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Relação jurídica entre religiosos e instituições religiosas

Relação jurídica entre religiosos e instituições religiosas

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Embora reconhecidamente isento de vínculo empregatício primordialmente, o trabalho religioso, mesmo que de caráter voluntário, tem que ser amparado pelo ordenamento jurídico vigente.

INTRODUÇÃO

O trabalho religioso sempre foi tido como decorrente de vocação religiosa, através do qual as filosofias religiosas são difundidas e os adeptos das religiões são cuidados com zelo, visando-se a manutenção e crescimento das instituições religiosas.

Diande disso, muitas pessoas sentem-se vocacionadas para atuarem nas diversas funções estabelecidas pelas várias instituições religiosas espalhadas pelo mundo.

Embora reconhecidamente isento de vínculo empregatício primordialmente, o trabalho religioso, mesmo que de caráter voluntário, tem que ser amparado pelo ordenamento jurídico vigente.

Por isso, ditas atividades vinculadas às religiões obrigatoriamente devem ser consideradas como "relações jurídicas de trabalho", cuja competência, por imposição da Emenda Constitucional n.º 45/2004, pertence à Justiça Especializada do Trabalho.

Entretanto, por vários motivos, muitas das atividades exercidas por membros de entidades religiosas estão enquadradas nos artigos 2.º e 3.º da CLT, porém travestidas de trabalho religioso vocacional, atividades estas que necessitam da análise criteriosa do Poder Judiciário.

Por fim, vocacionadas ou não, as diversas atividades religiosas também podem ser executadas na forma de "trabalho voluntário", nos moldes da Lei n.º 9.608/98.


1. RELAÇÃO JURÍDICA DE TRABALHO COMO REGRA GERAL

1.1. Vocação religiosa

É notório e incontestável o fato de que uma pessoa sinceramente dedicada à sua religião atua motivada por vocação. No Cristianismo a vocação religiosa é algo que se dá muita ênfase quando da escolha de pessoas para atuarem nos seus serviços religiosos. O teólogo e filósofo americano contemporâneo Russell Norman Champlin1 assim se expressa a respeito:

"Deus às vezes chama alguém para algum serviço ou ofício especial, como no caso do apostolado (Rom. 1:1), da pregação missionária (Atos 13:2; 16:10), do sacerdócio (Heb. 5:4), ou de alguma outra ocupação específica, mediante o que certos indivíduos terão de expressar-se e desenvolver-se espiritualmente (I Cor.7:20[...]".

Na Bíblia Sagrada, conforme as palavras do apóstolo Paulo de Tarso na sua Epístola escrita aos Efésios2, capítulo 4, versículos 7 e 11, as tarefas religiosas são tratadas como se fossem "dons divinos", in verbis:

"Mas a cada um de nós foi dada a graça segundo a medida do dom de Cristo. [...] E Ele a uns constituiu Apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e doutores [...]".

Mesmo sendo de caráter vocacional, o trabalho religioso pode ser remunerado, muito embora esta remuneração não venha caracterizar-se em uma maneira para se alcançar o enriquecimento, mas apenas para manutenção da própria vida. O próprio Jesus do Cristianismo havia dito o seguinte, no Evangelho de Lucas3, capítulo 10, versículo 7:

"[...] porque o operário é digno da sua recompensa".

Seguindo o mesmo entendimento, o já citado apóstolo Paulo de Tarso ratifica as palavras de seu mestre Jesus, ao tratar do trabalho religioso vocacionado, na sua primeira Epístola escrita a Timóteo4, capítulo 5, versículos 18, dizendo:

"[...] o operário é digno de sua paga".

Ao comentar as palavras do referido apóstolo Paulo de Tarso no texto bíblico acima, o teólogo americano Merrill Frederick Unger5 expressou-se da seguinte maneira:

"[...] os anciãos que ensinam (pastores) devem ser considerados dignos de "honra em dobro" – honra da posição e suporte financeiro [...]".

Ademais, a tendência jurisprudencial pátria é no sentido de reconhecer que os valores recebidos pelos religiosos, decorrentes da dedicação às atividades religiosas, são auxílios financeiros necessários à subsistência do religioso e sua família, como se exemplifica a seguir:

"RELAÇÃO DE EMPREGO - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS RELIGIOSOS - INEXISTÊNCIA. Não gera vínculo de emprego entre as partes a prestação de serviços na qualidade de pastor, sem qualquer interesse econômico. Nesta hipótese, a entrega de valores mensais não constitui salário, mas mera ajuda de custo para a subsistência do religioso e de sua família, de modo a possibilitar maior dedicação ao seu ofício de difusão e fortalecimento da fé que professa. Recurso Ordinário que se nega provimento" (BRASIL. TRT da 3.ª Região - 2.ª Turma. RO 17973/98. Relator: Juiz Eduardo Augusto Lobato. Publicado no DJMG em 02/07/1999).

A doutrina jurídica brasileira também segue o entendimento, praticamente unânime, de que o trabalho religioso vocacional não gera vínculo empregatício, devendo ser considerado como instrumento de assistência espiritual e divulgação da fé, não podendo, desta forma, ser avaliado economicamente, conforme se verifica pela citação da professora Alice Monteiro e Barros6 a seguir transcrita

"O trabalho de cunho religioso não constitui objeto de um contrato de emprego, pois sendo destinado à assistência espiritual e à divulgação da fé, ele não é avaliável economicamente. Ademais, nos serviços religiosos prestados ao ente eclesiástico, não há interesses distintos ou opostos, capazes de configurar o contrato; as pessoas que os executam, o fazem como membros da mesma comunidade, dando um testemunho de generosidade, em nome de sua fé. Tampouco se pode falar em obrigação das partes, pois, do ponto de vista técnico, aquela é um vínculo que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa em proveito de outrem. Esse constrangimento não existe no tocante aos deveres da religião, aos quais as pessoas aderem, espontaneamente, imbuídas do espírito de fé".

A jurisprudência dominante no Brasil também não reconhece vínculo empregatício entre religioso e entidade religiosa, quando exercida por impulso vocacional, como se pode verificar pelas reiteradas decisões do TST e Tribunais Regionais Trabalhistas brasileiros sobre o assunto, conforme exemplos a seguir transcritos:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO – PASTOR EVANGÉLICO - RELAÇÃO DE EMPREGO - NÃO-CONFIGURAÇÃO - REEXAME DE PROVA VEDADO PELA SÚMULA 126 DO TST.O vínculo que une o pastor à sua igreja é de natureza religiosa e vocacional, relacionado à resposta a uma chamada interior e não ao intuito de percepção de remuneração terrena. A subordinação existente é de índole eclesiástica, e não empregatícia, e a retribuição percebida diz respeito exclusivamente ao necessário para a manutenção do religioso. Apenas no caso de desvirtuamento da própria instituição religiosa, buscando lucrar com a palavra de Deus, é que se poderia enquadrar a igreja evangélica como empresa e o pastor como empregado. No entanto, somente mediante o reexame da prova poder-se-ia concluir nesse sentido, o que não se admite em recurso de revista, nos termos da Súmula 126 do TST, pois as premissas fáticas assentadas pelo TRT revelam que a função exercida pelo Reclamante estava estritamente ligada à intimidade da consciência religiosa e à assistência espiritual desde a adesão à função de pastor por livre manifestação de vontade, não sendo hipótese de vínculo de emprego. Agravo de instrumento desprovido". (BRASIL. TST - 7.ª Turma. AIRR-740/2005-024-05-40.6, Relator: Ministro-Relator Ives Gandra Martins Filho. 27.08.2008).

"VÍNCULO DE EMPREGO. ATIVIDADE RELIGIOSA. O exercício de atividade religiosa diretamente vinculada aos fins da Igreja não dá ensejo ao reconhecimento de vínculo de emprego, nos termos do artigo 3º da CLT. Recurso do reclamante a que se nega provimento" (BRASIL. TRT da 4.ª Região. RO 01139-2004-101-04-00-5. Relator: Juiz João Alfredo B. A. de Miranda. Publicado no DORGS em 02/06/2006).

"PASTOR EVANGÉLICO - VÍNCÚLO EMPREGATÍCIO NÃO CARACTERIZADO. A função de PASTOR evangélico prende-se à vocação religiosa não devendo ser confundida com opção profissional geradora de vínculo empregatício. Recurso Ordinário que se nega provimento" (BRASIL. TRT/SP - 8.ª Turma. RO n.º 02286200704102007. Acórdão n.º 20090859248. Relatora: Juíza Lilian Lygia Ortega Mazzeu. Publicado em 20-10-2009).

"RELAÇÃO DE EMPREGO. PASTOR. Não é empregado o pastor que possui autonomia no modo de pregar o evangelho e executa atribuições que o identificam como mandatário da igreja" (BRASIL. TRT da 12.ª Região – 1.ª Turma. RO 04322-2007-039-12-00-6. Relatora: Juíza Águeda Maria Lavorato Pereira. 29 de janeiro de 2009).

"RELAÇÃO DE EMPREGO - IGREJA EVANGÉLICA - PASTOR. Em regra, o trabalho de natureza espiritual-religiosa não é abrangido pelo contrato de trabalho, tendo em vista as peculiaridades que envolvem a leitura da palavra evangélica e a pregação. Quando os serviços prestados pela pessoa física permanecem na esfera da atividade religiosa, sem uma penetração mais profunda na ocupação econômica, impossível se torna a sua inserção no eixo secundário ou periférico da Igreja. Embora exista no exercício das atividades do pastor um esforço psico-físico, o objeto da obrigação do prestador de serviços não se caracteriza como uma obrigação de fazer típica ou até mesmo atípica da relação de emprego. Demonstrado, pela prova oral, que o trabalho desenvolvido estava relacionado à evangelização e funções pastorais de aconselhamento e pregação, a relação havida entre as partes não era a de emprego, eis que vinculadas à profissão de fé. O contrato de trabalho caracteriza-se pela reunião de pressupostos (elementos fático-jurídicos) assim como de requisitos (elementos jurídico-formais) previstos nos artigos 2º, 3º e 442, caput, da CLT, e no artigo 7º, inciso XXXIII da Constituição Federal, o que não ocorreu in casu" (BRASIL. TRT da 3.ª Região – 4.ª Turma. RO 01125-2005-097-03-00-3. Relator: Juiz Fernando Luiz Gonçalves Rios Neto. Publicado em 26-8-2006).

1.2. Relação jurídica

Durante o passar do tempo o desenvolvimento das religiões as conduziu a formação de instituições protegidas pelos ordenamentos jurídicos dos povos. Quando institucionalizadas, as religiões passam a ser submetidas às normas jurídicas onde estão estabelecidas. Dessa forma, o relacionamento existente entre religiosos e instituições religiosas, por ser uma relação social, também deve ser protegido pelo Direito, pois há, indubitavelmente, uma "relação jurídica" em questão.

A relação jurídica sempre foi e sempre será alvo de estudos e pesquisas jurídicas, pois, como bem observa o jurista Miguel Reale7, sua definição é muito importante para a ciência do Direito:

"Um dos elementos essenciais da experiência jurídica é representado pela relação jurídica, cujo conceito é fundamental na Ciência do Direito, tendo sido estabelecido, de maneira mais clara, por F. C. Savigny, no decorrer do século passado. Alguns juristas sustentam mesmo que a Ciência do Direito se apresentou não apenas como ciência autônoma, mas como ciência que já atingira a maturidade, no instante em que Savigny situou de maneira precisa o conceito de relação jurídica. Jhering chegou a dizer que a relação jurídica está para a Ciência do Direito como o alfabeto está para a palavra. Muito embora o conceito de "relação jurídica" não desempenha, hoje em dia, o mesmo papel que lhe foi conferido, até bem pouco tempo, dado o reconhecimento de outras categorias jurídicas não menos relevantes, não deixa ela de ser um tema básico da Teoria Geral do Direito. Todas as ciências implicam relações. O químico, o físico, o astrônomo estudam, indiscutivelmente, relações entre fatos antecedentes, conseqüentes ou, então, concomitantes. Era, pois, preciso delimitar o campo das relações que pertencem propriamente ao domínio da jurisprudência. Esse campo, uma vez delimitado, importa, ipso facto, na delimitação de um objeto próprio, que permite a caracterização da Jurisprudência como uma ciência inconfundível com qualquer outra, mesmo com aquelas que mais lhe são afins. Que devemos entender pela "relação jurídica"? Em primeiro lugar, trata-se de uma espécie de relação social. Os homens visando à obtenção de fins diversos e múltiplos, entram em contato uns com os outros".

As relações jurídicas, como consequência do relacionamento social, dizem respeito aos resultados da conduta do ser humano em sociedade, entendimento este seguido por muitos doutrinadores importantes, como a jurista Maria Helena Diniz8 que assim já se expressou:

"As normas de direito regulam comportamentos humanos dentro da sociedade. Isto é assim porque o homem, na vida social, está sempre em interação, influenciando a conduta de outrem, o que dá origem as relações sociais que, disciplinadas por normas jurídicas, transformam-se em relações de direito".

Face aos argumentos acima, pode-se concluir que as tarefas religiosas devem ser enquadradas como relações jurídicas, cujo tipo será tratado a seguir (relação de trabalho), pois decorrentes do relacionamento social na esfera religiosa.

1.3. Relação de trabalho

Dentre a vasta lista de relações jurídicas existentes no nosso ordenamento jurídico, importante que seja destacada, por ser imprescindível à presente pesquisa, a "relação de trabalho", que sempre fez parte dos tratados de Direito do Trabalho, especialmente dos escritores mais renomados. A ideia dominante na doutrina pátria é que a relação de trabalho é o gênero, do qual fazem parte muitas relações trabalhistas específicas, como a relação de emprego, por exemplo. Mozart Victor Russomano9 há muito tempo já definia a relação de trabalho da seguinte maneira:

"A relação de trabalho é o gênero, do qual a relação de emprego é espécie. Por outras palavras: a relação de emprego, sempre, é relação de trabalho; mas, nem toda relação de trabalho é relação de emprego, como ocorre, v. gr.,com os trabalhadores autônomos (profissionais liberais, empreitadas, locações de serviços, etc.)".

No mesmo sentido, o jurista Maurício Godinho Delgado10 discorre atualmente sobre o mesmo tema:

"A Ciência do Direito enxerga clara distinção entre relação de trabalho e relação de emprego. A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual".

Na mesma linha de pensamento, Délio Maranhão11 assevera:

"[...] na sociedade, distinguem-se, nitidamente, dois grandes ramos de atividade ligada à prestação de trabalho: trabalho subordinado e trabalho autônomo. A expressão "contrato de trabalho" designa um gênero muito amplo, que compreende todo contrato pelo qual uma pessoa se obriga a uma prestação de trabalho em favor de outra [...]".

A relação de trabalho no Brasil só passou a ser alvo de maior atenção após o advento da Emenda Constitucional n.º 45/2004, que ampliou materialmente a competência da Justiça do Trabalho, fazendo constar na Carta Magna12, em seu artigo 114, inciso I, as seguintes expressões:

"Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".

Após a ampliação da competência, a Justiça Especializada do Trabalho passou a processar e julgar as ações oriundas de qualquer tipo de relação de trabalho, observando-se, entretanto, que esta nova competência abrange somente as prestações de labor de trabalhador como pessoa natural, cuja definição, segundo o jurista Manoel Alonso Olea13, é a seguinte:

"O trabalhador é a parte que assume a obrigação contratual de ceder os resultados de seu trabalho à outra parte. Já se viu como essa cessão implica na cessão do próprio trabalho e como, na medida em que o trabalho é uma emanação da própria pessoa do trabalhador, esta fica envolvida e comprometida na prestação. Sendo tal cessão onerosa, o trabalhador adquire contratualmente o direito a uma contraprestação da outra parte, como paga ou retribuição de seu trabalho".

Diante de todas as considerações expostas até agora, pode-se afirmar que, independentemente da existência ou não de vínculo empregatício, a relação jurídica que vincula religiosos às instituições religiosas deve ser considerada como sendo uma "relação de trabalho" e, consequentemente, protegida pelo ordenamento jurídico como qualquer outra relação jurídica existente.

Ora, sendo uma relação de trabalho, qualquer discussão jurídica a respeito das atividades exercidas por religiosos em razão da sua vocação, vinculadas às suas instituições religiosas, devem ser levadas à apreciação da Justiça do Trabalho, por força da já mencionada Emenda Constitucional n.º 45/2004.

Este entendimento foi ratificado pelo STJ – Superior Tribunal de Justiça no ano de 2007, em uma decisão unânime nos autos de um conflito de competência oriundo do estado de Santa Catarina, onde a Justiça Comum Estadual da comarca de Tijucas declinou da competência em favor da Justiça do Trabalho, em razão de uma ação onde um pastor evangélico pleiteava indenizações decorrentes da relação jurídica havida com sua igreja, declarando o seguinte:

"CONFLITO DE COMPETÊNCIA. IGREJA E PASTOR. SERVIÇOS PRESTADOS. EXCLUSÃO SUMÁRIA. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO. - A competência em razão da matéria é definida em razão do pedido e da causa de pedir declinadas na inicial. - Se o pedido formulado pelo autor, pastor em igreja evangélica, é de indenização pelos serviços prestados, a competência é da Justiça do Trabalho" (BRASIL. STJ. Conflito de Competência n.º 88.999/SC. Registro 2007/0197283-0. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. 14/11/2007).

Em suas razões de voto nos autos do Conflito de Competência acima mencionado, onde o juízo suscitante foi a 1.ª Vara do Trabalho de Balneário Camboriú, SC, o ministro-relator Humberto Gomes de Barros confirmou o entendimento de que a relação que une religiosos às suas instituições religiosas é, indubitavelmente, uma relação de trabalho, amparada pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, in verbis:

"O autor pretende haver indenização pelos serviços prestados como pastor e por ter sido sumariamente excluído da igreja ré. Embora a causa de pedir e o pedido não se fundem em suposto reconhecimento de vínculo empregatício, nem haja pedido de verbas trabalhistas, o que se pretende é obter retribuição pecuniária pelo tempo que o autor, pastor de igreja evangélica, dedicou à causa da igreja. Essa relação, depois da EC 45/2004, passou a determinar a competência da Justiça do Trabalho. Declaro, por isso, competente o Juízo da 1ª Vara do Trabalho de Balneário Camboriú-SC".

Como se pode perceber, a decisão do STJ foi no sentido de tão somente reconhecer a relação de trabalho havida entre o pastor e a corporação religiosa a que fazia parte, lançando a competência sobre a Justiça do Trabalho. O Exmo. ministro Massami Uyeda, declarando seu voto que acompanhou o voto do relator, expressou-se da seguinte forma:

"Sra. Presidente, entendi perfeitamente a explicação de V. Exa., porque nos debates se ampliou essa competência da Justiça do Trabalho. Então, quando se fala "(...) as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho" não se trata de relação empregatícia, mas de trabalho, que compõe a relação empregatícia e todas as prestações de serviço. Acompanho o voto do Sr. Ministro Relator, declarando competente o Juízo suscitante".


2. RELAÇÃO DE TRABALHO RELIGIOSO COM VÍNCULO EMPREGATÍCIO

Embora a tendência da doutrina e da jurisprudência atual seja o reconhecimento da inexistência de vínculo empregatício entre as relações trabalhistas havidas entre religiosos e instituições religiosas, duas podem ser as possibilidades de reconhecimento de trabalho subordinado nos moldes do artigo 3.º da CLT. A primeira, quando os trabalhos realizados por religiosos estiverem comprovadamente fora da esfera vocacional religiosa propriamente dita, que é a prestação de auxílio espiritual, a assistência a comunidade nos seus anseios, a dedicação ao estudo religioso e a pregação dirigida aos fiéis, certamente para que sejam evitados os encargos trabalhistas e fiscais decorrentes de atividades que geram vínculo empregatício. A segunda, quando o trabalho religioso vocacional é desvirtuado e estiver ocultando os verdadeiros interesses da corporação religiosa, que é o enriquecimento ilícito com a formação de grandes empreendimentos mercantis, onde os clérigos não passam instrumentos de mercantilização da fé. Seguem abaixo maiores detalhes.

2.1. Atividades fora da esfera vocacional religiosa

Neste primeiro caso, o vínculo empregatício decorre das atividades exercidas pelos religiosos que fogem das atividades vocacionadas, predominantes de uma entidade religiosa, que podem ser resumidas no estudo, divulgação da fé e assistência espiritual aos adeptos. Muitas podem ser estas atividades fora da esfera vocacional religiosa, tais como: serviços gerais, docência, música, administração, secretariado, serviços de escritório, tesouraria, etc. Muitas destas atividades podem estar ocultas por trás de títulos ministeriais religiosos, certamente para se evitar os ônus patronais que recaem sobre as atividades subordinadas amparadas pela CLT.

No TRT da 5.ª Região existe precedente jurisprudencial que reconheceu vínculo empregatício em caso de pastor evangélico que exercia serviços gerais na sua igreja, deixando de se dedicar aos assuntos diretos da confissão religiosa, como se pode ver a seguir:

"EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO EMPREGATÍCIA – CUMULAÇÃO DA FUNÇÃO DE PASTOR COM A DE SERVIÇOS GERAIS - O trabalho desenvolvido pelos chamados Pastores de uma comunidade religiosa não pode ser enquadrado como caracterizador de uma relação empregatícia, nos moldes delimitados pelo art. 3º da CLT, eis que a atividade predominante desses pastores é o estudo religioso e a pregação dirigida aos fiéis que buscam conforto na mesma doutrina. No caso, entretanto, houve a cumulação da atividade religiosa com a de serviços gerais, o que descaracteriza o trabalho de cunho filantrópico e impõe o reconhecimento da relação de emprego" (BRASIL. TRT da 5.ª Região - 1.ª Turma. Acórdão n.º 4160/08. Relatora: Desembargadora Marama Carneiro. 03 de março de 2008).

No discorrer de seu voto, a desembargadora relatora assim se justificou:

"[...] O autor, na peça vestibular, afirma que foi admitido como "Auxiliar de Serviços Gerais", executando tarefas de vigilante, pintor de parede, varredor, carregador de caminhão, lavador de sanitários, faxineiro e vendedor de revistas e do jornal "Folha Universal" [...]".

O seguinte julgado demonstra o reconhecimento de vínculo empregatício de religiosa que atuava em entidade hospitalar, ligada à instituição religiosa a que fazia parte:

"TRABALHO PASTORAL EM ENTIDADE HOSPITALAR - VÍNCULO DE EMPREGO - CONFIGURAÇÃO. A única e importante característica distintiva entre um autônomo e um empregado encontra-se na avaliação da existência de liberdade na prestação do trabalho. Em ambas as situações há trabalho pessoal, continuado, mediante retribuição e fiscalizado, em maior ou menor grau. De modo que a diferenciação somente pode ser feita, sobremaneira, na amplitude de autonomia com que o trabalho é prestado. Nesta senda, como a irmã diaconisa reclamante foi inserida numa estrutura empresarial para prestar trabalho, sendo este dirigido e controlado por um pastor com poderes delegados pela própria empresa. Identificam-se as circunstâncias fáticas delineadas pelos artigos 2º e 3º da CLT, de modo que a relação encontrada deve ser definida como de emprego. Razões que levam à manutenção do julgado" (BRASIL. TRT da 4.ª Região. RO 00718-2005-019-04-00-1. Relator: Juiz Marcelo Gonçalves de Oliveira. Publicado em 8.11.2007).

Uma das atividades exercidas mais frequentemente por religiosos na atualidade, que foge daquelas funções religiosas predominantemente básicas da divulgação da fé, é a de músico, sendo que já existem precedentes jurisprudenciais a respeito, conforme demonstra o seguinte aresto:

"PASTOR – CONTRATAÇÃO TAMBÉM COMO MÚSICO – VÍNCULO DE EMPREGO – POSSIBILIDADE. A atividade de gravação de CD’s em estúdios da igreja não se insere no espectro das funções eclesiásticas, razão pela qual, uma vez caracterizados os requisitos do art. 3º da CLT, não há obstáculo ao reconhecimento de vínculo de emprego entre o pastor e sua igreja no trabalho como músico" (BRASIL. TRT da 9.ª Região. ACO 08298 – 2004. Relatora: Juíza Sueli Gil El-Rafihi. Publicado no DJPR em 14/05/2005).

Em situação semelhante, o colendo TST, em um de seus acórdãos, fez menção de uma decisão prolatada pelo TRT da 5.ª Região que manteve a decisão de primeiro grau em uma ação onde um religioso desempenhava atividade de músico, função esta dissociada daquelas assenciais da igreja, in verbis:

"[...] Somado às razões já expostas, vale registrar que a função desempenhada pelo Reclamante, qual seja, a de músico, embora colabore com a divulgação do trabalho da igreja, na medida em que torna mais atrativos os seus cultos, não se encontra necessariamente localizada no âmbito das atividades essenciais da igreja, senão por via indireta e remota: não se cuida de uma atividade vocacionada pela fé, mas com o nítido propósito de venda da energia de trabalho, com a finalidade de garantir a subsistência. Considerando todas as razões expostas, e que Reclamada, detentora do ônus da prova quanto ao fato em controvérsia, não se desvencilhou do ônus de comprovar que a relação se deu a título jurídico diverso do empregatício, a solução não deve ser outra senão o reconhecimento da relação de emprego, e por conseqüência lógica, o acolhimento dos pedidos..." (BRASIL. TST – 6.ª Turma. Acórdão TST-AIRR-45140-86.2008.5.05.0010, Relator: Ministro Aloysio Corrêa da Veiga. 17/03/2010).

Não se pode olvidar, porém, que uma entidade religiosa pode contratar o religioso para atuar paralelamente em atividades fora do contexto vocacional propriamente dito, como no caso do religioso exercer, além de suas atividades religiosas vocacionadas, uma atividade de educador, conforme se pode verificar em uma decisão lavrada pelos TRT da 6.ª Região, a seguir transcrita:

"EMENTA: MEMBRO DE ENTIDADE RELIGIOSA - VÍNCULO EMPREGATÍCIO: A sociedade religiosa é pessoa jurídica de direito privado, nos termos do art.16 do Código Civil, podendo, evidentemente, celebrar contrato de trabalho. O próprio membro da congregação (padres e freiras) pode celebrar contrato de trabalho com a congregação a que pertença como no caso de atuar como professor da entidade..." (BRASIL. TRT da 6.ª Região - 1.ª Turma. RO 4574/00. Relator: Juiz Marco Aurélio Medeiros Lima. 06.12.2000).

Como se verifica por todo o exposto, muitas podem ser as atividades religiosas que se enquadram nos moldes do artigo 3.º da CLT, mesmo que exercidas por religiosos vocacionados. Porém, estas atividades devem ser tratadas de maneira diferenciada daqueles decorrentes do trabalho religioso vocacional e reconhecidas como executadas com vínculo empregatício.

2.2. A desvirtuação do trabalho religioso vocacional

A segunda possibilidade da realização de atividades religiosas com vínculo empregatício diz respeito à desvirtuação do trabalho religioso, pois não se pode fechar os olhos para as possíveis deturpações no exercício das atividades religiosas, haja vista que muitas vezes o vínculo empregatício pode estar travestido de atividade de cunho religioso vocacional, resultado do desejo de locupletamento por parte dos formadores de instituições religiosas. Esta desvirtuação da religião tem proporcionado a criação de entidades religiosas com intenções mercadológicas, com oferecimento de oportunidades de trabalho, garantia de ganhos financeiros atrativos e crescimento na sua hierarquia. Roberto Fragale Filho14 bem observa esta possibilidade dizendo o seguinte:

"Verifica-se, portanto, que a expansão religiosa, em particular dos evangélicos, decorre de um processo de inserção mercadológica, o qual transforma a fé em produto a ser adquirido em velhos cinemas, agora convertidos em templos religiosos. Assim, nesta competição por nichos de mercado, nada mais natural que tais igrejas apresentem uma organização interna empresarial, exigindo de seus pastores lucro e produtividade, além de oferecerem vantagens indiretas, tais como moradia, alimentação, seguro saúde, veículo e telefone celular. A própria carreira eclesiástica, em tais igrejas, ganha ares de ascensão funcional: obreiro, presbítero, pastor, bispo". 

O reconhecimento da desvirtuação das atividades religiosas tem sido alvo de decisões nos tribunais trabalhistas brasileiros, como é o caso do TRT da 11.ª Região e do TRT da 9.ª Região, conforme as decisões abaixo transcritas, respectivamente:

"VÍNCULO EMPREGATÍCIO – CARACTERIZAÇÃO – PASTOR EVANGÉLICO. Em princípio, a função de pastor evangélico é incompatível com a relação de emprego, pois visa a atividades de natureza espiritual e não profissional. Porem, quando desvirtuada passa a submeter-se à tipificação legal. Provado o trabalho do reclamante de forma pessoal, continua, subordinada e mediante retribuição pecuniária, tem-se por caracterizado o relacionamento empregatício nos moldes do art. 3º da CLT " (BRASIL. TRT da 11.ª Região. RO – 27889/2002-002-11-00. Relator: Juiz Eduardo Barbosa Penna Ribeiro. Publicado no DJAM em 10/12/2003).

"RELAÇÃO DE EMPREGO – PASTOR EVANGÉLICO – Na atualidade, em que a expansão da religiosidade não se limita a um fim exclusivo, a função do pastor supera essa fronteira natural, pela necessidade de verdadeiro espírito empreendedor, dentro de uma organização empresarial moderna em que as igrejas pentecostais transformam-se, com exigência constante de lucro e produtividade dos pastores que ajudam a construir verdadeiros impérios, circunstância que retira, a mais não poder, o espírito de gratuidade que norteava essas relações, anteriormente. Recebendo o pastor pelos serviços prestados, inclusive aqueles que escapam aos limites da religiosidade, é razoável concluir que as relações entre pastor e igrejas às quais serve configuram, ao exato teor do art. 3º da CLT, vínculo de emprego, que resta, nesta oportunidade, reconhecido" (BRASIL. TRT da 9.ª Região. RO 6939/2001–12514/2002. Relator: Juiz Ney Jose de Freitas. €€DJ-PR 03.06.2002).

O próprio colendo TST já decidiu no sentido de reconhecer uma igreja evangélica desvirtuada, buscando lucrar com a pregação de sua fé, colocando-a no mesmo nível que as empresas desejosas por lucros, conforme registra o seguinte acórdão:

"Apenas no caso de desvirtuamento da própria instituição religiosa, buscando lucrar com a palavra de Deus, é que se poderia enquadrar a igreja evangélica como empresa e o pastor como empregado [...]" (BRASIL. TST - 4.ª Turma. AIRR 3652-2002-900-05-00. Relator: Ministro Ives Gandra Martins Filho, DO 09-05-2003).

A mercantilização da fé tem crescido assustadoramente no Brasil, proporcionando a criação de verdadeiras "empresas religiosas", camufladas de instituições religiosas sérias, motivadas pela ambição de pessoas que visualizam nelas uma fonte de lucro fácil e isento de impostos. Por este motivo, o Estado não pode fechar os olhos para esta deturpação da fé, devendo agir com rigor, mormente o Poder Judiciário quando invocado.

2.3. A necessidade da presença dos requisitos do artigo 3.º da CLT

Em todas as possibilidades acima, onde podem ser reconhecidos vínculos empregatícios nas atividades exercidas por religiosos em instituições religiosas, obrigatoriamente devem estar presentes os requisitos contidos no artigo 3.º da CLT15, quais sejam: trabalhador pessoa física, pessoalidade, não-eventualidade, onerosidade e subordinação. O mencionado artigo legal diz o seguinte:

"Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário".

É importante mencionar que os requisitos acima mencionados devem ser cumulativos, para que seja configurado o vínculo empregatício em cada caso concreto, como bem demonstram os arestos jurisprudenciais abaixo:

"VÍNCULO DE EMPREGO. REQUISITOS. ARTIGO 3.º DA CLT. Para caracterização de vínculo de emprego, mister que fiquem comprovados os requisitos do artigo 3.º da CLT. Se dos elementos de prova colhidos nos autos, apreciados em seu conjunto, não se pode concluir que tenha havido onerosidade (pagamento de salários pelo reclamado, ou pelo menos pactuação neste sentido, em contrapartida ao labor obreiro), subordinação (submissão do reclamante ao poder diretivo do reclamado na prestação laboral), habitualidade (prestação de trabalho ineventual, considerando a atividade-fim empreendida pelo réu) e pessoalidade (prestação de trabalho intuitu personae), há que se afastar a pretensão autoral" (BRASIL. TST -2.ª Turma. AIRR-1153/2007-005-10-40.0. Relator: Ministro Vantuil Abdala. 26/08/2009).

"VÍNCULO EMPREGATÍCIO. CONFIGURAÇÃO. REQUISITOS DO ART. 3°

DA CLT - A configuração dos requisitos estabelecidos pelo art. 3° da CLT

deve ser cumulativa e, uma vez atendidos, é devido o reconhecimento do

vínculo empregatício pretendido pelo autor" (BRASIL. TRT da 14.ª Região - 1.ª Turma, RO 00131.2008.403.14.00-8, Relatora: Juíza Vania Maria da Rocha Abensur. 25/06/2008).

Maurício Godinho Delgado16 discorre a respeito desse assunto da seguinte forma:

"De fato, a relação empregatícia, enquanto fenômeno sóciojurídico, resulta da síntese de um diversificado conjunto de fatores (ou elementos) reunidos em um dado contexto social ou interpessoal. Desse modo, o fenômeno sóciojurídico da releção de emprego deriva da conjugação de certos elementos inarredáveis (elementos fático-jurídicos), sem os quais não se configura na mencionada relação. Os elementos fático-jurídicos componentes da relação de emprego são cinco: a) prestação de trabalho por pessoa física a um tomador qualquer; b) prestação efetuada com pessoalidade pelo trabalhador; c) também efetuada com não-eventualidade; d) efetuada ainda sob subordinação ao tomador de services; e) prestação de trabalho efetuada com onerosidade".

Sem se fazer necessário discorrer de forma abrangente sobre o requisito "pessoa física" do trabalhador, por ser óbvia a sua existência na atividade religiosa, objeto deste artigo, observa-se que a "pessoalidade" é aquele requisito que gera o vínculo de confiança entre empregador e empregado, vínculo este de ordem moral e psicológica, que impõe a necessidade de que a prestação do trabalho religioso tenha efetivo caráter de infungibilidade (impossibilidade de substituição), sendo que o prestador dos serviços religiosos não pode se fazer substituir intermitentemente por outro trabalhador, não se levando em conta as eventuais substituições legais ou consentidas pelo tomador dos serviços.

Segundo Orlando Gomes e Elson Gottschalk17 a pessoalidade pode ser definida da seguinte maneira: 

"A pessoalidade é uma das notas típicas da prestação de trabalho. O contrato de trabalho origina para o empregado uma obrigação de fazer (faciendi necessitas) consistente, precisamente, na prestação do serviço convencionado pelas partes. Esta obrigação não é fungível, isto é, não pode ser satisfeita por outrem, mas tão-somente por quem a contraiu. Daí dizer-se, em relação ao empregado, que o contrato de trabalho é concluído intuitu personae".

Em qualquer atividade, inclusive as de cunho religioso vocacional, exigem-se qualidades pessoais para o seu exercício, por isso diz-se que a condição do trabalhador é personalíssima, como bem afirma Mozart Victor Russomano18 nas seguintes palavras:

"Quanto ao trabalhador, porém, sempre, a relação de emprego é personalíssima. Por mais humilde que seja a função do trabalhador, o empregador o admite tendo em vista suas qualidades pessoais [...] O caráter personalíssimo da relação de emprego, no tocante ao trabalhador, impede que este se faça substituir na execução do serviço. O empregado tem a obrigação de executar o trabalho e deve fazê-lo nas condições ajustadas".

Por sua vez, o requisito da "não-eventualidade" diz respeito à habitualidade que deve existir na prestação dos serviços, que não pode acontecer de maneira eventual, pois os referidos serviços devem ter natureza permanente, atendendo às necessidades normais, constantes e uniformes da tomadora dos serviços, como bem define Alice Monteiro e Barros19 nas seguintes palavras:

"O pressuposto da não-eventualidade traduz-se pela exigência de que os serviços sejam de natureza não-eventual, isto é, necessários à atividade normal do empregador. Observe-se que o legislador não se utilizou do termo "continuidade". Logo, mesmo que descontínuo, isto é, intermitente, o serviço executado pelo empregado poderá ser de natureza não-eventual. Basta para isso que seja necessário ao desenvolvimento da atividade normal do empregador".

É necessário que seja acentuado que, para existir o pressuposto da não-eventualidade, pouco importa se a execução do trabalho aconteça por curto espaço de tempo, como bem esclarece a jurisprudência a seguir transcrita:

"VÍNCULO DE EMPREGO. EVENTUALIDADE. A noção de eventualidade, para efeito trabalhista, é obtida através do caráter de permanência, ou não, o qual o labor é prestado, pouco importando que a execução do serviço se opere por curto espaço de tempo. Portanto, o fato de o empregado trabalhar um dia por semana, mas com caráter de permanência, é suficiente para a caracterização do requisito da não eventualidade" (BRASIL. TRT da 2.ª Região. Acórdão n.º 20090516901. Relatora: Vania Paranhos. 02/07/2009).

O Colendo TST, através dos ministros da Subseção I, Especializada em Dissídios Individuais, em uma de suas decisões acerca de vínculo empregatício de diarista, assim fundamentou sua decisão acerca da não-eventualidade:

"[...] a não-eventualidade não significa o exercício diário de atividades. O vínculo empregatício pode ser reconhecido entre as partes, ainda que o trabalho seja prestado apenas uma vez por semana…" (BRASIL. TST. RR-593.730/99.6–SBDI1, Relator: Ministro João Oreste Dalazen. DJ 15-04-05).

Quanto ao requisito da "onerosidade", o mesmo trata da contraprestação, ou seja, da remuneração pelo serviço prestado. Embora o artigo 3.º da CLT utilize claramente a expressão "salário", não se pode negar que as contraprestações por quaisquer serviços prestados possam acontecer de formas diversas. Maurício Godinho Delgado20 diz o seguinte a respeito:

"Entretanto, existem algumas situações – raras, é verdade – em que a pesquisa da dimensão subjetiva da onerosidade será a única via hábil a permitir aferir-se a existência (ou não) desse elemento fático-jurídico na relação de trabalho vivenciada pelas partes. Trata-se, por exemplo, de situações tipificadas como de servidão disfarçada, em que há efetiva prestação de trabalho e ausência de contraprestação onerosa real pelo tomador dos serviços; ou situações de trabalho voluntário, comunitário, filantrópico politico ou religioso, em que há também efetiva prestação de trabalho sem contraprestação onerosa real pelo tomador dos serviços (o chamado trabalho pactuado affectionis vel benevolentias causa); ou, finalmente, outras distintas situações de trabalho voluntário, comunitário, filantrópico politico ou religioso em que a prestação de trabalho se conferere em um contexto de alguma reciprocidade material em benefício do prestador enfocado. Em qualquer dessas situações, apenas o exame do plano subjetivo da onerosidade é que responderá pela sua ocorrência (ou não) no quadro complexo da relação social construída. No plano subjetivo, a onerosidade manifesta-se pela intenção contraprestativa, pela intenção econômica (intenção onerosa, pois) conferida pelas partes – em especial pelo prestador de serviços – ao fato da prestação de trabalho. Existirá o elemento fático-jurídico da onerosidade no vínculo firmado entre as partes caso a prestação de serviços tenha sido pactuada, pelo trabalhador, como intuito contraprestativo trabalhista, com o intuito essencial de auferir um ganho econômico pelo trabalho ofertado. A prestação laboral ter-se-ia feito visando à formação de um vínculo empregatício entre as partes, com as conseqüências econômicas favoráveis ao prestador oriundas das normas jurídicas trabalhistas incidentes. A pesquisa da intenção das partes – notadamente do prestador de serviços – desponta, nessas situações fronteiriças, para um plano de destaque na investigação e avaliação criteriosa a ser feita pelo operador jurídico. No conjunto das situações acima aventadas, emerge obviamente configurada a dimensão subjetiva onerosa da prestação de trabalho na servidão disfarçada, embora objetivamente sempre tenha sido negada qualquer contraprestação material ao prestador de serviços".

Por fim, resta tratar do requisito "subordinação", que, como diz Maurício Godinho Delgado21, é "[...] o que ganha maior proeminência na conformação do tipo legal da relação empregatícia [...]".

Subordinação, também reconhecida como "dependência", trata-se de "subordinação juridical", onde o prestador dos serviços coloca-se em estado de sujeição dependente do tomador, acolhendo o poder de direção do mesmo no modo de realização de suas obrigações. A definição de subordinação juridica, segundo Paul Colin, como comenta Alice Monteiro e Barros22, é a seguinte:

"[...] "um estado de dependência real criado pelo direito de o empregador comandar, dar ordens", donde nasce a obrigação correspondente para o empregado de se submeter a essas ordens [...]".

Sergio Pinto Martins23 observa que a subordinação juridica se configura, em relação à pessoa do trabalhador, "[...] em função da situação do contrato de trabalho, em que está sujeito a receber ordens, em decorrência do poder de direção do empregador, do seu poder de comando [...]".


3. RELAÇÃO DE TRABALHO RELIGIOSO NA FORMA DE SERVIÇO VOLUNTÁRIO

Além das atividades religiosas remuneradas, tanto as isentas de vínculo empregatício, como as enquadradas nos artigos 2.º e 3.º da CLT, existe a possibilidade de realização das referidas atividades na forma de "trabalho voluntário", nos moldes da Lei n.º 9.608/98, cujo artigo 1.º diz o seguinte:

"Art. 1.º. Considera-se serviço voluntário, para fins desta Lei, a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade.

Importante ressaltar que, para caracterização do trabalho voluntário, nos termos da Lei n.º 9.608/98, as atividades "não podem ser remuneradas", requisito este que as diferenciam das atividades exercidas nas relações jurídicas de trabalho onerosas, sendo que o parágrafo único, do artigo 1.º, da aludida Lei n.º 9.608/98, prevê o seguinte:

"O serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista previdenciária ou afim".

A jurisprudência brasileira tem reiteradamente reconhecido, em muitos casos específicos, a voluntariedade na execução de atividades religiosas, nos termos da já mencionada Lei n.º 9.608/98, conforme arestos abaixo:

"PASTOR. TRABALHO VOLUNTÁRIO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DEFINIDORES DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO. O alegado desvirtuamento da finalidade da igreja e o enriquecimento de seus líderes com recursos advindos dos fiéis, embora constitua argumento relevante do ponto de vista da crítica social, não afasta a possibilidade de haver, no âmbito da congregação, a prestação de trabalho voluntário, motivado pela fé, voltado à caridade e desvinculado de pretensões financeiras. Assim, estando satisfatoriamente provada a ausência dos requisitos definidores do vínculo empregatício, deve ser afastada a tese da existência de relação de emprego com a entidade religiosa". (BRASIL. TRT da 12.ª Região. RO 7024/2005. Relatora: Juíza Gisele P. Alexandrino. Publicado no DJSC em 20.06.2005).

"TRABALHO RELIGIOSO. RELAÇÃO DE EMPREGO. Pastor evangélico não é empregado. Presta serviços em decorrência dos compromissos assumidos com o ministério de sua fé. Trata-se na verdade de trabalho voluntário nos moldes da Lei 9.608/98, excluindo a incidência do direito do trabalho. Presença de pacto de prestação de serviços, de caráter benevolente, em razão da fé, inexistindo vínculo empregatício. Recurso Ordinário do reclamante a que se nega provimento" (BRASIL. TRT/SP.Processo n.º 01084200801802001. Acórdão n.º 20100408057. Relator: Desembargador Davi Furtado Meirelles. 14.ª Turma. Data da publicação 14.05.2010).

Muitas atividades religiosas são exercidas por pessoas totalmente desinteressadas por qualquer contraprestação financeira, quer pelo fato de não necessitarem de fonte de renda própria, quer por possuírem fonte de renda e também tempo extra para exercer trabalho religioso em suas diversas formas. Tais atividades podem ser enquadradas como trabalho voluntário, desde que exercidas na forma determinada pela Lei n.º 9.608/98, cujos requisitos essenciais são os seguintes: prestado por pessoa física, destinado a entidades públicas de qualquer natureza ou a instituições privadas sem fins econômicos, executado mediante assinatura de termo de adesão e sem remuneração.

Embora o tabalho voluntário tenha suas peculiaridades, é importante que seja salientado que qualquer eventual litígio que envolva as atividades amparadas pela Lei n.º 9.608/98, deve ser conduzido à apreciação da Justiça do Trabalho, pois tais atividades também são "relações jurídicas de trabalho".


CONCLUSÃO

O trabalho religioso originalmente decorre de vocação religiosa e deve ser exercido com o único interesse pela propagação da fé, manutenção das instituições religiosas, conforme suas particularidades, e zelo por seus adeptos.

Por formar uma "relação jurídica" entre o religioso e sua instituição religiosa, deve ser exercido sob o amparo do ordenamento jurídico vigente.

Por outro lado, por se tratar de um a "relação de trabalho" e estar amparado pela lei, toda e qualquer discussão a seu respeito deve passar pelo crivo da Justiça do Trabalho, cuja competência foi consagrada pela Emenda Constitucional n.º 45/2004.

Quando realizadas fora da esfera vocacional ou desvirtuadas pela ambição mercadológica, desde que presentes os requisitos do artigo 3.º da CLT, as atividades religiosas podem ser reconhecidas como relação de trabalho com "vínculo empregatício".

Ainda, por ser possível a sua realização isenta de qualquer contraprestação, as atividades religiosas também podem ser exercidas na forma de "trabalho voluntário", nos moldes da Lei n.º 9.608/98.


REFERÊNCIAS

1 CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. 8.ª Edição. São Paulo, SP: Editora Hagnos, 2006, p. 710.

2 BÍBLIA SAGRADA. Traduzida da Vulgata e anotada pelo Padre Matos Soares. 15.ª Edição. São Paulo, SP: Edições Paulinas, 1962, p. 1410.

3 BÍBLIA SAGRADA. Op. cit.: Nota2, p. 1259.

4 BÍBLIA SAGRADA. Op. cit.: Nota 2, p. 1431.

5 UNGER, Merrill Frederick. Manual Bíblico. 1.ª Edição Reimpressa. São Paulo, SP: Editora Vida Nova, 2008, p. 584.

6 BARROS, Alice Monteiro de. Trabalho Voluntário e Trabalho Religioso. São Paulo, SP: Síntese Trabalhista n.º 130, Abril de 2000, p. 10.

7 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 14.ª Edição. São Paulo, SP: Editora Saraiva, 1987, pp. 209 e 210.

8 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 7.ª Edição. São Paulo, SP: Editora Saraiva, 1995, p. 459.

9 RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. 6.ª Edição. Curitiba, PR: Editora Juruá, 1997, p. 52.

10 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7.ª Edição. São Paulo, SP: Editora LTr, 2008, pp. 285 e 286.

11 MARANHÃO, Délio. Instituições de Direito do Trabalho. 22.ª Edição. São Paulo, SP: Editora LTR, 2005, p. 232.

12 BRASIL. Constituição da República Federariva do Brasil de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988.

13 OLEA, Manuel Alonso. Introdução do Direito do Trabalho. 2.ª Edição. Porto Alegre, RS: Editora Sulina, 1969, p. 150.

14 FRAGALE FILHO, Roberto. Missionários, Mercadores ou Empregados da Fé?. São Paulo, SP: Revista Ltr. 63-08, 1999, pp. 1057/1058.

15 BRASIL. Decreto-Lei n.º 5.452 de 1.º de Maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. 01 de maio de 1943.

16 DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit.: Nota 10, p.290.

17 GOMES, Orlando, GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. 17.ª Edição. Atualizada até 31/07/2005. Rio de Janeiro, RJ: Editora Forense, 2005, p. 81.

18 RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho, 9.ª Edição. Revista e Atualizada. Curitiba, PR: Editora Juruá, 2003, pp. 77 e 78.

19 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 5.ª Edição. Revista e Ampliada. São Paulo, SP: Editora LTr, 2009, p. 266.

20 DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit.: Nota 10, pp. 299 e 300.

21 DELGADO, Maurício Godinho. Op. Cit.: Nota 10, p. 301.

22 BARROS, Alice Monteiro de. Op. Cit.: Nota 18, p. 268.

23 MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à CLT. 6.ª Edição. São Paulo, SP: Editora Atlas, 2003, p. 32.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Jorge. Relação jurídica entre religiosos e instituições religiosas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2881, 22 maio 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19169. Acesso em: 28 mar. 2024.