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Blade Runner.

Estado de Direito Penal: o caso do Caçador de Andróides

Blade Runner. Estado de Direito Penal: o caso do Caçador de Andróides

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O artigo procura destacar o direito à vida, como um sentimento fundamental que transforma o homem. Portanto, a "luta pelo reconhecimento da vida" é antes um sentimento do que um direito. Mas, conclui a temática com a apresentação de um futuro-presente que chamamos de Estado de Direito Penal: um modelo de sociedade que nos encaminha para a Los Angeles de 2019.


Blade Runner:

o caçador de andróides ou o resgate do humanismo?

O uso que a França quer dar ao DNA, como identificador e codificador de imigrantes (in)desejáveis vai aproximar a realidade da ficção. A técnica deve se valer do chamado diagnóstico genético pré-implantatório (DPI), para também auxiliar na "detecção e seleção" de indivíduos que "sirvam ou melhor contribuam" à França, pois a terapia genética ajudaria descobrir e prevenir a formação de "indivíduos indesejáveis ao Estado e à segurança nacional" ou, então, selecionar dentre os "melhores e mais aptos à produção" (Testart, 12/2007).

Esta era do "darwinismo genético" é realmente assustadora, mas também nos permite repensar a visão de mundo humanista de um filme como Blade Runner – o caçador de andróides. O filme, produzido em 1982, traz um policial aposentado, interpretado por Harrisson Ford, que persegue "replicantes" rebeldes em uma Los Angeles caótica, em 2019, e corroída pela chuva ácida diária e pelos oligopólios do futuro: a busca de sua memória e identidade cultural acabaria por levar todos à morte. Portanto, não foi à toa que os 60 melhores cientistas do mundo todo, consultados pelo jornal britânico "The Guardian", elegeram Blade Runner o melhor filme de ficção da história. Os cientistas ainda escolheram Isaac Asimov como o escritor preferido em ficção, pelo conjunto dos livros "A Fundação" e "Os robôs [01]".

Blade Runner trouxe o conceito de "obra aberta" para o cinema, uma vez que foi reeditado ao menos três vezes As outras duas foram: uma Versão para cinema internacional (1982) e uma versão do diretor (1992). Em dezembro de 2007, há esta terceira versão, que está sendo considerada como definitiva e autorizada pelo diretor Ridley Scott, contendo cenas estendidas e efeitos especiais.

Na essência, o cult movie Blade Runner é o oposto à catástrofe ética de um outro filme de ficção, como se apresentou Laranja Mecânica, e sua inigualável insensibilidade e desprezo pelo Outro. De 1971 e dirigido por Stanley Kubrick, o filme traz o protagonista Alex, o líder de uma gangue que se diverte com a ultraviolência, estupros e música clássica (especialmente Beethoven). Seus crimes o levam à prisão e a um tratamento de reabilitação: como cobaia. No fim, entretanto, o delinquente volta a ser o que sempre foi, superando o condicionamento recebido. Ironicamente, para o caso deste trabalho, o enredo se desenrola em 2007.

Assim, Blade Runner é tido como crítica e antítese à banalização da violência, do sadismo, do direito à vida como aposta para o futuro. Aliás, numa das cenas finais fica claro este embate entre "o caçador de andróides" e "a aposta no humanismo". Quando o replicante Roy (o líder) segura pelas mãos, do alto de um prédio, o seu próprio matador (Harrisson Ford, no papel de Deckard) e, em seguida morre, o que faz é nos ensinar o humanismo. Um replicante mais piedoso (humanista) do que seu algoz e caçador nos faria pensar e lembrar que restam poucas coisas importantes e caras à humanidade (em 2007 ou 2019). O mesmo sentido de humanização ("tornar-se humano [02]") fora apresentado por Isaac Asimov, em O homem bicentenário e suas três leis da robótica ou, se quisermos simplificar, sua crença na direção do bom senso.

Estaríamos na era do "darwinismo genético" e isto é realmente assustador, mas também nos permite repensar a visão de mundo humanista de um filme como Blade Runner – o caçador de andróides. O filme, produzido em 1982, traz um policial aposentado, interpretado por Harrisson Ford, que persegue "replicantes" rebeldes. A trama se passa em 2019, em uma Los Angeles caótica e corroída pela chuva ácida diária e pelos oligopólios do futuro. Os replicantes lutam por sua memória e identidade cultural, o que levaria todos à morte. Como diz Tyrell a Deckard, no filme Blade Runner, é um profundo desejo, uma "estranha obsessão por sentimentos". Não foi à toa que os 60 melhores cientistas do mundo todo, consultados pelo jornal britânico "The Guardian", elegeram Blade Runner o melhor filme de ficção da história. Os cientistas ainda escolheram Isaac Asimov como o escritor preferido em ficção, pelo conjunto dos livros "A Fundação" e "Os robôs".

Como veremos, o Estado de Direito Penal é uma mescla entre Estado Penal (endurecimento das penas na modernidade) e Estado Cientificista, quando o próprio Estado se envolve diretamente na atividade científica, como suporte e validação científica do capital. Para efeito didático, o artigo está dividido em duas partes: 1) Blade Runner; 2) Estado de Direito Penal.


1ª PARTE

BLADE RUNNER

Para editar o artigo, a partir da análise do filme Blade Runner, além das três vezes em que já havia assistido – nas versões de 1982 e 1992 -, revi o filme mais quatro vezes, em quatro dias seguidos, dividindo o tempo com a digitação das anotações. Iniciei pela versão "final" de 2007, voltei as duas de 1982 — a "versão para o cinema (EUA)" e a "versão internacional" —, concluindo com a de 1992, a chamada "versão do diretor".

Nas duas edições de 1982, há a figura do narrador, como se fosse a consciência de Deckard. Nas edições de 1992 e de 2007 já não há este narrador. Na edição "internacional de 1982" e na de 1992, há uma cena em que Deckard bebe um drink na sacada do apartamento, e a caminhada de Pris até a casa de Sebastian parece ser mais longa.

A dublagem em português de Rachael, de 2007, é melhor, mais sensual e próxima da grande beleza da atriz. Mas o som ambiente, por exemplo do semáforo, na versão internacional de 1982 é mais nítido, quando diz: "Atravesse agora"; "não atravesse". A edição de 1992 tem um erro aritmético na legenda, pois diz que são seis os fugitivos e que quatro estão soltos, sendo que um morreu eletrocutado.

Uma clara evidência de época do filme está no fato de que não havia câmeras de vigilância no elevador que levaria Roy Batty à casa de Eldon Tyrell, na cobertura da empresa. Hoje, praticamente, todos têm, como uma ostentação do Estado de Direito Penal, como veremos ao final do texto. Em uma versão, Roy pede desculpas a Sebastian por assassiná-lo.

A moral da história é a necessidade de remover os replicantes amotinados sem o conhecimento da população. Há um certo "segredo de Estado" em não se revelar falhas na segurança.


Entre ficção e realidade

No caso desta análise, nossas preocupações e indagações recaem, portanto, sobre o direito à vida (fim). O filme Blade Runner: o caçador de andróides é nosso fio condutor, o meio que nos leva a pensar aquele fim. Porém, o direito à vida, contraditoriamente, traz a finitude. Mas, essa finitude, no caso dos replicantes teria um sentido especial: sua programação genética não permitia que vivessem mais do que quatro anos, justamente por serem mais fortes ou tão inteligentes do que seus programadores. Como os definia Tyrell, o dono da maior "empresa da vida", os replicantes não têm "experiência emocional": o implante de lembranças seria um amortecedor para as emoções. O passado é um ambiente aconchegante para as emoções.

Quanto à empresa Tyrell Corporation, que se poderia chamar perfeitamente de conglomerado da vida (como se só uma empresa e um Estado Gigante gerissem todos os recursos) também empregava um sentido muito especial e revelador para seus experimentos e criações genéticas: Mais humanos, do que os humanos. Porém, isto visava uma margem superior de aceitação e de vendagem de suas "máquinas genéticas": um modelo feminino programado para o sexo; um modelo masculino voltado à guerra e assim por diante. Rachael, por exemplo, tinha uma beleza clássica, aliciadora, segura de si, doce, inofensiva. Pris, como antípoda, apresentava uma beleza voluptuosa, ardente, perfeita, picante e torneada. Os replicantes imitavam os humanos e comiam e fumavam.

Há passagens instigantes ou intrigantes como uma cena em que passam de bicicleta cerca de uma dezena de orientais (ao menos parecem ser) — tal qual as bicicletas, também transitam carros típicos dos anos 60-70. Estariam "guardando tradições"? Em outra, quando Deckard vai à casa de Sebastian, na única cena de infração, ocorre um furto em seu carro, realizado por quatro anões ou, talvez, seres subdesenvolvidos pela miséria. Andam e pulam pela água, lama, divertindo-se com o objeto que retiraram do automóvel, como se fosse um brinquedo.

A grande ironia do filme é que nos replicantes revoltosos Nexus 6, ao saberem de sua "falha genética", com a contagem regressiva da morte aberta, passaram a lutar ou a buscar uma forma de retardar o "envelhecimento precoce", a finitude da vida. Em dado momento, Roy, o líder dos insurgentes, diz ao principal engenheiro genético da empresa ao dono do conglomerado, Tyrell: "Queremos mais vida". Isto é, queriam obstruir o mecanismo que lhes provocava "falência múltipla dos órgãos" [03]. Também é interessante notar que Tyrell era o gênio da biomecânica, sugerindo-se que fosse uma área da ciência superior à engenharia genética.

No mesmo contexto, J. F. Sebastian (o principal engenheiro genético pergunta de que eram capazes), queria uma demonstração e Pris, a replicante companheira de Roy ("um modelo criado para a satisfação sexual de clubes militares), diz: "Penso, Sebastian, logo existo". Ao que Roy reafirma: "Não somos computadores Sebastian, somos seres vivos". Os únicos amigos de Sebastian eram "brinquedos", autômatos que ele criava. Seu hobby era criar amigos artificiais.

Os outros replicantes caçados e mortos eram: Zhora – criada para um esquadrão de ataque rápido (Bryant a definia como A bela e a fera [04]); Leon – um soldado que conseguia carregar 200 kg de munição. Leon foi morto por Rachael, quando se preparava para "afundar os olhos" de Deckard, após este ter atirado pelas costas em Zhora (fato que a sua "consciência narradora" não desculparia).

No início do filme, Roy (o líder: "um modelo de combate com auto-suficiência máxima") e Leon conseguem chegar até um técnico subalterno da empresa Tyrell, responsável pelo "implante de olhos" nos replicantes e, depois de breve interrogatório, Roy também afunda seus olhos. Mas, antes da ação final, Roy "declama" ao técnico (um senhor de idade bem avançada): "Ardentes, os anjos caíram. Trovões ensurdecedores rolavam em suas praias, queimando no fogo de Orc". Roy faz poesias futuristas com o que sua visão alcançou, "espaço adentro".

Quando finalmente Roy consegue chegar até Tyrell, descobrindo que nada poderiam fazer para retardar sua morte ou finitude, aplica ao "pai" o mesmo tratamento: afundando-lhe os olhos. Mas, antes de matá-lo, beija-o na boca. É curioso notar como os replicantes matavam afundando os olhos de suas vítimas — numa metáfora para a "visão de mundo" que eles próprios nunca tiveram? Ou revela simplesmente o sadismo dos replicantes?

Os replicantes não usam armas, apenas seus dedos para a perfuração. A única exceção se dá com os tiros que Leon dá no inspetor Holden, logo no começo do filme, quando é perguntado sobre sua mãe. Sua resposta: "Vou lhe contar sobre minha mãe". Além dos tiros. O inspetor já havia dito na questão anterior, que Leon caminhava por um deserto e ali vira um jabuti de "cabeça para baixo". Leon deixava o jabuti arder no sol e não o ajudava a se desvirar. O próprio Holden já explicara a Leon que o teste deveria provocar respostas emocionais.

A grande ironia só se completaria levando-se em conta que Sebastian sofria da Síndrome de Matusalém, ou seja, "decrepitude precoce". A seguir-se o lema da empresa, é visível o drama da vida: a espera da morte. Contudo, tanto a Sebastian quanto aos insurgentes, bem se aplicava a verdade da vida proferida por Tyrell – no momento em que foi abordado por Roy (chamando-lhe de "Pai"): "Os mais brilhantes são os que se apagam mais cedo". Uma contradição da vida, sem dúvida, mas que se liga a outra: "Fiz coisas condenáveis" – diz Roy; "E outras extraordinárias" - completou Tyrell. Na edição de 1992, a legenda diz que Roy o chamou de "calhorda" e não de pai. Pouco antes da morte, Tyrell definira a morte como "fatos da vida" e chamara Roy de "o filho pródigo".

Ao som da música thriller de Vangelis, nas edições de 1982, há um texto narrativo que nos propõe uma entrada direta, sem rodeios, no cenário central do filme, no ano de 2019. Quando rodado e do lançamento da versão industrial de Hollywood, tratava-se de um futuro-remoto ou de um presente-futuro; hoje, após a edição final de 2007, trata-se de futuro-presente. Não poderia ser mais claro:

No início do século XXI, A Tyrell Corporation levou a evolução robótica até à fase Nexus – um ser virtualmente idêntico ao homem – conhecido como replicante. Os replicantes da Nexus 6 eram superiores em força e agilidade e no mínimo tão inteligentes quanto os engenheiros genéticos que os criaram. Os replicantes eram usados fora da Terra como escravos na arriscada exploração e colonização de outros planetas. Após um motim sangrento de uma equipe de combate Nexus 6, em uma colônia, os replicantes foram declarados ilegais na Terra – punição: morte. Esquadrões especiais da polícia – Unidades Caçadoras de Andróides – tinham ordens de atirar para matar quando detectassem qualquer replicante transgressor. Isso não era chamado de execução e sim retirada.

Deckard, o principal caçador de andróides, nas edições de 1982, aparece narrando a decepção consigo mesmo, após ouvir os anúncios do dirigível que incitava a busca do sucesso fora da Terra. Ele nos diz: "Ninguém coloca anúncio no jornal procurando por matadores. Essa era minha profissão. Ex-policial. Ex-Caçador de Andróides. Ex-matador". Na edição de 1992 já não há nem o texto inicial de apresentação do filme, como vimos acima. Mas, em compensação, o dirigível traz uma mensagem bastante esclarecedora sobre o capitalismo de extrema concentração de capitais e seus "objetivos ocultos":

"Este anúncio é uma cortesia de Shimago-Dominguez Corporation. Ajudando a América a entrar no novo mundo. Use seu novo amigo como criado pessoal ou ajuda prática incansável. O replicante humanóide feito sob medida e projetado geneticamente para atender às suas necessidades" (grifos nossos).

Poucos antes de ser morto, Eldon Tyrell está negociando ações e quando se encontra com Deckard diz que sua meta é o comércio e que todos os replicantes (inclusive Rachael) é só um experimento. Além desse "traço fixo", de 1982 para 1992, o corte conceitual vai do romantismo ao pragmatismo. Também não será o mundo todo a ser salvo, mas tão-só a América (leia-se EUA) que entrará no novo mundo.

De todo modo, na cena seguinte, Deckard é recrutado de sua aposentadoria e não lhe é dada nenhuma alternativa: "Quem não é da polícia é gentalha", lhe diz o capitão de polícia Bryant. O Blade Runner foi encontrado por Gaff (um policial japonês aficcionado pela tradição do origami) que utilizava a "linguagem das sarjetas" (City speak), numa mistura de japonês, espanhol, alemão, inglês e "o que mais se quisesse". Por sua vez, Bryant se referia aos replicantes como "bonecos" (Skin-jobs), o equivalente racista, nos EUA, ao se xingar "negros" de "crioulos".

As emoções descritas por Bryant foram: "ódio, amor, medo, raiva, inveja". Inveja de ser humano? Porém, é Sebastian (o projetista genético) quem sugere ter inveja de Roy e de Pris: "vocês são tão perfeitos". Com apenas 25 anos, Sebastian aparentava uma velhice muito avançada. Pris usou do artifício da sedução para chegar até Sebastian e convencê-lo a deixá-la entrar.

Quando chegam à delegacia, percorrendo uma cidade arranha-céus, o carro-nave se dirige ao "umbral de pouso". Deckard ocuparia o lugar de fatalmente ferido na aplicação do teste sobre replicantes: "o tempo de reação era importante". O teste que revelaria os replicantes era relativamente simples, pois, como ainda estavam desenvolvendo suas emoções, sentimentos de amor e de ódio, além de uma aguçada Inteligência Artificial (IA). Deckard saíra do serviço porque estava cheio da matança ("apesar de ser melhor isso do que ser vítima") e ainda diz, pela voz da consciência, como narrador: "Replicantes não deveriam ter sentimentos, nem caçadores de andróides". Ainda como "narrador de sua consciência", Deckard diz que "já tinha sentimentos por Rachael" (Raquel).

Nesta época, os animais eram praticamente todos artificiais e sugere-se que somente os milionários poderiam adquirir animais reais. Aliás, quando da aplicação do teste em Rachael, ela é direta ao dizer que receber objetos não-artificiais, como uma arteira de couro, era crime e que ela delataria a pessoa.

Rachael foi detectada pelo teste ao ser perguntada se comeria, num jantar, um prato à base de cachorro cozido. Em geral, eram necessárias de 30 a 40 perguntas para se saber se era replicante, mas no caso de Rachael foram precisas mais de 100. O teste Voight-Kampff foi assim descrito por Tyrell: "Dilatação capilar da chamada reação de enrubescimento. Flutuação da pupila. Dilatação involuntária da íris".

Em sua procura pelos replicantes, o policial-caçador utiliza-se de uma engenhosa decupagem de uma fotografia, também já sabendo que o "implante de lembranças" da infância e da família, vinha acompanhado de um punhado de fotos, para convencer os replicantes de que eram humanos. Mesmo que os replicantes já "nascessem adultos". Quando foi aplicar o teste na empresa, o próprio Tyrell lhe sugeriu que usasse a máquina em Rachael (Raquel) — ela ainda não sabia o que era, mas desconfiava. Deckard pergunta a Tyrell: "Como alguém não sabe o que é?".

Rachael, depois de descoberta pelo teste, procura Deckard em seu apartamento para dizer que era humana, porque tinha um foto de "sua mãe". Deckard lhe conta sonhos e lembranças que não eram dela, mas implantes das memórias da sobrinha de Tyrell — o caçador sabia que replicantes não tinham memórias e que as fotos eram todas forjadas (com exceção de uma: a que fizera uma decupagem para chegar até o paradeiro de Zhora: sua primeira vítima. Zhora foi localizada no Setor Quatro, Chinatown. Uma ironia com a própria colonização americana?

No diálogo irônico com Deckard, Rachael lhe pergunta se já havia eliminado um humano, por engano. Ele nega. Depois, entre humor e ironia, como que para demonstrar a inteligência e a sagacidade superiores dos replicantes, Rachael pergunta secamente a Deckard: "Você quer saber se lésbica ou replicante". Mais à frente, já no apartamento de Deckard, depois de Rachael salvar-lhe a vida, pergunta-lhe se havia aplicado o teste em si mesmo — ele adormecera e não ouvira. Outro momento dessa "inteligência maquínica superior", revelou-se quando Roy derrotou Tyrell no jogo de xadrez, no primeiro e último confronto entre ambos. Um fato de Sebastian conseguira uma única vez, ao longo de inúmeras batalhas.


O intransigente direito à vida

Era isso o que os revelava, além da inteligência e da sagacidade aguçadas, reagiam violentamente quando instigados em seu "lado emocional"; era seu ponto de desequilíbrio: provocava-se o "sentimento de maldade" e daí a instabilidade emocional. Apesar de bastante estimulados e fortes (como o afeto e amor que nutriam uns pelos outros: Roy beija Pris, já morta por Deckard, empurrando-lhe a ponta da língua para dentro da boca), os sentimentos eram incontrolados. Talvez fossem incontroláveis exatamente pela força que guardavam como "potências". De todo modo, os replicantes não eram capazes de "esconder esses sentimentos e emoções" — apesar de irônicos e do bom humor, estavam "procurando por metamorfoses", pela longevidade necessária para vivê-las e apreciá-las.

Desse modo, vemos que o lema estava correto ("Mais humanos, do que os humanos"), porque seu sistema límbico não lhes imprimira a marca nefasta do cinismo. A vida não lhes era indiferente, ainda que fossem "máquinas genéticas".

A par disso, o modelo de Estado Cientificista apresentado em todas as edições, aplicava-se em profundo desenvolvimento de ciência e tecnologia, mas também em sua correção (ou remoção, se não fosse possível utilizar seus engenhos na colonização de territórios, como escravos). A todo instante, os cidadãos de Los Angeles eram bombardeados por imagens e mensagens convidativas a tentar a sorte em colônias extra-terrestres: "Terras douradas para a exploração". O modelo de Estado, portanto, era um misto de Estado Penal e Estado Cientificista.


Diálogos de vida e morte

Roy segura um pombo branco na mão esquerda, a outra está perfurada por um prego, que ele próprio introduzira para "retardar" o retesar dos dedos e que lhe davam o sinal da morte iminente. Recua alguns passos e sala de um prédio a outro e é com esta mão perfurada e avariada que ele apanha Deckard, o caçador, e evita sua queda para a morte certa.

Diante de seu oponente e algoz "humano" (?) Roy lhe diz: "Viver com medo é uma experiência e tanto, não é? É o mesmo que ser escravo" (grifos nossos). Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam [descreve cenas de horror, de brutais combates em outras galáxias]. Vi a luz do farol cintilar no escuro no portal de Tannhüser. Todos esses tormentos se perderam no tempo como lágrimas na chuva. HORA DE MORRER" (grifos nossos). Leon, antes de ser abatido por Rachael, também pergunta a Deckard se não é horrível viver com medo. No fim, todos os seis replicantes insurretos estão mortos (dois foram eletrocutados), mas Deckard matou apenas as duas mulheres.

Roy brinca de gato e rato, numa contagem regressiva de 1 a 10, antes de ir atrás de Deckard. Mas, antes se pinta com o sangue de Pris, como se fosse uma pintura de guerra. Interrompe a contagem em oito, depois de uivar como um lobo caçador: as posições haviam sido invertidas. No meio da "caçada", Roy ainda demonstra humor (apesar de seus sistemas apresentarem falhas), quando passa a cabeça através de uma parede de azulejos quadrados, com aparência de preto e braço.

Por fim, o replicante, como que adormecendo, abaixa a cabeça e morre sentado na posição de Lótus, com as pernas entrelaçadas. Seguindo-se à inevitável e "programada" morte de Roy, Deckard percebeu o gesto humanista do andróide — aliás, em tudo superior a ele e a todo "o aparato estatal de repressão" que deveria dar segurança aos cidadãos. A exposição da "consciência narrativa" revelou seus pensamentos (em 1982 e 1992):

Eu não sei porque ele salvou a minha vida. Talvez naqueles momentos finais ele amou a vida mais do que nunca. Não apenas a vida dele, a vida de qualquer um. A minha vida. Tudo que ele queria era o mesmo que o resto de nós quer. De onde venho? Para onde vou? Quanto eu tempo tenho? E tudo que eu pude fazer era sentar ali e vê-lo morrer.

Na edição de 2007 não há esta narração. Mas, na cena seguinte, Deckard, exausto, com dois dedos quebrados, ainda houve do assessor japonês da polícia, referindo a Rachael, a replicante Nexus 6, mas não violenta, por quem se apaixonara: "Que pena que ela não viverá. Mas quem vive".

Em todas as versões, o caçador volta para pegar Rachael e fugir. Cuidadosamente, como um soldado, põe-se em guarda para entrar no apartamento e aí temos o suspense de se saber se ela ainda vive ou se já teria sido abatida: dormia tranqüilamente, com o rosto coberto. Ele a beija levemente no rosto e saem para pegar o "elevador inteligente" – ao transpor meio corredor, o pé de Deckard esbarra em um origami: era um unicórnio.

Nas edições de 1992 e de 2007, o mesmo cavalo branco de chifre na testa que lhe aparece em sonhos, deixado ali como um sinal, pelo policial oriental, incitando-lhe a dúvida de que também era replicante. Os replicantes tinham memórias implantadas de outras pessoas, como se fossem suas, para dar-lhes a sensação de passado, origem, filiação e pertencimento. Também vinham acompanhados de um kit de fotografias de famílias. E se o policial sabia de seu sonho, é porque lera em sua ficha. Neste sentido, por que o piano de Deckard estaria repleto de fotos? Quem sabe ao certo?

Mas, há uma mudança conceitual, se compararmos com as edições anteriores. Nas edições de 1982, Deckard foge com Rachael, por uma auto-estrada (para o norte?), longe das chuvas ácidas, enquanto sua consciência (como narrador) nos diz que havia conversado com Tyrell e que já sabia que Rachael não tinha o dispositivo que encurtava a "vida útil". Na saída do apartamento, Deckard também esbarra no origami mas, como ele não "sonhava" com o unicórnio, há apenas a sugestão de que Gaff estivera lá, mas que preservara a vida da moça. Nas edições de 1982, a Terra ainda tinha grandes áreas verdes e dias ensolarados. Antes da fuga, Deckard pergunta a Rachael se ela o ama e se cofia nele.

Deckard é replicante ou a vida é que é repleta de artificialidades? Deckard cede à libido de um homem solitário ou se apaixona por uma replicante que luta para obter um mínimo de "integridade emocional"? Ele se apaixona por alguém que quer ser humano?Por que, afinal tanta mortandade e crueldade?

Há uma metamorfose da caça em caçador, de andróides em humanos. Os replicantes morreram para provar sua luta por reconhecimento — neste caso, pelo reconhecimento do direito à vida.


2ª PARTE

Estado de Direito Penal

Utiliza-se muito a expressão Estado Penal para designar a crescente privatização do serviço de segurança pública. Como mais um dos negócios do capital globalizado, "presos extraditados aumentam a margem de lucro", presídios já nascem privatizados, mas financiados pelo Estado: são "pedágios de gente infratora, pagos pela sociedade civil".

Assim, se os investimentos se destinam a outros "setores sociais", também reflui significativamente o aporte que outrora fora devido ao Estado Social, criado nos anos de 1920. Todos sabem que o MENOR investimento nas áreas sociais implica, é óbvio, no MAIOR abandono das populações pobres e miseráveis. Portanto, se não é correto dizer que a pobreza por si só gera a violência, não é incorreto pensar que os sobreviventes da marginalidade social, logo se encontrarão, queiram ou não, com a marginalidade da lei.

Logo, com a fuga do Estado, cresce o "movimento lei e ordem", pedindo-se leis eficazes e ações exemplares e, lógico, penas duras como prisão perpétua ou de "antecipação da morte". Mas, ainda que seja fato que a omissão do Estado gera o crime, de todo tipo, vê-se igualmente o aumento do terror (do Estado e fora dele).

Como vimos, no Estado Penal ocorre a negação de uma função clássica do Estado Moderno: a segurança pública. A mesma segurança pública que justificou o discurso da soberania nacional, da necessidade da organização e da centralização política que protegesse o cidadão e fortalecesse o Estado. Esta "Razão de Estado" levou à expansão ultramarina e alimentou e alargou o capital e o território do próprio Estado-Nação.

Neste sentido, o que chamamos aqui de Estado de Direito Penal reúne o que há de pior no passado e no presente. A repressão, a tortura e a política do terror ocorrem, diariamente, com e sem conhecimento do Estado. A sociedade em parte é conivente, porque alimenta o discurso da "lei dura e da punição exemplar". Em São Paulo, por exemplo, como resposta ao terror, são instaladas dez mil câmeras de vigilância por mês.

Além da espoliação dos lucros do crime, que seria a base do Estado Penal, ainda se legaliza o uso, supervisionado pelo Estado, de medidas de exceção. Isto ocorre toda vez que o Estado de Direito se metamorfoseia em Estado de Exceção. Desta "consternação do direito", são exemplos clássicos: o patriotic act, editado depois do 11 de setembro, suspendendo direitos individuais, nos EUA; a prisão de Guantânamo, em Cuba, com "terroristas presos sem direito de defesa".

Ainda nos EUA, jovens de 16 anos são condenados à prisão perpétua, com mais 20, 25 anos (sic), em presídios de segurança máxima: chamados de Supermax. Esses jovens são denominados pelo Judiciário como "super-predadores", a exemplo do nosso Champinha. Na Inglaterra, prende-se um suspeito (preferencialmente acusado de terrorismo) por até quatro semanas, mesmo sem acusação formal.

Em 2008, a França vai usar o DNA como identificador e codificador de imigrantes (in)desejáveis, aproximando a realidade da ficção. A técnica deve se valer do chamado diagnóstico genético pré-implantatório (DPI), para futuramente também auxiliar na "detecção e seleção" de indivíduos que "sirvam ou que melhor contribuam" à França. A terapia genética descobriria (para prevenir) a formação de "indivíduos indesejáveis ao Estado e à segurança nacional" ou, então, selecionaria dentre os "melhores e mais aptos à produção".

No Brasil, o mais típico caso de Estado Penal é a lei de Crimes Hediondos, que desconsidera frontalmente a Constituição (a exceção se impõe ao direito); assim como uma declaração do Governo do Estado do Rio de Janeiro, de que uma vida em Copacabana vale mais do que outra da Rocinha ou da Coréia. Um morro chamado Coréia já diz tudo. Do mesmo modo, o Complexo do alemão é um "bairro de pobres sitiado", pelo contínuo processo de ocupação da polícia e dos militares – com o uso do "caveirão". Mas, esses dados nos ajudam a pensar que a criminalidade que se abate sobre "populações negras", pelo Brasil afora, é uma herança da escravidão, ou seja, um crime do Estado.

Em suma, o Estado de Direito Penal é só o emprego de meios próprios do Estado de Exceção ("direito de negação", suspensão de direitos fundamentais), além de subtrair-se às atividades inerentes ao Estado Democrático de Direito (saúde, educação), para atender aos anseios do neoliberalismo: privatização da segurança e do direito à vida. Na raspa do tacho, são simples reinvenções, re-nomeações modernas que procuram ofuscar o princípio que movia a Lei de Plenos Poderes aprovada por Hitler, no auge da Solução Final. A Solução Final não está em Blade Runner, mas parece um mal que não sossega, que nos procura ao longo de toda a história.

Curiosamente, os crimes menos punidos são os de omissão e de corrupção pública. Hoje, os "homens de má conduta" são tratados de outra forma, bem diferente, do que eram no passado, quando eram chamados de RACCA: "homem de má conduta". O termo era usado pelos hebreus que, com desprezo, repetiam a palavra escarrando e desviando a cabeça.


Considerações Finais

2008: a realidade vai copiar a ficção

Blade Runner trouxe o conceito de "obra aberta" para o cinema, uma vez que foi reeditado três vezes: uma versão para cinema internacional (1982) e uma versão do diretor (1992). Em dezembro de 2007, foi lançada uma terceira versão que está sendo considerada como definitiva e autorizada pelo diretor Ridley Scott, contendo cenas estendidas e efeitos especiais.

Na essência, Blade Runner opõem-se à catástrofe ética de outro filme de ficção, Laranja Mecânica, e sua inigualável insensibilidade e desprezo pelo Outro. Este é de 1971 e foi dirigido por Stanley Kubrick. O filme traz Alex como protagonista e líder de uma gangue que se diverte com a "ultraviolência, estupros e música clássica" (especialmente Beethoven). Seus crimes o levam à prisão e a um tratamento de reabilitação: como cobaia. Porém, no fim, o delinquente volta a ser o que sempre foi, superando o condicionamento recebido. Ironicamente, o enredo se desenrola em 2007.

Por contraste, Blade Runner é tido como crítica e antítese à banalização da violência, do sadismo. Aliás, numa das cenas finais, fica claro este embate entre "o caçador de andróides" e "o reconhecimento do humanismo": o direito à vida como aposta para o futuro. Quando o replicante Roy (o líder) segura pelas mãos, do alto de um prédio, o seu próprio matador (Harrisson Ford, no papel de Deckard) e, em seguida morre, o que faz é nos ensinar o humanismo. Apenas uma cena em que o replicante foi mais piedoso do que foi seu algoz e caçador, em todo o filme, nos faz pensar e lembrar que restam poucas coisas importantes e caras à humanidade (em 2007 ou 2019).

O mesmo sentido de humanização ("tornar-se humano") fora apresentado por Isaac Asimov em O homem bicentenário e suas três leis da robótica ou, se quisermos simplificar, sua crença na direção do bom senso. No romance, bem melhor do que o filme, o robô Andrew (no filme, interpretado por Robin Williams) quer deixar de ser coisa, objeto, mesmo que deixando a possível perfeição da máquina. O robô prefere os riscos e as incertezas da humanização, decorrente de sua "descoisificação", a uma suposta perfeição indiferente à dor do mundo. Andrew está na contramão da história.

Podemos aprender muitas coisas com a vida, com a realidade cotidiana – mas é uma pena que nem sempre se aprenda o básico: o próprio sentido da vida, a luta, a perseverança por uma destinação humana. Não só genericamente humana, mas substancialmente humana. O curioso e irônico, entretanto, é que muitas vezes aprendemos este sentido substancial da vida, não pela realidade (se nos massifica ou se é cruel demais com alguns), mas pela ficção. Quando, mais precisamente, a ficção é dotada de uma realidade que a vida já viu se esvaziar do que lhe fora anteriormente substancial. Ao menos para a maioria, o que se foi, mas que se luta desesperadamente para recuperar é um tipo de completude humanista. Ao menos para a minoria, esta é uma ânsia enorme e sufocante (se negada) de se tornar humano, substancialmente humano, e assim se completar na liberdade que o humanismo nos oferece.


Bibliografia

ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. Porto Alegre : L&PM, 1997.

TESTART, Jacques. Biotecnologia: O fantasma do apartheid genético.Le Monde Diplomatique. Em: http://diplo.uol.com.br/2007-12,a2077, 12/2007.


Notas

  1. http://www1.uol.com.br/diversao/afp/2004/08/25/ult32u9060.shl.
  2. Aqui, o robô quer deixar de ser coisa, objeto, mesmo que levado à perfeição possível a uma máquina, ou seja, prefere os riscos e incertezas da humanização, de sua própria "descoisificação".
  3. Numa referência a Decartes.
  4. Originalmente, do romance de >

Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Blade Runner. Estado de Direito Penal: o caso do Caçador de Andróides. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2865, 6 maio 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19052. Acesso em: 17 maio 2024.