve a dosagem da pena, também, atender ao princípio da individualização inserto na Constituição Federal de 1988 (art. 5o, XLVI), traduzindo-se na adequação da punição disciplinar à falta cometida. 4. Apelação provida para declarar a nulidade da sanção disciplinar e determinar a reintegração dos servidores aos respectivos cargos".
  11. Assim, infere-se do julgado da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça que, não obstante conflitante com a decisão proferida no Recurso em Mandado de Segurança Nº 18.391 - PE (2004/0077509-0), onde assevera: "DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PENAS DE SUSPENSÃO E DEMISSÃO. BIS IN IDEM E REFORMATIO IN PEJUS. OCORRÊNCIA. VEDAÇÃO. SÚMULA 19/STF. PARECERES GQ-177 E GQ-183, DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. ILEGALIDADE. SEGURANÇA CONCEDIDA. AGRAVO REGIMENTAL PREJUDICADO. 1. O simples rejulgamento do processo administrativo disciplinar ofende o devido processo legal, por não encontrar respaldo na Lei 8.112/90, que prevê sua revisão tão-somente quando houver possibilidade de abrandamento da sanção disciplinar aplicada ao servidor público. 2. O processo disciplinar se encerra mediante o julgamento do feito pela autoridade competente. A essa decisão administrativa, à semelhança do que ocorre no âmbito jurisdicional, deve ser atribuída a nota fundamental de definitividade. O servidor público punido não pode remanescer sujeito a rejulgamento do feito para fins de agravamento da sanção, com a finalidade de seguir orientação normativa, quando sequer se apontam vícios no processo administrativo disciplinar. 3. "É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira" (Súmula 19/STF). 4. São ilegais os Pareceres GQ-177 e GQ-183, da Advocacia-Geral da União, segundo os quais, caracterizada uma das infrações disciplinares previstas no art. 132 da Lei 8.112/90, se torna compulsória a aplicação da pena de demissão, porquanto contrariam o disposto no art. 128 da Lei 8.112/90, que reflete, no plano legal, os princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e da razoabilidade. 5. O ideal de justiça não constitui anseio exclusivo da atividade jurisdicional. Deve ser perseguido também pela Administração, principalmente quando procede a julgamento de seus servidores, no exercício do poder disciplinar. 6. Segurança concedida. Agravo regimental prejudicado".
  12. Com efeito, mantendo o precedente, decidiu a Terceira Seção do STJ, no Mandado de Segurança n.º 2008/0167030-9: "MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. VEÍCULO LOCADO. UTILIZAÇÃO. PERCURSO CASA/TRABALHO. PENALIDADE. DEMISSÃO. DESPROPORCIONALIDADE. SEGURANÇA CONCEDIDA. I - Inexiste aspecto discricionário (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar. Nesses casos, o controle jurisdicional é amplo e não se limita a aspectos formais (Precedentes: MS nº 12.957/DF, 3ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 26/9/2008; MS nº 12.983/DF, 3ª Seção, da minha relatoria, DJ de 15/2/2008). II - Esta c. Corte pacificou entendimento segundo o qual, mesmo quando se tratar de imposição da penalidade de demissão, devem ser observados pela Administração Pública os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, individualização da pena, bem como o disposto no art. 128 da Lei n.º 8.112/90 (Precedentes: MS nº 8.693 / DF, 3ª Seção, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 8/5/2008; MS nº 7.260 / DF, 3ª Seção, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ de 26/8/2002 e MS nº 7.077 / DF, 3ª Seção, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 11/6/2001). III - In casu, revela-se desproporcional e inadequada a penalidade de demissão do cargo de técnico do seguro social imposta à impetrante, por ter se utilizado de veículo contratado pela agência Rio de Janeiro/Sul do INSS, para efetuar deslocamentos no percurso residência/trabalho e vice-versa, enquanto no exercício do cargo de gerente executiva daquele posto de atendimento, tendo em vista seus bons antecedentes funcionais, a ausência de prejuízo ao erário, bem como a sua comprovada boa-fé. Segurança concedida, sem prejuízo da imposição de outra penalidade administrativa, menos gravosa. Prejudicado o exame do agravo regimental da União".
  13. Caetano, Marcello. Princípios fundamentais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, p. 403.
  14. Op. cit. p. 403.

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DEZAN, Sandro Lúcio. A aplicação da sanção administrativa disciplinar. Relação entre a vinculação deôntica, a razoabilidade e a proporcionalidade das medidas punitivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2831, 2 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18822. Acesso em: 6 maio 2024.